domingo, 28 de julho de 2013

MUNTU

UMA REFLEXÃO DA EXPANSÃO DO POVO BANTO NO CONTINENTE AFRICANO E

DA INSERÇÃO SOCIOCULTURAL NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE BRASILEIRA


Este artigo determina uma arena, na qual, a mobilidade do espaço cultural e a sociabilização dos

bantos na África e no Brasil, redimensiona novos significados no âmbito da historiografia brasileira.

Traz como autor/protagonista, Raimundo Nina Rodrigues, maranhense, nascido em 1862, que

morreu em Salvador, em 1906. Professor da Faculdade de Medicina da Bahia foi ao seu tempo e, mesmo

depois de sua morte, um formador de opiniões. Na atualidade, mesmo tendo caído por terra suas teorias

raciais, deixou refletido e reproduzido, em muitos dos seus discípulos, o amargo da classificação da

inferioridade dos povos negros africanos e, especificamente, deixou para o imaginário brasileiro, a privação

do reconhecimento do grupo banto, como detentor da matriz africana com maior contribuição cultural para a

identidade nacional.

Longe de pretender estabelecer algum tipo de rusga e, reconhecendo, antecipadamente, a

incontestável importância do povo sudanês ou grupo iorubano na história brasileira, esse artigo propõe uma

reflexão em relação à narrativa do povo banto, na historiografia do Brasil.

Klein (2002) confirma que a diáspora africana para o território brasileiro envolveu negros das regiões

do ocidente, oriente e sudeste do continente: “

Muito embora [...] os escravos tenham sido levados de todos

os lugares da costa africana, a maioria dos que vieram para o Brasil originou-se das regiões do Congo e de

Angola

.”

Entretanto, Verger (2002), dando menor dimensão ao grupo banto, considera Angola, colônia

africana portuguesa, como viabilizadora do constante fluxo de escravos a partir dos portos de Luanda,

Benguela e Cabinda, mas tendo, o Brasil, apenas um pouco mais de dois terços de trabalhadores servis

negros da região de Angola. Destaca a predominância iorubana no Brasil, através do fluxo intenso de

migração entre os portos de embarque da Baía de Benin, na região da Nigéria e de Gana, conjuntamente,

com os portos de desembarque de Salvador e Recife, que se manteve mesmo depois de Portugal perder,

para os holandeses, a fortaleza de El Mina, na Costa de Gana, ao final do século XVII. Concluindo sua teoria,

foi no princípio do século XVIII, que o ciclo da Costa da Mina marca, efetivamente a chegada dos

daomeanos e, durante os dois últimos períodos, os nagôs-iorubás, justificando, a superioridade das religiões

afro-brasileiras pela derivação dos fundamentos e práticas religiosas advindas da região da África ocidental.

Verger, estende para todo o território brasileiro esses ciclos, mesmo registrando que “

as aparências

banto do Congo e Angola são mais aparentes no resto do Brasil

”. Ao definir a soberania iorubá na Bahia,

Verger não se ateve a forte presença banto em sua cultura local, principalmente, no recôncavo baiano,

corroborando com as teorias de Rodrigues (1977).

De acordo com Silva (1996), a dispersão do povo banto pelo território africano, foi evidenciada pela

importância da produção de alimentos, que resultou em altas densidades demográficas e tecnológicas, na

organização política e em outros ingredientes do poder, pois os povos que herdaram ou desenvolveram a

produção de alimentos, tornaram-se capazes de subjugar os povos geograficamente menos dotados.

Essa trajetória acontece em direção ao sul. Tal movimento tem o seu embasamento na afirmativa de

que “nem um só produto agrícola africano teve origem no sul”, pois, a maioria das plantas silvestres da

África meridional era imprópria para a domesticação. Nesse sentido, o grupo banto, que habitava a África

oriental, obtiveram o manejo do plantio do milheto e do sorgo e o domínio sobre o gado bovino de seus

vizinhos nilo-saárianos e afro-asiáticos como, também, a manipulação do ferro, pois a fundição do cobre já

era feita no Saara, pelo menos 2000 a. C.

A fim de potencializar a abordagem dessa temática, cuja estratégia inicial é identificar os

mecanismos que impulsionaram esse movimento migratório. Silva (1996) apresenta o termo Banto (bantu)

com o significado de “povo” ou “os homens”, plural decorrente de munto (

muntu), “o homem” como

denominação assemelhada nas diversas línguas bantas (cerca de 600), verificando-se com isso, que o termo

existe em quase todas, sendo, o mais antigo com o mesmo significado. Tais falas aparentadas cobrem uma

superfície de uns nove milhões de quilômetros quadrados, ao sul de uma linha quase horizontal, cortando o

continente africano, da baía de Biafra a Melinde. Constatando-se, também, que o termo banto aplica-se,

hoje, aos povos que somam mais de 200 milhões de pessoas, que utilizam um desses idiomas.

Nesse contexto, faz-se supor que as línguas bantas foram propagadas de um núcleo comum e, a

partir do estudo comparativo dos vocábulos e das gramáticas bantas modernas, imagina-se uma fala que

estaria na raiz de todas elas, o

protobanto, utilizado, há uns três ou quatro mil anos, em uma pequena área,

de onde começou a difundir-se e a modificar-se. Mesmo não sendo esse estudo focado em Lingüística, tal

disciplina perpassa dando ênfase e sustentação as teorias iniciais para a localização do movimento

migratório no continente africano.

Alguns traços culturais desse povo distinguem seus descendentes até hoje, através dos ritos de

iniciação à idade adulta, do culto ao gado e do saber cuidar de rebanhos de bois e cabras,

conseqüentemente, adquirindo a função de povos pastores, incluindo também, a prática agrária com o

cultivo do sorgo e milhos miúdos, a circuncisão e o enterramento dos mortos sob montes de pedra, com

alguns pertences de ferro e cobre e possíveis comidas e bebidas.

Silva (1996) continua a narrativa sobre a expansão do grupo banto no continente africano,

destacando o momento quando passaram a usar ferramentas de metal, acabando por formar um pacote

militar-industrial, insuperável na África subequatorial da época. No entanto, a trajetória dos bantos não foi

feita por exércitos, embora tivessem de valer-se algumas vezes do uso da força. No início, podem ter partido

em minoria, mas o volume de carne que a coletividade produzia e a eficácia de seus caçadores ia agregando

os povos vizinhos, os quais convertidos engrossavam os contingentes bantos ao longo do caminho. Algumas

vezes, territórios que lhes pareciam vazios, já eram ocupados por pequenos grupos caçadores e coletores,


coissãs

e pigmeus, que predominavam nas savanas e na maior parte das florestas, mesmo assim, rarefeita

ou não a população, o grupo banto ocupavam esses espaços.

Um grupo de bantos chegava, com apenas algumas famílias, ou com toda uma linhagem. Limpavam

o terreno, cortavam as árvores para fazer casas, armando as paredes como uma gaiola de varas e

preenchendo os vazios com barro socado, compondo o teto de sapé. Quando o solo começava a mostrar

menos fertilidade ou a caça se tornava mais difícil nas redondezas, o grupo seguia adiante. E, quando o

grupo estava muito grande, seguiam divididos. Mudando de paisagens e encontrando novas culturas,

enriqueciam o vocabulário, adquiriam novos hábitos e objetos, novos símbolos sagrados e de poder.

Os bantos ocuparam parte da floresta e tomaram as savanas no interior da África ocidental e,

também as florestas litorâneas mais úmidas, podendo esse fenômeno, ter sido iniciado em 3000 a. C. À

medida que se espalhava pela floresta equatorial da bacia do Congo, faziam hortas e aumentavam sua

quantidade. Em poucos séculos, em um dos avanços colonizadores mais rápidos da pré-história recente, os

agricultores bantos,

os xosas, foram até o rio do Peixe, na costa sul da África do Sul, 800 quilômetros a

leste, da hoje, Cidade do Cabo (DIAMOND, 2003).

No embasamento teórico, Alencastro (2000) apresenta uma visão da segunda metade do século

XVI, no Congo e em Angola, ao identificar os

jagas, do povo imbangala, bangala ou banguela, em navios

negreiros. Esses indivíduos traziam a divisa distintiva desses guerreiros: dois dentes arrancados da frente da

arcada dentária superior. Daí, o substantivo do português do Brasil,

banguela. Esse exemplo das marcas

banto pelo território brasileiro irá se seguir, no decorrer desse estudo, através de cientistas e historiadores

como: Sérgio D. J. Pena

Marcos Chor Maio2; Paul E. Lovejoy3; Mary Del Priore4; Joseph Ki-Zerbo5; Gomes

Eanes de Azurara

 Kwame Antthony Appiah7; João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima

Gouvêa

Arthur Ramos9; Elisa Larkin Nascimento10; Alberto da Costa e Silva11; Nei Lopes12; Edson

Carneiro

 Adriano Parreira14; Roy Glasgow15; Solival Menezes16, entre outros.

 

Homo brasilis: aspectos genéticos, lingüísticos, históricos e socioantropológicos da formação do povo brasileiro.

Ribeirão Preto, São Paulo: FUNPEC-RP, 2002.


 

Raça, genes, identidade política no Brasil Contemporâneo. In: Encontro Anual da ANPOCS, 27. Trabalho

apresentado no GT - Pessoa e Corpo - Novas Tecnologias Biológicas e Novas Configurações Ideológicas: Caxambu,

Minas Gerais, 2003.


 

A escravidão na África: uma história de suas transformações.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

 

Ancestrais: uma introdução à história da África Atlântica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

 

História da África Negra. 3 ed. Lisboa: Europa-América, 1999. v 1.

 

Crônica do descobrimento e conquista da Guiné. Lisboa: Europa-América, 1989.

 

Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

 

O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa – séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2001.


 

As culturas negras no Novo Mundo. 3 ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1979.


Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. v 1.

A enorme migração compulsória que, por mais de três séculos uniu a África ao Brasil, por meio do

tráfico, é o fenômeno que nos vai permitir aferir as possibilidades para a identificação dos grupos africanos

que circularam pelo território nacional, entre o século XVI e XVII, como elemento de definição geográfica, no

que tange, maior ou menor, influência das etnias africanas advindas do continente africano, desse período,

bem como, os padrões de redistribuição nas regiões brasileiras.

Curtin (apud Florentino) ressalta que entre os séculos XVI e XIX, 40% dos quase 10 milhões de

africanos importados pelas Américas desembarcaram em portos brasileiros. A segunda maior área receptora,

as colônias britânicas, no Caribe, conheceu pouco menos da metade da cifra. Esses números sugerem uma

organicidade ímpar entre o Brasil e a África, pois, entre nós, mais do que em qualquer outra parte, possuir

escravos significava basicamente conviver com africanos (FLORENTINO, 1997).

Como o trabalho de Manolo Florentino, destaca-se também em importância, por exemplo, os

autores: Affonso de E. Taunay

Philip D. Curtin18, Maurício A. Goulart19, Pierre Verger20, Herbert S. Klein21,

Robert E. Conrad

 Luiz Felipe de Alencastro23, Luís Henrique D. Tavares24, como pesquisadores com

estudos exclusivos, voltados ao tráfico atlântico para o Brasil.

Diversas variáveis definem a prevalência do grupo banto no tráfico de africanos para o Brasil,

mesmo que esses dados, na atualidade, denotem a influência negativa, pela constatação do alto índice de

“alcoolistas” na população brasileira. No entanto, a cachaça brasileira foi de grande valia para o tráfico de

Luanda, a maior cidade da costa ocidental da África e, centro fundamental na exportação de cativos das

Américas. Do final de 1600, até a proibição do tráfico ao sul do equador, em 1830, a cachaça foi a mais

importante bebida alcoólica importada pela capital colonial, permitindo aos comerciantes, na terra de Vera

Cruz, adquirir, por meio dela, uma proporção significativa de cativos. Durante o século XVIII, a cachaça foi o

principal elemento das relações econômicas brasileiras com Angola (CURTO, 1999).

Da perspectiva dos interesses comerciais brasileiros, o tabaco e a cachaça eram produtos de troca

bastante apropriados para o comércio em Luanda e interior. Primeiro ambos estavam entre os poucos

produtos coloniais que eram objeto de extensiva produção na terra de Vera Cruz, particularmente em



A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Fundação Biblioteca

Nacional, 2002.


 

Bantos, malês e identidade negra. São Paulo: Forense Universitária, 1988.

 

Religiões negras - Negros bantos: notas de etnografia e de folclore. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

 

Economia e sociedade em Angola: na época da rainha Jinga – século XVII. Lisboa: Estampa, 1989.


Nzinga: resistência africana ao colonialismo português em Angola (1582-1663). São Paulo: Perspectiva, 1982.

 

Mamma Angola: sociedade e economia de um País nascente. São Paulo: Ed. Universitária; Fapesp, 2000.

 

Subsídios para a história do tráfico africano no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941.

 

The atlantic slave trade: a census. Madison: Wisconsin University Press, 1969.

 

A escravidão africana no Brasil: das origens a extinção do tráfico. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.


Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a

XIX. 4. ed. Salvador: Corrupio, 2002.


 

The portugueses slave trade from Angola in the 18th century. In: The middle passage: comparative studies in the

atlantic slave trade. Princeton: Princeton University Press; pp. 23-50, 1978.


 

Tumbeiros: o tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985.

 

O tratado dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

 

Comércio proibido de escravos. São Paulo: Ática, 1988.

plantações em toda parte do interior da Bahia e de Pernambuco. Segundo eles eram produzidos por trabalho

de cativos, o que reduzia substancialmente o custo de suas produções. Terceiro, o tempo de navegação era

bem menor entre o Brasil e a capital colonial angolana, em relação a Lisboa, diminuindo em grande parte os

custos do transporte. No caso dos portos brasileiros, o tempo de viagem de Luanda ou de Benguela, oscilava

em torno de 35 dias para Pernambuco, 40 dias para a Bahia e 50 dias para o Rio de Janeiro. Quando uma

viagem, antes de 1700, entre Lisboa e Benguela levava entre 90 e 120 dias (CURTO, 1999).

O primeiro carregamento de cachaça e tabaco proveniente do Brasil, provavelmente, chegou por

volta de 1650, quase imediatamente depois que os agentes dos mercadores brasileiros começaram a montar

o tráfico em Luanda. Anteriormente o monopólio do tráfico em Angola era dos portugueses.

A entrada no Brasil dos cativos africanos se deu pelo Nordeste, no século XVI, pela necessidade de

mão-de-obra específica para a lavoura da cana-de-açúcar e, a seguir, para as fazendas de criação. Os

engenhos de açúcar foram os primeiros desses focos criados e desenvolvidos em Pernambuco e na Bahia.

Da Bahia os africanos se irradiaram para Sergipe e, de Pernambuco para a Paraíba e Alagoas. Nesse sentido,

atrela-se a característica agrária do povo banto, e, quando da penetração do território, com o conhecimento

pastoril do gado. Os currais avançaram ao longo dos séculos XVII e XVIII, por Pernambuco, Paraíba, Ceará,

Rio Grande do Norte e Piauí. Para o sul do Brasil, as fazendas de criatório provieram de sesmarias

concedidas em fins do século XVII e início do século XVIII (DIÉGUES JÚNIOR, 1980).

Em uma narrativa sobre a primeira década do século XIX, Koster (2002) registra a presença de

africanos bantos trazidos para Pernambuco, comumente conhecidos sob os nomes de Angola, Congo,

Rebolo, Angico, Gabão e Moçambique. Na Ilha de Itamaracá, no distrito de Amparo, Koster, enfoca a cultura

desse grupo, arraigada nas manifestações locais, ao narrar a festa anual de Nossa Senhora do Rosário,

dirigida pelos negros, elegendo, nessa época, o Rei e a Rainha do Congo. Koster relata, ainda, que os

negros dessa nação mostravam muito respeito para com seus soberanos. Diz, também, que cada distrito

possuía um Rei. O vigário abençoava no altar-mor as majestades e o novo Rei era coroado.

Além do aspecto de tradição folclórica, essas festas dos congos: Reis do Congo, Reisados e

Maracatus, tinham um significado social, revelando a tendência dos negros a agruparem-se tanto para a sua

defesa como para organização pacifica. Nesse sentido, as confrarias e irmandades, nas quais, os negros

contribuíam com quotas, produto do seu trabalho, para a compra de sua alforria e de seus companheiros,

demonstra a organização das instituições de resistência à escravidão.

Para sistematizar a chegada, dispersão e a regionalização da cultura banto em território brasileiro,

farão parte da contextualização teórica, autores como: Selma Pantoja

25 e outros; Júnia Ferreira Português26;

Manolo Florentino

 Júlio José Chiavenato28; Luís da Câmara Cascudo29; Gilberto Freyre30; Alberto da Costa

 

Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

 

Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo

Horizonte: Ed. UFMG, 2001.


 

Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre África e o Rio de Janeiro – séculos XVIII e XIX. São

Paulo: Compainha das Letras, 1997.


e Silva

Yeda Pessoa de Castro32; Luís Viana Filho33; Cleonir Costa34; Costa Porto35; Arthur Ramos36;

Antonia Aparecida Quintão

Vivaldo da Costa Lima38; René Ribeiro39; Núbia P. M. Gomes e outros40; Roger

Bastide

Melville Herskovits42.

O homem de origem africana e seus valores, de forma generalizada, foram sistematicamente

associados a qualidades negativas pelo europeu, antes mesmo do “descobrimento” do Brasil (FERREIRA,

1999).

Os estudos étnicos referentes ao negro no Brasil, privilegiaram o grupo iorubano/sudanês, como

modelo da matriz africana com maior prevalência no País, classificando de superior em seus aspectos de

organização social, cultural e religioso, em detrimento a cultura banto.

Essa teoria concebida por Nina Rodrigues, a partir das suas observações na última década do século

XIX, é fundamentada pela ideologia racial elaborada pela elite brasileira, caracterizada pelo ideário de

branqueamento. Ao evocar tal conscientização, esse trabalho pretende restabelecer o sentimento de uma

identidade coletiva. Não se trata, no entanto, de atribuir novos papéis a velhas teorias, mas, projetar, de

forma definitiva, o real papel do povo banto na fundamentação da identidade nacional no Brasil.

Desqualificando o passado histórico desse grupo estigmatizado, que teve sua participação classificada como

cultura inferiorizada.

Para analisar os efeitos e as conseqüências da formulação dessa teoria, se faz necessário observar,

os pressupostos de alguns movimentos e abordagens teóricas em relação às diferenças raciais, na

construção do embasamento científico, a partir do século XVIII.

Munanga (1999) contextualiza a visão dos doutrinários do racismo, pelos quais, o desenvolvimento

das culturas dependeria da pureza da raça. Por outro lado, o declínio de uma cultura seria explicado

facilmente, pela degenerescência que a mistura das raças provocaria.


 

O negro no Brasil: da senzala à guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1980.

 

Made in África. 5 ed. São Paulo: Global, 2001.


O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. 2 ed. São Paulo: Ed. Nacional; FJN, 1979.

 

Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova fronteira: Ed. UFRJ, 2003.

 

Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005.

 

O negro na Bahia: um ensaio clássico sobre a escravidão. 3 ed. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1988.

 

Aspectos da escravidão em Pernambuco: uma amostragem da documentação paroquial e cartorial de seus municípios.

In:

Revista de História Municipal. Ano III, nº 4, mar/1991. p. 51.

 

Escravos de Guiné em Pernambuco. In: Arrecifes. Edição nº 6, julho/dezembro, 1992. p.35.


O negro brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise. 2 ed. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Ed. Massangana,

1988.


 

Lá vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (século XVIII). São

Paulo: Annablume; Fapesp, 2002.


 

A família de santo nos candomblés jêjes-nagôs da Bahia: um estudo de relações intragrupais. 2 ed. Salvador:

Corrupio, 2003.


 

Antropologia da religião e outros estudos. Recife: Massangana; Fundação Joaquim Nabuco, 1982.

 

Negras raízes mineiras: os arturos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2000.

 

Estudos Afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1973.

 

Procedência dos negros do Novo Mundo. In: Estudos Afro-brasileiros (1º Congresso Afro-brasileiro realizado no

Recife, em 1934). Recife: Massangana; Fundação Joaquim Nabuco, 1988.



Ensaio sobre as Desigualdades das Raças Humanas, publicado

em quatro volumes entre 1853 e 1855, apesar de toda sua contradição, traz em seu princípio primordial a

teoria, observa Munanga, pela qual, o nascimento de uma civilização, não é absolutamente a doutrina da

pureza das raças, pelo contrário, a mistura das raças é a condição

sine qua non do progresso, do estado

“selvagem” ao estado da cultura.

Mas, em última análise, Gobineau diz que a civilização nasce de uma boa dosagem na mistura das

raças e que uma mistura excessiva a destrói. Em sua tese afirma, ainda, que um cruzamento, pelo menos, é

absolutamente indispensável; um segundo cruzamento, será provavelmente nocivo; enquanto que o terceiro

levará infalivelmente à ruína da civilização e do povo criado.

A idéia da mestiçagem tida ora como um meio para estragar e degradar a boa raça, ora como um

meio para reconduzir a espécie a seus traços originais, seja pelos referenciais teóricos dos europeus e dos

americanos do final do século XIX e de épocas anteriores, bem como, pelos iluministas do século XVIII,

denota, com respeito ao caráter ambivalente da mestiçagem, para explicar e confirmar a unidade da espécie

humana na opinião de Buffon e Diderot (apud Munanga), seja para negá-la, na concepção de Voltaire (apud

Munanga). Foi esse arcabouço pseudocientífico que repercutiu no pensamento racial da elite brasileira, com

todo o seu arsenal de contradições.

Nesse sentido, a pluralidade racial nascida do processo colonial representou uma ameaça e um

grande obstáculo no caminho da construção de uma nação que se pensava branca, daí porque a raça

tornou-se o eixo do grande debate nacional no final do século XIX, até meados do século XX, entre os

intelectuais brasileiros.

A falta de compreensão dessa população nacional deu início às dificuldades em definir a identidade

individual das etnias negras e seus descendentes mestiços, no Brasil. Sílvio Romero; Euclides da Cunha;

Alberto Torres; Manuel Bonfim; Nina Rodrigues; João Batista Lacerda; Edgar Roquette Pinto; Oliveira Viana;

Gilberto Freyre, entre outros, estavam interessados em formular uma teoria para a questão da definição do

brasileiro, enquanto povo, e do Brasil, como nação.

A questão estava em como transformar a pluralidade de raças, de culturas e de valores civilizatórios,

amalgamadas no conjunto do povo brasileiro. Em um ponto todos convergia, a inferioridade das raças não

brancas, sobretudo a negra.

Nina Rodrigues, em seu livro

As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil43 (apud

Munanga), com primeira edição em 1894, desacredita a tese de Sílvio Romero, segundo a qual, seria

possível desenvolver no Brasil uma civilização a partir da fusão da cultura “branca” com as contribuições

negras e índias, sendo as duas últimas consideradas, por Rodrigues, “espécies incapazes”. Rodrigues

considera que essa adaptação imposta e forçada de espíritos atrasados a uma civilização superior provocaria

desequilíbrios e perturbações psíquicas.


 

Salvador: Livraria Progresso, 1957.

Baseando sua teoria no atavismo

44, nos produtos de cruzamento inter-raciais, Rodrigues, rejeita,

também, a unidade étnica projetada no pensamento de Romero. Por isso, ele propôs, no lugar da unidade, a

institucionalização e a legalização da heterogeneidade, através da criação de uma figura jurídica denominada

responsabilidade penal atenuada. Com esse instrumento poderiam ser geridas as desigualdades entre as

raças e seus subprodutos que compõem a população, contemplando a ausência de um mesmo grau de

cultura mental.

Nina Rodrigues influenciou vários intelectuais com a sua idéia do atavismo. Euclides da Cunha

retoma esse pensamento de Rodrigues, em seu livro

Os Sertões45, editado em 1902, explicita que a

mestiçagem entre raças superiores e inferiores, apaga as qualidades das primeiras e faz reaparecer as das

últimas. Cunha coloca, ainda, que o Brasil não pode ser considerado como um povo, uma nação, porque é

etnologicamente indefinido por falta de tradições nacionais uniformes. Destaca, ainda, que a miscigenação

em grande escala, constituía o mais sério dos problemas que o Brasil enfrentava.

De acordo com as teorias de Rodrigues (1977):

“A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontáveis serviços à

nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o

revoltante abuso da escravidão, por maiores que se relevem os generosos exageros dos

seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como

povo”

Rodrigues (1977) remete os povos negros a meros colaboradores na colonização brasileira, e de

forma diplomática, enfoca a completa ignorância sobre o grau e as manifestações das culturas africanas,

bem como a procedência, impelindo as idéias errôneas, e, diz: “

E tudo isto bem nos pode condenar, a não

ser possível fazer-se mais tarde uma idéia justa da influência por eles exercida no nosso povo

”.

Continua Rodrigues (1977), levando em consideração que não poderia deixar de reconhecer a

história do negro brasileiro, estabelece como grupo superior a matriz sudanesa/iorubana:

“A verdade é que nenhuma vantagem numérica conseguiu levar a dos negros sudaneses,

aos quais, além disso, cabe inconteste a primazia em todos os feitos em que, da parte do

negro, houve na nossa história uma afirmação da sua ação ou dos seus sentimentos de

raça” (p.20).

Em busca de uma raça superior dentre os povos negros, Rodrigues (1977), confere a E. Reclus, a

chancela dessa superioridade, através de uma descrição, conferindo a ele o exato conhecimento da

“espécie” (sudanesa), da Costa Ocidental dos Escravos: “

a opinião pública conferia-lhes o primeiro lugar

pela força, beleza, qualidades morais, amor à liberdade. Foram os minas que mais freqüentemente lutaram

para reivindicar os seus direitos

 

 

Atavismo: reaparecimento, em um descendente, de um caráter não presente em seus ascendentes imediatos, mas, sim

em remotos. Fonte:

Novo Dicionário Aurélio. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

 

Rio de Janeiro: Record, 2000.

Arthur Ramos (1988), um dos discípulos de Nina Rodrigues, que vai de encontro as diversas

perspectivas “racistas”, reproduz os conceitos do “mestre” em favor de uma hierarquização da aculturação,

em que o grupo inferior estaria se aculturando ao superior:

“Continuando a reconhecer esse material de observação, o etnógrafo terá elementos

para completar os primeiros dados documentários e, principalmente, acompanhar a

evolução e transformações das espécies religiosas inferiores, já evidentes no tempo de

Nina Rodrigues, e que estão a seguir rapidamente a sua obra de sincretismo ao contato

com outras formas religiosas mais adiantadas”

Nesse sentido, várias idéias sobre a inferioridade banto, advêm dos estudos sobre o “problema” do

negro no Brasil, tendo com um dos pressupostos a existência de hierarquias culturais entre os indivíduos,

provinda da hierarquia de grupos culturais.

Raimundo Nina Rodrigues, em 1906, portanto, há 100 anos, iniciava a impressão do livro

Os

africanos no Brasil

, que se tornaria um clássico na história da etnologia brasileira. O autor falece e sua obra

passa 26 anos para ser reeditada. As idéias de Nina Rodrigues, que hoje contesto, celebram o seu primeiro

centenário. Mesmo estando suas teorias raciais superadas, (re)visitar seus estudos é sempre um exercício de

reconstrução histórica.


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