domingo, 28 de julho de 2013

SÉCULO XX - A LUTA DO NEGRO CONTINUA

Claudia Lima*

No momento em que os negros são colocados face a face, como libertos e cidadãos, entram em

jogo os padrões de avaliações recíprocas elaboradas no universo escravocrata. Não são somente as

situações sociais presentes que definem e determinam as relações sociais entre as pessoas. Ao lado desse

fator, é necessário considerar a experiência social passada, acumulada por um e por outro, além das

avaliações recíprocas efetuadas em função dessas ordens de fatores. A discriminação é um mecanismo de

manutenção da distância social que foi gerada no regime escravocrata, entre negros e brancos do mesmo

modo, que, um e outro, foram produzidos no mundo escravocrata.

Quando o

status jurídico já não fixa mais à distância que separa um do outro, quando o status

econômicos recíprocos sofrem abalos, alterando-se, os brancos reelaboram socialmente os remanescentes

do antigo regime, tais como ocupações, marcas raciais, atributos morais, psicomotores, etc., para assimilar o

universo do “nós” e dos “outros”. Uma camada e outra camada, mesmo onde as bases reais da distinção já

ruíram parcialmente ou totalmente. Assim emergem componentes como as ideologias raciais.

1

A falta de compreensão do processo de constituição das novas categorias sociais foi um dos

elementos que contribuiu para que atos arbitrários originados no recrutamento de soldados e marinheiros no

período escravagista e recaiam sob os libertos humildes. Esses homens eram submetidos a constantes

violências, que incluíam desde a péssima alimentação até castigos corporais.

As condições histórico-econômicas e sociais que produziram o novo cidadão depois da abolição e o

êxodo para as capitais gerando as favelas. No início do século XX, o Rio de Janeiro é a maior cidade do

Brasil. A falta de saneamento básica deixa 720 mil habitantes vulneráveis a epidemia de febre amarela,

varíola e outras doenças. A população constituída de pobres e, na sua maioria de negros e pardos, é a

principal vítima da ineficiência da saúde pública. Uma grande mobilização chefiada pelo médico sanitarista

Osvaldo Cruz conduz a reforma sanitária. A população pobre, moradora das favelas, sem entender o alcance

e a eficiência das medidas, sem orientação do que se processava naquele momento, reage a obrigatoriedade

da vacinação contra a varíola. Em 5 de novembro de 1904 é criada a Liga contra a Vacina Obrigatória,

enfrentando a Lei aprovada pelo Congresso Nacional da obrigatoriedade. Assim, começam os confrontos

entre populares e forças policiais. No dia 14, cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha, rebela-se contra o

governo federal, que ordena o bombardeio dos morros do bairro da Saúde, reduto da rebelião. Em mais um

ato de repressão, dentro dos padrões escravagistas, a Lei da Vacina Obrigatória é revogada, mas a polícia

ocupa o bairro da Saúde e, com o apoio do Exército e da Marinha, acaba a revolta.

As tensões da abolição não deixaram de atuar no sentido negativo,

em 1910, o marinheiro Marcelino

Rodrigues Menezes, que servia na belonave Minas Gerais, foi condenado a 250 chibatadas. Seus


1

Octavio IANNI. As metamorfoses do escravo: apogeu e crise da escravatura no Brasil meridional. 2ª ed. São Paulo:

Hucitec; Curitiba: Scientia et Labor, 1988. p. 208-209.


2

companheiros, obrigados, como de costume, a assistir ao castigo, não se contiveram e, na noite de 22 de

novembro, se rebelaram. Os outros navios aportados na Guanabara aderiram, como também, o São Paulo, o

Bahia e o Deodoro. O líder da revolta foi o marinheiro João Cândido, o Almirante negro.

Embora tenha sido precipitada pelo castigo do marinheiro, a Revolta da Chibata, como ficou

conhecida, e também denominada Revolta dos Marinheiros, há muito, vinha sendo preparada pelos rebeldes

que estavam razoavelmente organizados, o que lhes permitiu dominar com rapidez os quatro navios. O

objetivo da revolta era simples, conforme declarou o cabo Gregório do Nascimento, que assumiu o comando

do navio São Paulo: conseguir o fim dos castigos corporais e melhorar a alimentação. João Cândido enviou

mensagem para o Palácio do Catete, ao governador, com ameaças de bombardear a cidade e os navios que

não se rebelaram, caso suas reivindicações não fossem imediatamente atendidas.

O presidente então era Hermes da Fonseca, recém-empossado. Assim, sem outra alternativa, por

iniciativa de Rui Barbosa, na época senador, foi proposto e aprovado um projeto que atendia aos

marinheiros e lhes concedia anistia. Assim, os revoltosos depuseram as armas e se submeteram às

autoridades. Porém as concessões do governo ficaram no papel. Os novos comandantes nomeados para os

navios revoltados ordenaram a prisão de João Cândido e seus companheiros. João Cândido conseguiu

sobreviver a todos os castigos, sendo enfim absolvido em julgamento realizado em 1912. O Almirante Negro

faleceu em 1969.

2

Mesmo as soluções pensadas construtivas tinham suas contradições, gerando desestabilizações. Os

brancos admitem a semelhança do negro deixando de ser um ser estranho, posto que seja de outra natureza,

quando ele passa a ser “cristão”, então ele é reconhecido moral e juridicamente e sofre a metamorfose das

nuances de cor. No entanto, a configuração na cidade possui este aspecto do progressivo branqueamento da

população local, independente do grupo recém chegado da área rural em busca de sobrevivência.

3

O universo social assimétrico elaborado pelo regime escravista encontra-se em reelaboração nas primeiras

décadas do século XX, esta sociedade é uma entidade disposta em camadas sociais, os valores, padrões, normas,

etc., o regime escravocrata ainda são refletidos no novo contexto social. As determinações da ideologia racial do

branco se para o mito da democracia racial brasileira.

4 O estereótipo da preguiça é relacionada ao negro, logo a ele

que foi produto e produtor da riqueza de tantas potências mundiais.

Silvio Romero, ao final do século XIX, de certo modo, define o caminho por meio do qual esse dilema vai

ser abordado por grande parte dos autores que se seguiram, em sua visão, a mestiçagem da população brasileira

era um fato predominantemente social e cultural, em uma fala com peculiaridades raciais afirma que “

os brancos

puros e os negros puros que existem no país, e ainda não estão mesclados pelo sangue, já estão mestiçados pelas

idéias e costumes, e o estudo dos hábitos populares e da língua fornece a prova dessa verdade

5.

Neste sentido, a elite dominante brasileira pensa a mestiçagem como uma categoria que servisse de

base na construção da identidade nacional, no entanto, não consegue resolver os efeitos da hierarquia dos

três grupos de origem, indígena, negro e europeu e os conflitos de desigualdade raciais resultantes dessa

hierarquia. Na realidade os mestiços entraram nessa relação diferencial constituindo uma categoria

intermediária, hierarquizada entre brancos, negros e índios, porém o preconceito racial brasileiro baseado na


2

Luiz KOSHIBA; Denise PEREIRA.História do Brasil. p. 274.

3

Octavio IANNI. As metamorfoses do escravo. p.230-245.

4

IBID. 250-252.

5

Silvio ROMERO, 1977. p. 60-61.

3

cor e não na origem, reclassifica esse grupo no grupo dos brancos, demonstrando como o brasileiro foge da

sua realidade étnica, de sua identidade, situando-se o mais próximo possível do modelo tido como superior.

A questão principal do problema da formação da identidade coletiva do negro se encontra entre os

afrodescendentes politicamente mobilizados através dos movimentos negros e das bases negras constituídas

pela maioria não-mobilizada, cujo futuro foi projetado no sonho do embranquecimento.

“Como formar uma

identidade em torno de uma cultura até certo ponto expropriada e nem sempre assumida com orgulho pela

maioria de negros e mestiços?

6.

Neste sentido, o conceito de “raça” sistematiza-se na sociedade brasileira, na primeira metade do século

XX, associado à medicina e a anatomia que questionavam sobre o “tipo racial”, em referência ao tipo físico, em

permanentes discussões em biologia experimental e comportamental, fora dos argumentos das características

raciais, bem como dos aspectos culturais.

A Assembléia Geral da Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura,

em 1949, convocou especialistas para debater o conceito de “raça” visando, entre outros objetivos, estudar, coletar

e difundir material científico, bem como preparar uma campanha educacional.

A chamada “Primeira Declaração sobre Raça” foi tornada pública em julho de 1950, e alguns de seus

principais pontos são: enfatizar que as diferenças biológicas entre grupos humanos são devidas à operação de

formas evolutivas e que a espécie humana é constituída por “populações”, na dimensão neodarwiniana

7 do termo;

raça designa um grupo ou população que se caracteriza por concentração de partículas hereditárias (genes) ou

atributos físicos, que podem variar ao longo do tempo; a história humana e estudos biológicos demonstram que o

espírito cooperativo é natural e arraigado nos seres humanos, ou seja, o ódio racial não lhes seria uma

característica intrínseca, natural; os grupos humanos não diferem em suas características mentais inatas, seja

inteligência ou comportamento (Unesco: 1952).

A trajetória do conceito de raça

8 foi sendo transformada, passando por conceitos e teorias da perspectiva

tipológica-descritiva

9 (escala das raças) para a genética, para que se aproximasse ao máximo de “população”.

O Estatuto sobre Raça da Unesco, marca na década de 50, do século XX, um momento especial da

transição do conceito de “raça” a “população”, antes da noção de “cultura”, quando a questão transpôs as

discussões dos círculos acadêmicos mais restritos e alcançou o interesse público, desencadeou no ano seguinte

nova reunião com o argumento que raça é uma questão de interesse para muitos tipos diferentes de pessoas, não

somente para o público em geral, mas para sociólogos, antropólogos e biólogos, especialmente para aqueles

lutando com problemas de genética e, que na primeira discussão do problema de raça foram, principalmente, os

sociólogos que emitiram suas opiniões e que formularam a declaração. Além disso, a primeira declaração não

traduzia, em todos os detalhes, a convicção dos grupos de biólogos e antropólogos físicos.


A segunda reunião aconteceu em 1951 e o texto da segunda declaração

10 teve poucas diferenças e

importantes eliminações, trazendo a questão biológica, com menos observações de cunho filosófico, porém menos

enfática no tocante ao “determinismo cultural”.

No Brasil, a questão “raça” tem sido sistematicamente estudada desde as últimas décadas do século XIX,

até os anos de 50 e 60, do século XX, com desdobramentos até o presente.


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