quinta-feira, 18 de julho de 2013

O CONCEITO DE “MOTRIZES CULTURAIS” APLICADO ÀS PRATICAS PERFORMATIVAS AFRO-BRASILEIRAS


O presente artigo aplica o conceito de “motrizes culturais” às dinâmicas próprias das práticas performativas ou performances culturais afro-brasileiras a partir da análise de três manifestações: o candomblé, a umbanda e a capoeira. Dentre estas dinâmicas aponta: 1) a presença de um trio poderoso e inseparável, o cantar-dançar-batucar; 2) a concomitância ou alternância do ritual e do jogo; 3) o culto a ancestralidade; 4) a importância dos mestres no processo de transmissão dos saberes e das próprias dinâmicas. e 5) a importância da roda na dinâmica entre performers e performers e espectadores.
 
 
 
Manifestações espetaculares afro-brasileiras diversas como o candomblé, o jongo, a capoeira entre outras têm sido vistas até o presente como um tipo de produção cultural especifica voltada para resguardar um passado africano no Brasil, tendo como referência comum a chamada "matriz africana" – uma espécie de origem legitimadora da identidade africana na diáspora, não importando a sua multiplicidade nem a diversidade cultural. Largamente empregada por religiosos, esta conceituação tem sido incorporada por estudiosos de campo sem grandes questionamentos. Entretanto, a definição de matriz cultural, válida para muitas áreas e contextos, tem se mostrado insuficiente para conceituar a complexidade dos processos inter-étnicos e transitórios verificados nas práticas performativas ou performances culturais. Aqui, em vez de “matriz”, proponho uma definição/conceito e utilizado no plural “motrizes” para conceituar a complexidade das dinâmicas das performances culturais afro-brasileiras.
 
O conceito de Motrizes Culturais será empregado para definir um conjunto de dinâmicas culturais utilizados na diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de práticas performativas e se refere a combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações do mundo Afro-Brasileiro. Aqui examinaremos as motrizes culturais do ritual de Olorogun do Candomblé de Keto, a de Zé Pelintra no ritual de Povo de Rua da Umbanda e a do jogador na roda de capoeira Angola, procurando perceber a semelhança das dinâmicas da cena e a inter-relação entre os diversos elementos presentes no processo criador que se revela de forma tão dinâmica: manter a tradição transformando-a. É objetivo deste estudo, definir as principais dinâmicas empregadas nestas celebrações a saber: 1) o emprego dos elementos performativos: canto, dança e musica; 2) a utilização simultânea ou consecutiva do jogo e do ritual na mesma celebração; 3) o louvor aos ancestrais por meio do culto ou do transe; 4) a presença de um mestre que guarda o conhecimento da tradição e que por meio da iniciação transmite o legado e que, na maioria dos casos, é também o performer que lidera o ritual e/ou da celebração; e a 5) utilização do espaço em roda, os performers se movimentam dentro do círculo enquanto a platéia assiste em volta.
1) No caso dos elementos performativos destacamos o conjunto de técnicas aplicadas simultaneamente com o cantar-dançar-batucar – expressão usada por FU-KIAU para indicar o denominador comum das performances africanas negras. Bunseki K. Kia Fu-Kiau filósofo do Congo, seus estudos têm sido de fundamental importância no tocante ao conhecimento do simbolismos das culturas bantos e tem sido usado largamente por curadores de exposições centradas na Diáspora Africana como

 Ao considerar a junção das artes corporais às musicais e sobretudo, acrescido do uso do canto como algo simultâneo e, percebido como uma unidade dentro da performance africana, Fu-Kiau destaca um dispositivo que, sem dúvida, continua sendo característico das performances da diáspora Africana nas Américas – “não é possível existir performance negra na África sem este poderoso trio”, e o mesmo é aplicável em relação às performances afro-brasileiras.
 
2) Será considerado ainda outro valor agregado a estas dinâmicas: o da ocorrência da simultaneidade de ritual e jogo dentro da mesma performance. Não descarto, portanto, a ocorrência das motrizes culturais em outros campos não religiosos como em brinquedos populares ou em celebrações onde, em ambos os casos, existe a presença do ritual, mas sem o sentido estritamente religioso, como no caso do carnaval, no qual não enfocarei por não ser nosso objeto de análise neste artigo.
Usarei o estudo sobre ritual e jogo (play)
no qual destacarei os principais elementos de três celebrações afro-brasileiras, dentre as mais importantes, apontando em cada performance para sua articulação com o conceito de “recuperação do comportamento”
outra chave para entender a instauração de dinâmicas que geralmente pertencem ao campo das artes (música, dança, canto, jogo dramático) para criar o corpo dilatado do devoto, induzindo-o ao transe e ao contato com o mundo dos ancestres africanos. Dentre estas performances destacarei a presença do cantar-dançar-batucar bem como a incidência do jogo dramático dentro do ritual que constroem, uma performance, sem dúvida, afro-brasileira na qual, contudo, nem sempre o elemento étnico é o preponderante. Muitas vezes a maioria dos participantes não é afro-descendente e o ritual ocorre de igual maneira como se toda a comunidade fosse composta exclusivamente por negros.
 
3) Em relação ao culto aos ancestres podemos observar que inúmeras são as manifestações africanas no Brasil, nos concentraremos, sobretudo, no estudo de duas celebrações em que ocorre a questão do transe: o candomblé e a umbanda. No caso da capoeira angola, existe uma reverência grande em relação ao mundo ancestral não somente em muitas da músicas e letras, como na própria entrada do jogador na roda quando ele próprio risca no chão a cruz, que para muitos é cristã, mas que como veremos em Fu-Kiau ela representa a cruz congo4, simbolizando o cruzamento das duas energias, a horizontal (animal) com a vertical (sagrada), que desenhadas sobre a terra em forma de cruz delimitam o espaço mínimo consagrado para realização do ritual. Temos utilizados deste conceito para estudar os pontos riscados da umbanda.
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4) As tradições africanas na diáspora sobreviveram graças aos seus mestres que, mesmo quando as religiões foram duramente perseguidas, puderam transmitir os seus conhecimentos aos mais jovens. Portanto, todos os procedimentos em relação aos três itens apontados anteriormente foram e são recuperados pela sabedoria do mestre que é capaz de conservar, não somente as línguas africanas, como o conhecimento das ervas medicinais, dos cantos e das danças sagradas do antigo continente de origem de seus pais e avós.
 
5) A utilização do espaço da performance obedece a uma organização circular. A orquestra composta de instrumentos próprios de percussão permanece em um ponto fixo da roda, e que em qualquer das circunstâncias é o considerado o ponto mais sagrado da roda, para o qual convergem as saudações antes do inicio de qualquer performance. Ao começo do ritual, os performers seguem em fila numa espécie de cortejo dançante circular até entrarem em transe. Muitas da danças seguem o mesmo modelo. No caso da capoeira, onde não há a dança circular, mas os outros jogadores permanecem em roda, muitos são os momentos do jogo em que os dois jogadores “dão a volta ao mundo” (caminham abraçados) dando uma volta em círculo para finalizar ou começar uma nova etapa do jogo.
         DE MATRIZ A MOTRIZ
 
As dinâmicas das motrizes culturais se processam no corpo do performer como um todo. Neste sentido o corpo é seu texto. Nele se corporifica uma literatura viva, desenvolvida a cada apresentação, refletindo o conhecimento que se tem da tradição. Frases contemporâneas de cunho acadêmico como “pensamento do corpo”, “fala do corpo”, etc. importadas de pensadores europeus ou norte-americanos já eram muito conhecidas da tradição afro no Brasil há pelo menos cem anos, daí o ditado popular “tem que dizer no pé”, usado para definir a performance de um bom sambista6. Na performance, a cultura da cena mais do que por marcas, símbolos e formas (matrizes) se efetiva pelo conhecimento que o performer traz em seu próprio corpo quando a executa, na combinação dos seus movimentos no tempo e no espaço.
 
O adjetivo motriz do Latim motrice de motore, que faz mover; é também substantivo, classificado como força ou coisa que produz movimento. Portanto, quando procuro definir motrizes africanas, estou me referindo não somente a uma força que provoca ação como também a uma qualidade implícita do que se move e de quem se move, neste caso, estou adjetivando-a. Portanto, em alguns casos, ela é o próprio substantivo e, em outros, aquilo que caracteriza uma ação individual ou coletiva e que a distingue das demais. Se por outro lado, tomarmos à palavra “matriz” a coisa adquire um aspecto confuso, pela amplitude do conceito, pois pode ser definida inicialmente do Latim matrice usada, no passado, para definir o órgão das fêmeas dos mamíferos onde se gera o feto, o útero; lugar onde alguma coisa se gera. É compreendida também como molde que, depois de ter recebido uma determinada impressão, em oco ou em relevo, permite reproduzir essa mesma impressão sobre vários objetos. Já na matemática, é aplicada no sentido de conjunto ordenado de “m x n”, símbolos relacionados entre si por regras de adição, multiplicação, etc., representado sob a forma de um quadro com “m” linhas e “n” colunas e utilizado para a resolução de equações. Talvez esta variante do conceito de matriz, embora aparentemente possa parecer algo estático como um quadro, nos aproxima do sentido das performances culturais ou mesmo da performance artística como equações em que se combinam diversos elementos para criar um novo contexto, seja de entretenimento ou religioso, ou ambos combinados. Nas performances os sentidos são reconfigurados não só pela escolha dos elementos, como por suas combinações em termos de repetições como linguagens corporais claramente estabelecidas e como comportamento duplamente exercido, como propõe  Mas não foi esta percepção da palavra matriz que logrou o lugar de destaque no mundo diaspórico negro, mas aquela do sentido figurado como origem, fonte, matricial, manancial; ou adjetivando como fonte de origem, principal, primordial.
Se dentro de um contexto de busca da origem, das fontes ou mesmo de conjuntos de saberes africanos, a palavra passou a ter um peso de afirmação de identidade étnica, no decorrer do aprofundamento do estudo das performances como dinâmicas interculturais em que a arte, a religião, a filosofia são reprocessadas por comportamentos lúdico-corporais, o termo matriz se tornou insuficiente. Ele remete a uma única origem, quando o que se observa é que dessas origens, dinâmicas próprias foram preservadas, entretanto, muitas de suas formas iniciais foram perdidas ao contato e contagio com outras culturas. Além do mais, não poderíamos falar em uma única matriz africana, pois incontáveis e díspares são as culturas daquele continente, mesmo considerando somente aquelas provenientes das regiões subsaarianas.
O presente estudo procura apontar para a existência não apenas de uma única “matriz africana”, mas, sobretudo de “motrizes” desenvolvidas por africanos e seus descendentes e simpatizantes no Brasil, presentes também na diáspora, em celebrações festivas e ritualísticas no continente americano independentemente dos limites territoriais e ou lingüísticos dos seus habitantes. Estas motrizes, sim, apresentam características semelhantes não só em suas funções como em seus elementos constituintes e por serem historicamente trazidas do Continente Africano e reconfiguradas no solo brasileiro eu as denomino Afro-Brasileiras. Aconteçam no Haiti, em Cuba ou no Brasil, muda-se a língua de muitos dos cantos ou apenas o sotaque quando se preserva a língua, mas o sentido e o simbolismo do ritual e os “comportamentos invocados” a serem recuperados se assemelham, não apenas por influências mútuas, mas, sobretudo, nas formas corporais, bem como na manipulação de recursos sonoros e audiovisuais e nos estilos de se criar e recriar ou, muitas vezes, reinventar a performance trazida da África num tempo remoto e ou no imaginário dessa herança.
Essas forças motrizes se estabeleceram (e se estabelecem) através de um conjunto de fatores que envolvem a utilização dos elementos básicos da performance africana – o cantar-dançar-batucar – como um processo de instauração, não somente de um tempo extra-cotidiano através do qual são invocadas as forças ancestrais, como também de restaurações de comportamentos atribuídos a determinados ancestrais no continente africano. Entretanto, para que a prática performativa de origem africana aconteça em sua plenitude é necessária a presença de um ou mais "mestres", como passaram a ser conhecidos popularmente, depositários de uma filosofia, de uma compreensão cosmológica peculiar e guardiões (“velha guarda”) do conhecimento da liturgia transmitida oralmente pelos africanos trazidos como cativos ou por seus descendentes. São, muitas vezes, invocadas as matrizes étnicas, mas é através da força motriz das práticas performativas que se estabelecem corporalmente os paradigmas da tradição.
O elemento da transmissão dos saberes é fundamental, pois como a tradição se legitima através do contato em rituais/celebrações, o conhecimento se exerce através da própria prática em que o neófito é iniciado por meio do convívio com o seu mestre. Aparece ainda, em muitos casos, a contribuição pessoal do performer, não só fazendo (pondo em prática) o que aprendeu com mestre, mas desenvolvendo ele mesmo um estilo próprio, capaz de rearranjar os materiais apreendidos e as técnicas da tradição em novas “tiras de comportamento, como se fosse a de uma película de filme” como examina com sua conceituação de comportamento recuperado.
Para definir as principais características das performances subsaarianas
 (1984) cuja investigação foi também fundamental para estabelecer alguns parâmetros da diáspora africana nas Américas. A análise da presença da “arte em movimento” através de danças-cantos-batuques, bem como suas formas visuais com forte conteúdo religioso e filosófico, nos permite perceber que as dinâmicas criadas para transmitir os saberes, muitas vezes, superam a própria origem, dando novos sentidos ao que foi criado. Como investiga Thompson, o mambo deixou de ser uma forma ritualística e se popularizou como dança, influenciando outros tantos estilos como o cha-cha-cha, o merengue e a salsa, da mesma forma que o tango, uma dança de origem congo criada na bacia do Mar Del Plata por marinheiros e prostitutas se tornou um estilo eminentemente de dança de euro-argentino. Neste sentido, alguns elementos originários são mantidos mas já não está em jogo a fidelidade aos antigos modelos.
A utilização da definição de Richard Schechner sobre comportamento recuperado, bem como os seus estudos sobre as relações entre "play" e "ritual” são bastante úteis para compreender as dinâmicas que estou classificando como “motrizes culturais”. A performance de origem africana ao mesclar o jogo (a brincadeira) com o ritual, empresta a toda tradição popular brasileira um tônus e uma rítmica própria, criando uma literatura corporal que muitos identificam genericamente como “brasileira”. Uma forte característica das performances afro-americanas em geral, é justamente a via dupla entre o jogo (a brincadeira) e o ritual. Neste sentido, aspectos geralmente tidos como opostos nas denominadas religiões ocidentais, encontram nas chamadas celebrações tradicionais afro-americanas, um campo fértil de distensão e reencontro com as forças da natureza (e ancestrais também) – forças estas que se apresentam, simultaneamente, ordenadas e caóticas.
 
          CANDOMBLÉ, UMBANDA E CAPOEIRA: suas motrizes culturais 
 
Estou listando aqui dois rituais e um jogo ou arte marcial, justamente para discutir que as motrizes culturais podem acontecer tanto no campo da religião como no das práticas performativas onde não está envolvida diretamente a devoção. Espero definir que as motrizes culturais têm como o seu lócus próprio o espaço religioso, mas percebendo que algumas práticas performativas afro-descendentes carregam esta religiosidade sob a forma de uma cosmovisão o que nos permite detectar a ocorrência destas motrizes em outros setores da vida cultural brasileira. Não queremos dizer com isso que toda performance afro-brasileira carrega em si as motrizes culturais
O candomblé é de origem africana, isso já não se discute mais. Embora possamos perceber a presença de elementos culturais de origem Congo-Angola, mesmo na etimologia da palavra
normalmente ele é hoje mais associado à cultura de origem Iorubá, pelo impacto do universo dos Orixás da mesma. Entretanto, é notável nele ainda, forte presença da cultura Fon dos Geges, do antigo Reino de Daomé. Portanto, não é possível afirmar a existência de uma matriz apenas, nem de um único candomblé, pois trata-se de uma religião com uma enorme variedade de rituais e de “nações”, como os próprios membros a classificam. Suas matrizes culturais são de diversas procedências africanas e reelaboradas no Brasil por diferentes grupos étnicos e seus descendentes. De terreiro para terreiro, não muda somente a linguagem dos seus cantos, as próprias divindades cultuadas também mudam. Entretanto, podemos perceber a presença das mesmas motrizes culturais afro-brasileiras por meio de seus sucessivos processos ritualísticos e práticas devocionais. Portanto, quando me refiro às motrizes culturais afro-brasileiras estou me referindo a materiais e práticas culturais trazidas para o Brasil por negros escravizados vindos da África subsaariana, compostas por diversas etnias, e seu subseqüente desenvolvimento em uma diversidade de situações, rurais e urbanas, a que foram expostas estas populações e seus descendentes. Portanto, as motrizes não são propriedade de um grupo étnico ou de uma única cultura. A motriz pode ou não preservar a língua e os rituais peculiares de onde este ou aquele povo migrou, ao readaptá-los à realidade do Novo Mundo. Busca-se recuperar a essência, apropriando-se do que lhe parece eficiente e operante neste processo, entretanto, muitas vezes opera-se nitidamente uma (re)invenção de tradição
 A recuperação de um comportamento se dá, portanto, muitas vezes transvestida com novos elementos já que a bagagem cultural africana não pode ser trazida integralmente.

 É do que está circunscrito no corpo, enquanto memória que se expressa, ou do que está guardado na memória dos mais antigos, nas chamadas bibliotecas vivas, que esses comportamentos se revestem.
O Candomblé foi um dos que mais preservou a essência da sua religião de origem africana, mas muitas foram as modificações operadas em seus ritos. Basta um simples olhar fotográfico para perceber as diferenças nas vestes dos devotos e na arquitetura dos espaços religiosos entre a África e o Brasil. A própria criação do terreiro de candomblé no formato que conhecemos é uma invenção brasileira, embora o ritual com suas músicas, danças e cantos e a própria língua utilizada, o iorubá, muito se assemelham às de origem daquele antigo continente
No caso da Umbanda, ocorre uma sobreposição de diversas tradições onde nem sempre as africanas são preponderantes. Ao contrário do Candomblé, não se busca uma matriz ou se pretende seguir uma única tradição, a Umbanda abraça as outras tradições como a Ameríndia, o Catolicismo e o Espiritismo, que por sua vez nasceu do contato de Alan Kardec com a Índia para ampliar o seu poder de cura e sua eficiência diante do nefasto. Entretanto, um segmento da Umbanda, chamado genericamente de “Povo da Rua”, estabelece uma forte conexão com seu passado remoto por meio de um ritual repleto de elementos africanos em seus aspectos performáticos: música, dança, canto, caracterização das entidades com figurinos, decoração do ambiente, ingestão de bebida alcoólica, consumo de tabaco e ocorrência de transe. Se no candomblé os Orixás manifestados têm a sua razão de viver na própria dança, pois é através dela, impulsionada pelo canto e pela musica e acompanhada pelos fieis, que os chamados Deuses Africanos executam suas elaboradas coreografias, que aludem ou mesmo dramatizam, passagens de sua vida mítica. As entidades denominadas “Povo da Rua”, retornam à terra, sem passado para glorificar, mas para se reeducar e também vivenciar um pouco mais os prazeres dos sentidos, aos quais não conseguem ainda abandonar por completo – a comida, a bebida e a fala abundante sobre problemas pessoais e alheios.
No caso da Capoeira Angola a sua relação com o seu passado ancestral definida pelo próprio nome que se refere diretamente a sua raiz africana. Daniel Dawson citando a antiga carta do angolano Albano das Neves e Souza na qual ele diz “N´golo é capoeira”.
Albano descreve a dança acrobática da zebra chamada n´golo que é executada por jovens do grupo étnico Mucope, de Angola. A dança tinha um aspecto de competição: ao homem escolhido como o melhor dançarino era permitido escolher uma noiva sem ter que pagar o seu dote à família da noiva. E por ultimo, Vicente Pastinha, o famoso mestre da Capoeira Angola, afirmou que seu próprio mestre, um homem de Angola chamado Benedito, ensinou a ele que capoeira foi desenvolvida da dança n´golo. Outras referências sugerem diferentes origens, embora ainda na mesma área da África Central. Mário Barcelos escreveu em Aruanda, “Próximo dos Cabindas, existia outro povo que jogava capoeira. Eles eram os Mazingas, do Congo, que eram os eternos adversários dos Cambindas naquela arte.” Angola tem outras artes marciais como njinga, basula e gabetula. Essas são consideradas formas que são similares à capoeira angola e ajudaram à criá-la. Juntando todas as fontes: a dança n´golo, a arte dos Mazingas e dos Cambindas e outras artes marciais de Angola e você chega a conclusão geral que a capoeira angola começou na África Central e viajou para o Brasil como uma já formada arte, uma fusão de elementos de dança, música, teatro e ritual. Capoeira deve ter evoluído uma vez tendo chegado no Brasil, mas sua origem é africana.
O que me leva a incluir a capoeira neste estudo é o desejo de provar que as motrizes podem existir foram do âmbito restrito da religião, embora seja dentro dele que elas encontram o seu espaço mais claramente delineado. Com isso não quero dizer que todas as performances afro-brasileiras utilizem as motrizes culturais afro-brasileiras, embora possamos perceber em muitas delas características bem definidas de um ou mais das cinco dinâmicas apontadas no começo deste estudo.
 
         OS ORIXÁS VÃO À GUERRA NO OLOROGUN: ritual e drama
 
Discutirei a performance do Candomblé a partir do ritual Olorogun que conta o embate mitológico entre dois Orixás e que é realizado geralmente na semana seguinte a do carnaval. No Candomblé Nagô, as casas que descenderam da cidade de Oyo, apresentam a luta entre Xangô e Oxalá e nas originárias da cidade de Keto, apresentam a luta de Xangô contra Ogum. Ora, só aí vemos que o erro de se considerar matriz em vez de motriz. Qual é a matriz correta do Olorogun? Não existe. Os terreiros de Candomblé originários de Oyo como o de Casa Branca, o Ilê Opo Afonjá e o Gantois, não só reivindicam serem os mais antigos como os mais representativos. Neles Xangô e Oxalá ocupam o lugar de importância maior. Entretanto, vou me ocupar do Keto, por ter tido oportunidade de acompanhá-lo por diversas vezes no candomblé Ile Omi Oju Aro, descendente do Candomblé de Alaketo de Salvador, um dos mais antigos do Brasil, cujos patronos são Oxossi e Ogum entre outros.
Xangô é um dos mais populares Orixás tanto na África como nas Américas. No mundo iorubano representa princípios de liderança e de justiça comunitária. Luis Nicolau Pares considera este ritual como um “Jogo de Guerra” e aponta alguns elementos interessantes sobre a importância da liderança de Xangô como aquele que cumpre o papel de agregador, mas chama atenção para o fato de que tradicionalmente em seu reino unificado “coexistem a pluralidade e interesses contraditórios e não hegemônicos que são manejados a ser integrados e reconciliados na multi-divindades do Candomblé.
 
Por sua vez, o opositor de Xangô, seja Oxalá, que é considerado o mais antigo dos Orixás, aquele que esteve presente na origem dos seres humanos, ou Ogum, o poderoso senhor da guerra e que carrega o princípio da regeneração de tudo e de todos que são destruídos, ambos apresentam poder equivalente. Na visão iorubana, um embate real entre duas destas divindades é algo que poderia representar o total desequilíbrio do mundo dos seres humanos e por isso mesmo, talvez, este embate seja realizado sob a forma de um drama ritualizado ou de um ritual dramatizado por também poder simbolicamente operar as oposições e contradições da comunidade. Portanto, em suma, seja qual for o adversário de Xangô, estamos diante de divindades cuja força se equivale e à qual todos os homens devem temer.
No caso do ritual assistido no Ilê Omi Oju Aro, em Miguel Couto na Baixada Fluminense, o embate sempre ocorre entre Xangô e Ogum, tradicionalmente arque inimigos em disputa pelo mesmo Orixá feminino, Oya ou Iansã. A primeira parte do ritual segue o mesmo processo: todos os fiéis entram dançando em roda, paramentados com suas roupas em tons claros e seguindo a hierarquia dos mais antigos liderando os mais jovens no santo. A partir do transe, eles se retiram para serem vestidos como Orixás, na volta, além das tradicionais vestes com as cores e os adornos correspondentes aos respectivos Orixás, trazem em sua cabeça uma rodilha representando as cores branca e/ou vermelha, características dos batalhões liderados por Ogum e Xangô, na mão direita trazem uma folha de peregun (planta de origem nigeriana)
 que simboliza a ida para a guerra. A dança é executada por dois grupos, que dançam em lados opostos e, algumas vezes, dançam em filas paralelas, outras vezes se entrecruzando. Próximo ao final do ritual, antes de se retirarem, recebem um pequeno bastão com uma pequena trouxa pendurada em uma das extremidades, da mesma forma como eram representadas nos anúncios de jornais do século XIX, as imagens dos escravos foragidos.
Interessante notar que toda a coreografia é executada enquanto os Orixás estão incorporando os seus médiuns, não há diretor de cena. Poderíamos afirmar que é uma performance sem ensaios. Este comportamento é recuperado pela própria orquestração da música, da dança e do canto. Os Orixás, uma vez incorporados, desempenham os seus papéis, não mais apenas com suas danças específicas, mas com uma dança dramática7 que alude à guerra. Não há um embate real, mas ao final, quando os líderes Xangô e Ogum cruzam as bandeiras e se retiram com os seus respectivos batalhões, enfatiza-se o conflito em linhas de forças opostas situando-o em um plano suspenso. Este é o último ritual do ano; simbolicamente eles partem para a guerra e não devem ser incomodados enquanto lá estiverem peleando. Coincidência ou não, este é o mesmo período do recolhimento cristão da Quaresma. É possível pensar que houve uma acomodação deste ritual ao período da Quaresma, pois na África também havia um período de interrupção das festas em que não se devia invocar os Orixás. Em meados do século XIX, o Olorogun era conhecido como a festa “fechar o balaio”, uma expressão que tanto pode aludir à abstinência sexual como ao próprio encerramento do ciclo festivo
Na sexta-feira da Paixão, no Candomblé, é feito o ritual para as almas, Egungun, e no dia seguinte, sábado de Aleluia, abrem-se os trabalhos da casa fazendo as oferendas para Exu e abrindo novamente o ciclo de festividades do terreiro.
Talvez, este seja o ritual do Candomblé onde o jogo esteja mais presente dentro do ritual. Percebemos nitidamente que a guerra é vivenciada enquanto drama, no entanto, nada se aproxima do realismo. Não existe arma real, nem representação da morte ou do triunfo de um lado sobre o outro. A guerra é apresentada como um embate de forças, um jogo que se revela mais importante que a própria guerra. Um jogo executado por Orixás montados em seus cavalos, como se refere Maya Deren em seu livro
e como é usado algumas vezes na Umbanda, já que no Candomblé geralmente se utiliza o termo “virado”. Neste caso, é como se o médium virasse o Orixá, ação/gesto bem mais próxima ao universo da performance em que o ator vira o personagem sem contudo deixar de ser ele mesmo.
No Candomblé, existe a idéia de que o médium não abandona a si próprio por completo uma vez que o Orixá é feito nele mesmo, pois se iniciar é o mesmo que “fazer a cabeça” ou mesmo “fazer o santo”. Quando se diz que não foi feito o santo, o Orixá não pode se assentar, ou seja, é preciso encontrar o lugar do Orixá na cabeça, Ori, do iniciado, para que ele possa, então, usufruir plenamente do transe e entregar seu corpo à dança divina coreografada no terreiro pelo cantar-dançar-batucar de tradição Ioruba. Neste caso, a motriz e a matriz se conjugam corporalmente para quem canta, dança e toca o atabaque e para quem acredita na força dos Orixás e se transporta enquanto espectador participante.
 
         ZÉ PELINTRA: ritual e jogo
 
 
Considerado um ancestral africano, herdeiro dos catimbozeiros do sertão, Zé Pelintra se tornou primeiramente conhecido no Nordeste como um sábio curandeiro que usava o poder das folhas para cuidar dos males do corpo e da alma e veio a se tornar famoso malandro na zona boêmia do Rio de Janeiro nas três primeiras décadas do século XX, onde virou personagem e mito. Mas é na Umbanda, nos rituais para “Povo de Rua” que ele encontrou seu ambiente e onde vem beber, fumar e compartilhar da vida terrena com os irmãos de fé, aconselhando-os, curando-os de doenças do corpo e da alma.
Na Umbanda, Seu Zé, como é conhecido na intimidade, é uma das poucas entidades a participar de dois rituais distintos: o do “Povo da Rua” e do ritual para as almas, onde geralmente somente os pretos velhos participam. É na sua participação no ritual para o Povo de Rua que se percebe mais nitidamente as motrizes culturais, neste caso impregnadas de vivências bantos. Conforme indiquei anteriormente em pesquisas realizadas sobre a sua presença na Umbanda, ele passa a ser um espírito desencarnado, um ser humano que já viveu algum dia entre nós , mas continua subjugado aos sentidos. Sexo, jogo, bebida e fumo são para Exu elos indissolúveis com o plano material. Ele passa, portanto a governar esses caminhos entre os dois mundos, ou encruzilhada, como muitos consideram. O dinheiro, como energia física e símbolo de poder transformador na matéria, é também muito característico do seu universo. Neste sentido, sua associação com o diabo, como este se afigura no Catolicismo, é irreversível, pois Exu gosta de tudo que o famoso chifrudo aprecia .
 
O ritual do Povo de Rua é uma festa afro-brasileira com tudo o que se tem direito: o cantar-dançar-batucar é o elemento primordial sem o qual, o ritual perde o seu brilho e sua essência. Neste, as entidades circulam entre o público, conversam, dão conselho e, inclusive, numa inusitada complementação, convidam a todos para dançarem, sejam enlaçados ou mesmo em duplas ou em roda. Não há uma hierarquia bem definida e o ritual tem a nítida característica de um happenning onde as relações entre platéia e publico determinam o que vai acontecer em seguida.
Pode-se perceber a importância do cantar-dançar-batucar dentro do ritual, este elemento é justamente o que foi banido da chamada Umbanda branca ou kardecista que associa esta festa com algo que desvirtua o caminho da cura, permitindo que espíritos “pouco evoluídos” baixem no terreiro. Junto com a proibição do canto, dança e tambor, juntou-se a proibição dos sacrifícios de animais e da ingestão de bebida alcoólica, tabaco, etc., ou seja, um processo de “desafricanização” do ritual .

          CAPOEIRA ANGOLA: ritual, jogo, arte e luta
 
A capoeira Angola tem sido exemplificada como a própria resistência das culturas provenientes da África Central. Sobretudo pela combinação da dança, canto e percussão, bem como no seu constante ziguezaguear entre jogo e luta, entre ritual e diversão. Soares chama atenção para a particularidade da forma como estas culturas se mesclaram na construção de identidades próprias:
Em outras palavras, o mosaico de línguas, religiões e formas culturais díspares, que caracteriza a África ao sul do Equador até hoje, teve, sob a escravidão moderna, e principalmente no Brasil, a oportunidade singular de reordenar valores e símbolos em torno de um ponto comum: a condição escrava e a origem africana.
Embora do ponto de vista lingüístico e religioso estas culturas são distintas, elas apresentam muitos pontos em comum não só a própria origem banta, como a utilização de instrumentos musicais e práticas corporais comuns como chama atenção ; ao perceber o longo processo de trocas de culturas negras ainda em solo africano e anterior a chegada do colonizador. O fato de possuírem um léxico corporal comum proveniente de suas culturas de origem, que conjuga jogo, luta e ritual permitiu aos “capoeiras” ou, “capoeiristas” como são conhecidos hoje os jogadores, desenvolverem uma complexa arte marcial amadurecida principalmente nas cidades do Rio de Janeiro e em Salvador e possivelmente em outras cidades de portos de entrada de africanos ou de grande contingente populacional de gente proveniente daquele Continente.
A capoeira foi duramente perseguida durante o período colonial e durante o Império. Identificada como uma atividade de lazer do escravo desocupado logo passou a ser vista como algo perigoso e passível de dura repressão e a partir daí a ser considerada crime. A própria prática do jogo da capoeira é utilizada para caracterizar e descrever o tipo de escravo fugido.
No dia 17 do corrente fugiu um escravo por nome Manuel, de nação Cabinda, estatura ordinária, rosto meio redondo, beiços grossos, olhos pequenos, bastante asibichado de cor, com os tornozelos grossos, e com cicatrizes nas pernas de chagas. Costuma andar pela rua da Vala com outros capoeirando; quem o apanhar e levar à rua Direita  será bem recompensado.
 
 a popularidade que a capoeira alcançou no final do século XIX entre as “maltas que se degladiavam no meio da rua” e que muitas vezes entravam em confronto com as tropas brasileiras apresentando baixas de ambos os lados. Ele aponta também a presença dos “portugueses fadistas” que passaram a freqüentar as rodas de capoeira como praticantes. O envolvimento de capoeiras chamados de “guarda negra”, cujo grupo mais famoso foi o “Flor da Gente”, como capangas de políticos influentes acabou gerando uma onda de medidas públicas repressivas para dar cabo do movimento da capoeiragem na antiga capital. Em 1889, menos de um mês após a proclamação da república, começa a prisão dos mais famosos nomes da capoeira carioca, no ano seguinte são deportados para Fernando de Noronha de onde não voltam jamais. O Código Penal da Republica editado em 11 de outubro de 1890 classificou a pratica da capoeira como delito, contravenção, crime. A partir daí, torna-se um jogo clandestino, portanto de contraventores.
Coube ao Mestre Vicente Joaquim Ferreira Pastinha (1889-1981), em Salvador, reunir os conhecimentos sobre a Capoeira Angola e sistematizar o seu ensino para um grupo de aprendizes. Seu trabalho se tornou tão importante que é considerado como a grande referência, uma espécie de um mito fundador, como se fosse ele, o próprio idealizador da capoeira angola em si. Embora ele seja claro que seus conhecimentos lhe foram passados por outro mestre, de origem africana:
Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma briga da gente. Vem cá, meu filho, ele me disse, vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. Você não pode com ele, sabe, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia vem aqui no meu cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita valia. Foi isso que o velho me disse e eu fui. 8
Diferente da Capoeira Regional desenvolvida posteriormente pelo Mestre Bimba (1900-1974) que priorizou o aspecto atlético e competitivo, a capoeira Angola aproximou-se do ritual, do jogo e da filosofia e arte africana. Pastinha desenvolveu um método de ensino da capoeira conciliando o trabalho físico com educação artística – do aprendizado do uso dos instrumentos musicais, do vocabulário corporal da dança, centrado principalmente na ginga, movimento, ao sentido grupal e comunitário em torno do mestre. A originalidade do método de ensino, a prática do jogo enquanto expressão artística formaram uma escola que privilegia tanto o treinamento físico a partir do lúdico como a esperteza da mente e a consciência de uma ética própria do capoeirista que inclui o respeito à tradição ancestral africana. Quando fundou no Pelourinho sua academia dedicada ao ensino da capoeira em sua porta escreveu em cima três palavras: “Angola, capoeira, mãe”. E embaixo, o pensamento: "Mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.
O aprendizado da ginga não ocorre apenas de forma mimética, ele precisa ser assimilado para que o corpo possa realmente entrar na sintonia fina do jogo, ser capaz de perceber o vocabulário de movimentos que está sendo articulado em conformidade com a música, o canto, a dança e o fraseado do parceiro que está no jogo com ele. Aqui, não se preocupa em preservar nenhuma linguagem mas em atualizar um léxico aprendido dos mestres mais antigos com as possibilidades do ser e não ser simultaneamente. A inversão do peso do corpo em muito dos movimentos contraria a gravidade humana para criar um jogo de dinâmicas impensadas e inusitadas. O universo da capoeira é em si o universo da dubiedade, da inversão do movimento e do corpo como parte da “malicia”, do jogo de mostrar ao jogador oponente quão forte se poderia atingi-lo se de fato quisesse. Além do mais, existe no jogo a aproximação através de movimentos corporais com o universo de felinos e répteis, prática que remete também a recônditas partes da mente negadas pelo dia a dia e próximas do universo afro-ameríndio. Mas é, sobretudo, a sua integração dentro da roda, reagindo e atuando que conduzirá a um estado em que seu jogo pertence ao reino da performance coletiva do grupo. Aqui um tempo é instaurado com suas próprias leis e códigos. Existe uma regência do mestre de cerimônias, o mais antigo, que toca o berimbau-centro, o qual é reverenciado ritualisticamente antes e depois do jogador encerrar a sua participação na roda de capoeira. Juiz e propulsor do jogo, o berimbau é berimbau-gunga ou chamado de “berra boi”, de cabaça grande, som grave, cuja função é marcar o toque base de todos os instrumentos, geralmente tocado pelo mestre mais antigo presente. É seguido pelo médio, que produz som médio grave e tem a função de marcar, tocando o inverso do toque do Gunga. O terceiro, chamado de Viola - Berimbau de cabaça menor, produz som agudo e tem a função de solo. Os três dão vida própria à tessitura musical da performance da roda, acompanhados ainda pelos atabaques, agogôs, pandeiros e reco-reco. Pois é o toque que vai determinar que tipo de jogo vai acontecer, o repertorio de toques constitui a dramaturgia da performance bem como a sua força motriz.
          CONCLUSÃO
Como conseqüência de todas as transformações analisadas podemos concluir que as motrizes originárias do continente africano encontraram definitivamente um sistema de redes de permanência e de uma multiplicidade impressionante na diáspora americana. A questão proposta do estudo das motrizes culturais pretende apontar não para o desaparecimento de raízes africanas, como pode parecer, mas para consciência de que as dinâmicas trazidas pelos africanos se afirmam tão poderosas que parecem seduzir a um número cada vez maior de performers interessados em descobrir suas linguagens com os grandes mestres das inúmeras tradições trazidas por africanos, desenvolvidas por afro-brasileiros e simpatizantes.
Chamo atenção para o fato de algumas vezes as transformações promovidas pelo performer/brincante alterarem sensivelmente a origem étnica da performance (ou pelo menos tentarem), descartando seus valores mais sagrados, seus princípios éticos e suas tradições comunitárias, mas se apropriando da essência da performance: as suas motrizes culturais. No caso do ritual, a situação é mais completa, pois é necessário uma iniciação e um comprometimento maior com os preceitos religiosos.
Se colocarmos lado a lado os três tipos de motrizes culturais observadas em três tipos diferentes de rituais veremos que elas se diferenciam muito, pois quando falo de motriz não falo de algo abstrato, como um processo a que se submete tal cultura, refiro-me a processos ligados ao universo da performance cultural em que se empregam determinados procedimentos como a utilização do cantar-dançar-batucar, mas que inevitavelmente se aliam à isso tradições africanas recriadas fidedignamente no Brasil ou simplesmente reinventadas. E para dar conta de recuperar determinados comportamentos, no caso analisado, referindo-se ao mundo religioso, estabelecem, portanto, processos de performance em que o corpo do performer é quem vai ser o responsável pelo encontro com o divino, com o mundo dos ancestres africanos, sejam eles os que regem as forças da natureza ou aqueles que ajudam os desvalidos a triunfarem em seus trabalhos na rua e em ofícios menos dignos, devotos dos exus e pombas-gira, as entidades do Povo de Rua.
Na umbanda, a participação como performer incorporado pela entidade prevê uma ativa comunicação com a platéia dando consultas e convidando-a para beber, fumar, e aconselhar sobre qualquer assunto, enquanto o Orixá do Candomblé não dirige a palavra à platéia, e quando muito, distribui abraços ternos à sua maneira, de forma a encostar o peitoral colocando a cabeça ora do lado direito ora do esquerdo, como que enlaçando os corpos e cruzando-os duas vezes, num comprimento típico das religiões afro-brasileiras. O elemento comum dos rituais mencionados, além do batucar-cantar-dançar é o transe, que podemos também diferenciar quanto a sua intensidade e qualidade (embora não seja este o nosso objetivo aqui), uma vez que no Candomblé, os ancestres são associados à energia da natureza e, portanto, pertencentes a um estrato que vai além do universo dos seres humanos; já as entidades do Povo da Rua, são exatamente espíritos de pessoas que desencarnaram e que vêm ao mundo para evoluir, segundo o Espiritismo de Kardec.
No caso da capoeira angola, o elemento do jogo está diretamente imbricado na movimentação corporal que envolve a simulação de uma luta enquanto exercício de ataque e defesa dentro de uma técnica em que o corpo transfere o seu peso constantemente entre os braços e pernas, criando uma ponte entre o vertical e o horizontal, ora imitando animais ora criando um novo repertorio de antigas frases aprendidas com os mestres e anunciadas pelos toques da orquestra de berimbau, atabaque, pandeiro e agogô. Se por um lado aparece o lado esportivo da luta marcial, é muito comum os antigos mestres falarem em mandinga, fechar corpo, ritualizar a sua relação com os tambores e com os atabaques como lhes foi passado pelos mais antigos. Cantar-dançar-batucar não é apenas uma forma, mas uma estratégia de cultuar uma memória exercendo-a com o corpo em sua plenitude. Uma espécie de oração orgânica.
No centro da roda apenas dois jogadores se enfrentam, mas toda a atenção da roda converge para a evolução da dupla que constantemente é substituída por outro e outro, refazendo duplas e diálogos. A dança da capoeira é também circular, como são os rituais da umbanda e do candomblé. É interativa, porque todos batem palmas e repetem as ladainhas em coro.
O conceito de motrizes culturais visa facilitar a percepção de que não são apenas os elementos em si como a dança, o canto, o batuque, os materiais visuais, o enredo, etc. que são a essência da tradição, mas o próprio relacionamento criado entre eles pelo performer por meios da sua forma de vivenciá-las em cena; a dinâmica interativa é que é a base da performance. É o conhecimento corporal que o performer tem da interatividade entre o cantar-dançar-batucar com a filosofia e a visão cósmica da tradição, que garante a sua verdadeira continuidade. Sua eficácia depende de uma forte tradição oral, treinamento informal e um grande senso de identidade comunitária. Alguns destes elementos separadamente, muitas vezes, se transformam sensivelmente a ponto de sua fidedignidade ser questionada pelos mais antigos da comunidade, entretanto, se suas dinâmicas e seu relacionamento interativo remetem a um tempo suspenso onde a comunidade e a sua vida ancestral se encontram com um passado remoto ou imaginário, podemos afirmar que está em curso uma performance onde se processam as motrizes culturais afro-brasileiras e onde a tradição encontra formas de se manter viva ao transformar-se. As motrizes culturais são e serão sempre ferramentas de transporte entre o mundo dos vivos e dos ancestres, entre o performer e a comunidade, entre o ser operário e o artista, entre o tempo do sacrifício cotidiano e o tempo das glórias e levezas míticas, não importa a época nem a sua localização geográfica.
 

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