terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Poucas palavras, muita sabedoria


Mãe Stella destaca a sabedoria dos provérbios.
 
Maria Stella de Azevedo Santos
 
A cultura africana sugere que o que existe em potencial no universo pode ser materializado pela palavra. Além da palavra, a memória também é reverenciada pela oralidade. Os fatos passados são reavivados pela memória e re-atualizados pelos rituais. No Candomblé, a vivência mítica das divindades é cantada e contada através do que é chamado de Corpo das Tradições Orais, do qual os provérbios, ówe na língua yorubá, fazem parte.
Os provérbios fazem parte da oralidade africana, mas também de todos os outros continentes. É universal a maneira de falar em frases curtas e expressivas. Aristóteles disse: “relíquia que, em virtude de sua brevidade e exatidão, salvaram-se dos naufrágios e das ruínas das antigas filosofias”. Os provérbios podem ser conceituados como: Enunciados breves, de origem desconhecida, que expressam uma sabedoria a ser utilizada em qualquer tempo e lugar; Frases sintéticas, cujos conteúdos condensados expressam grande sabedoria; Fontes de prazer que, pela sua estrutura, possibilita ao cérebro fixar mensagens que colaboram para que o homem se harmonize consigo e com o outro.
Diz-se que uma frase expressiva é um provérbio quando: sua origem é desconhecida porque seu autor se perdeu no tempo, uma vez que geralmente é pronunciada de maneira natural a partir de uma determinada situação; torna-se popular, porque sendo criada a partir de uma circunstância particular, passa a ser utilizada pela população em geral, sempre que circunstâncias semelhantes voltam a acontecer; é universal, pois muitas frases curtas e com sentido são pronunciadas, mas só se tornam provérbios aquelas que possuem caráter universal, de forma ampla ou restrita – uma comunidade, por exemplo.
Hoje é muito comum chamar um agrupamento de pessoas, que na maioria das vezes possui a população de uma cidade de porte médio no nosso país, de comunidade. Nada errado quanto a isso, pois comunidade pode ser definida como ”qualquer grupo social cujos membros habitam uma região determinada, têm um mesmo governo e estão irmanados por uma mesma herança cultural e histórica”. Como também: Grupo de pessoas que comungam uma mesma crença e que se submetem a uma mesma regra religiosa. O Ilê Axé Opo Afonjá pode ser definido de acordo com esse último conceito de comunidade, onde os provérbios são bastante utilizados. Seguem alguns exemplos:
Você foi coroado rei, mas continua fazendo encantamentos para obter boa sorte. Você quer ser coroado Deus?
Quem está sufocado por dívidas não deve viver como um lorde.
Ninguém grita de dor quando cuida de suas próprias feridas.
A pessoa que trabalha duro, ganha a inimizade do desocupado.
Aquele que cai no buraco ensina aos que vêm atrás a terem cuidado.
Aquele que bate palmas para que o louco dance é tão louco quanto ele mesmo.
A boca que não se cala e os lábios que não deixam de se mexer só trazem problemas.
A boca não pode ser tão suja que seu dono não possa comer com ela.
O desconfiado sempre pensa que as pessoas estão falando mal dele.
Quem não sabe construir uma casa, monta uma barraca.
Somente um barril vazio é que faz barulho, um saco cheio de dinheiro permanece silencioso.
O que eu quero comer você não quer comer, devemos comer separados.
As características dos ditados populares fazem deles excelentes instrumentos de trabalho educacional. São características como: Brevidade – frases curtas que facilitam o registro e memorização da verdade embutida neles; Agudeza – fazem uma crítica da vida, usando uma dose de ironia, que facilita a reflexão sobre o tema criticado; Fontes de Prazer – os provérbios produzem prazer, não só pela agudeza, mas também por possibilitar o registro e fixação de uma sábia mensagem, tendo a energia mental economizada.
Os provérbios, portanto, podem e devem ser utilizados no sistema formal de educação, não só na área de Língua Portuguesa, mas em várias outras áreas. O ditado popular, em forma de sotaque – um dito picante – “quem nasceu para dez réis, nunca chega a vintém”, é excelente para falar dos tipos de dinheiro na história do nosso país.
Reflexão sobre o Sacerdócio nas Religiões Afro-brasileiras
Tata Anselmo faz reflexão sobre importância do sacerdócio afrorreligioso.
Foto: Marco Aurélio Martins |Ag. A TARDE
Taata Anselmo Santos Minatojy
 
É de se lamentar as notícias que estão circulando banalmente em nossa sociedade, através da mídia, com referência ao Sacerdócio nas religiões de matrizes africanas. Fico muito triste ao perceber que existe, por parte de alguns segmentos dos meios de comunicação, certa tendência em desqualificar o sacerdócio nestas religiões obedecendo ao forte estigma que nos acompanha há muitos séculos.
Por outro lado, a mudança radical de valores por que passa nossa sociedade, tem se alastrado com uma velocidade devastadora, fazendo com que uma religião de tradição oral como a nossa esteja sempre em alerta para defender seu patrimônio cultural e religioso, trazido até nossos dias através de muito sacrifício, sofrimento e morte de muitos dos nossos ancestrais.
Este novo entendimento dos valores que ocorrem na contemporaneidade acaba por agredir frontalmente os ensinamentos que conseguimos obter religiosamente, durante anos, nos Terreiros de Candomblé como forma de aprendizado para a manutenção de nossa tradição para o futuro. Existe um limiar muito tênue entre o aprendizado ancestral e a exigência imediatista da sociedade contemporânea, como se nesta pressa fosse possível avaliar e colocar em prática os ensinamentos que vêm sendo socializados durante séculos pelos adeptos do candomblé de forma pedagógica segura e de acordo com o grau de comprometimento que cada qual tem na religião.
Um sacerdote do Candomblé não se faz da noite para o dia e, segundo nossas tradições, é necessário anos de aprendizado e dedicação à religião para que o Nkisi/Orixá/Vodun determine que este ou aquele deva ser encarregado de manter e dar continuidade às tradições religiosas daquele grupo. Não é uma indicação feita por outro sacerdote que conduzirá alguém ao sacerdócio, pois cabe apenas às Divindades a condução para o mesmo.
A hierarquia religiosa do Candomblé é muito bem estruturada e definida, especialmente no que diz respeito às funções que deverão ser desenvolvidas por cada adepto, bem como sua importância, dentro do sistema hierárquico religioso praticado.
É assustadora a vulgarização e o desrespeito praticados contra a nossa tradição que temos assistido hoje em dia. A falta de aprendizado ancestral no seu próprio Terreiro e a falta de humildade das pessoas têm levado muita gente ao equívoco de se achar preparado para uma determinada missão no Candomblé, auto intitulando-se Sacerdote, quando as próprias Divindades ainda não o qualificaram para tal.
Creio que o remédio para estes males encontre-se nos próprios Terreiros de Candomblé cujos sacerdotes tenham como missão/comprometimento manter a tradição ancestral do mesmo não permitindo ou validando indevidamente qualificações equivocadas que para se firmarem necessitem de apoios ineficientes como os da Internet, literaturas de candomblé, aconselhamentos de pessoas que se dizem sensitivas ou qualquer outra prática que contrarie aquelas que aprendemos em nosso Terreiro, com nosso Sacerdote.
Precisamos lembrar a máxima que diz:
“As Divindades não escolhem os capacitados. Elas capacitam os escolhidos”.
Maria Stella de Azevedo Santos
Quem conseguiu driblar a morte e viveu para poder assistir a virada do século, não deixa de se assustar com as constantes ameaças de guerra. Muitos destes sobreviventes sentiram, de forma mais leve ou mais intensa, as conseqüências da primeira e da segunda guerra mundial, sem falar da guerra fria entre as duas maiores potências do século vinte, que deixava nossos corações realmente congelados de medo, a perguntar: será que o mundo se acabará com uma explosão atômica? Não, o mundo não acabou!
O homem continua a assistir não apenas ameaças de conflitos armados, mas também guerras realmente concretizadas. Uma análise mais profunda, no entanto, demonstra que o instinto guerreiro faz parte da natureza de todo ser vivo: no reino vegetal, presenciamos quando uma planta ataca a outra para sugar sua seiva; no reino animal, os animais lutam para demarcar seus espaços e conquistar parceiros; no reino hominal, os conflitos apresentam causas e conseqüências com maior nível de complexidade. A sobrevivência é a causa intrínseca de todas as lutas.
O homem guerreia para que seu corpo físico sobreviva. Ao mesmo tempo, busca incessantemente a paz, visando à imortalidade de sua alma. A alma que, para se manter encantada como os Encantados, necessita possuir elevadas virtudes, as quais conduzem à aquisição de axé – poder espiritual, que propicia o alcance da sublime sabedoria, que por sua vez se utiliza do bem e da verdade para conduzir o homem pelo caminho da paz. Digo caminho porque creio ser a paz não uma condição, mas uma busca, que se existe enquanto instinto, com certeza existe de fato. E se digo ser a paz uma busca, porque coloco-me como guerreira da paz, preparando meus filhos espirituais para serem também guerreiros fortalecidos pela fé, capazes de enfrentar grandes desafios e superar muitos obstáculos.
É comum se falar muito mal da guerra e, acima de tudo, temê-la. Se a guerra existe é porque ela é necessária, por mais estranho que isto possa parecer quando dito por uma religiosa. Entretanto, o Candomblé enxerga a guerra como algo tão natural e necessário, que a tem como um de seus dogmas, fazendo um ritual específico para este assunto, o Olorògún – Ritual para o Senhor da Guerra, através do qual os Omorixás -“Filhos de Santo” – são treinados para serem guerreiros da paz. É quando eles aprendem, entre outras coisas, a não começarem uma guerra que não tenham condições de terminar, nem parem no meio do caminho, pois correm o risco de serem atingidos pela negatividade.
A preparação de um bom guerreiro da paz implica, a princípio, na existência interior desse desejo. A partir daí o treino começa. Ele precisa adquirir algumas virtudes a fim de vencer “A Guerra Nossa de Cada Dia”. Para qualquer guerreiro, a maior de todas as virtudes é a coragem. É ela que impulsiona para a superação da inércia e, principalmente, do medo de ser julgado e condenado pelos deuses e homens.
Para um guerreiro da paz, a coragem sem a benevolência gera crueldade, que quando usada com o intuito de ganhar ou manter o poder sobre os outros, apresenta conseqüências extremamente desastrosas. O poder do guerreiro da paz é o poder sobre si mesmo! Tudo o que foi dito acima nos leva a perguntar: afinal, qual é a verdadeira guerra santa? Depois de muito estudo da Filosofia Yorubá e de muita reflexão sobre o tema, creio que posso dizer: a verdadeira guerra santa é aquela que destrói o que precisa ser destruído, a fim de construir o que precisa ser construído. E, assim, a vida se mantém em eterno movimento.
 
Maria Stella de Azevedo Santos é Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá
 
Taata Anselmo Santos Minatojy é tata de inquice do Terreiro Mokambo
 
 
 
Explanações sobre os Orixás
Mário Filho*

Para os Yorùbá tudo o que existe no Ayé (na Terra ou mundo físico) existiu, existe ou existirá no Òrún (o Céu, ou mundo espiritual). Neste diapasão os Yorùbás denominavam todos os seres existentes por um termo característico: Ará (Corpo). Estes podiam ser, conforme suas características:
- Ará Òrún (corpos do Além); ou
- Ará Ayé (corpos da Terra)

Os Ará Òrúnn, para os Yorùbás, se dividem em duas categorias principais:
- Os Àwon Ìmólè (divindades): as quais estavam associadas à estrutura da Criação;
- Os Onílè (Senhores da Terra), ou ancestrais, aqueles entes falecidos e, por seus atos louváveis, foram divinizados por seus descendentes.

Os Ese Itán Ifá (versos dos contos de Ifà), falam, com freqüência em seiscentos Ìmólè, classificando-os em quatrocentos Ìrùn Ìmólè e em duzentos Igbá Ìmólè: "Àwón Ìrínwó Ìrúnmolè Ojù Kótún; A ti Àwón Igbámolè Ojú Kósì." (Os quatrocentos Ìmólè do lado direito e as duzentas Ìmólè do lado esquerdo). Isto significa que os Ìmólè podiam ser divididos em Geradores (Irinwó) e Gestantes (Igbá), mas todos os pesquisadores e os religiosos africanos acreditam que o número de seiscentos Ìmólè era um número místico, com função de emprestar grandeza ao conceito de Divindade. O que importava era dizer que os Imolé eram de uma quantidade grande e desconhecida. Há alguns Imolé nomeados, mas cujos cultos foram esquecidos no Brasil: Òranfè, Agbona, Erikiran, Erinlè, Olúwà, Òkè, Àgbàlá, Morèmi, Ìkirè, Ìjá, Olùfòn, Eteko, Olúrógbó, entre outros.

Analisemos o que diz Verger: “A religião dos Òrìsà está ligada à noção de família. A família numerosa, originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos e os mortos. O Òrìsà seria, em princípio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabeleceu vínculos que lhe garantiram um controle sobre certas forças da natureza, tais como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização. O poder, àse, do ancestral - Òrìsà teria, após a sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de possessão por ele provocada.” (in Orixás, pág. 18)
O mesmo autor diz: “Òrìsà é força pura, àse imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos incorporando-se um deles. Esse ser escolhido pelo Òrìsà é chamado de elégùn – aquele que tem o privilégio de ser ‘montado’, gùn (não confundir com egún, gn), por ele. Torna-se o veículo que permite ao Òrìsà voltar à Terra para saudar e receber as provas de respeito de seus descendentes que o evocaram.”
Vemos, então, que o culto aos Òrìsà é um culto familiar. Mesmo que a família não se estabeleça, nos padrões que conhecemos, há uma substituição do conceito familiar dentro de uma roça, Ilé Àse, Terreiro, Tenda, Templo etc, quando “ganhamos” novos “Irmãos” havendo, então, uma nova forma de família, onde o elemento de ligação é o culto aos Òrìsà. O nosso Òrìsà escolhe, ou é escolhido (dependendo da forma em que se atua com ele). Nesse momento nós passamos a ser um dos seus descendentes, um daqueles que é de sua família. Entramos, assim, na questão da chamada “família espiritual”. É baseada nesse conceito que se faz a iniciação para o Òrìsà daquele futuro “Omo Òrìsà” (filho do Òrìsà). Ele é, digamos assim, “adotado” em sua família (a do Òrìsà e não a do Zelador).

Para mim e para os meus mais velhos há dois tipos de Òrìsà: os que vieram diretamente do Òrún, enviado por Olódùnmarè e os que foram divinizados pelos seus atos e comportamentos.
Pierre Verger diz: "A religião dos Yorùbá se torna, gradativamente, homogênea, e a sua atual uniformidade é o resultado de uma longa evolução e da confluência de muitas correntes provindas de diversas fontes. Seu sistema religioso se baseia na concepção de que cada ser humano é um representante do deus ancestral."

Temos, então, um amálgama que não se pode desprezar. Hoje há os Òrìsà, digamos, de todos os Yorubá, como p.ex.: Ógún, Sàngó, Òsún etc e os de algumas comunidades específicas, tais como Òsóòsì, Ìyéwá, Erìnlè etc.

Além disso há muitas coisas que aconteceram e acontecem na África que não são ditas aqui em nossa terra. Acabaram virando tabu. Tancredo da Silva Pinto, que esteve em Angola e Nigéria, entendeu muito bem como se inter-relaciona os mundos entre os Òrìsà e as "entidades", que se pode ver muito bem no Omolokô. Vamos citar algumas diferenças (observadas in loco):
- Na África, ao ser iniciado para o Òrìsà, você já recebe seus búzios, pois é a forma com a qual você irá se comunicar com ele. Isso é muito natural!
- Fica-se no "roncó" (camarinha) de três dias a uma semana. Em casos isolados 21 dias, mas é muito raro.
- Na África é comum fazer iniciação para mais de um Òrìsà. No Brasil só se fala em se iniciar para apenas um e ponto final! Mas muitos se esquecem que o Bàbálòrìsà Agenor Miranda foi iniciado para dois Òrìsàs distintos e aqui no Brasil, primeiro para Ìyéwá (Euá) e depois para Òsálá (Oxalá).
- Algumas incorporações demoram dias a fio. Há relatos de pessoas que ficaram incorporadas por três meses, sem beber e nem comer.
- Na África se incorporam os ancestrais e outros tipos de espíritos, que não são os cultuados nas sociedades Egúngún. Por exemplo: há os Òkú Òrún, os Àgbàgbà, os Èsà para citar alguns e para falarmos na questão do povo Yorubá. Observação: antes que me corrijam os Èsà também se manifestam no culto aos Egúngún.
- Nas comunidades bantus as coisas ficam mais claras, pois além da incorporação dos Nkices (Inquices) também havia a incorporação de entidades variadas, inclusive de animais. Alguns nomes que a Umbanda usa hoje para denominar entidades vêm dessa tradição: "Tata Caveira", por exemplo.

Temos observado, hoje, um movimento de retorno às origens, inclusive na África. A Kimbanda, como religião, está sendo resgatada pelos angolanos, que se recusam a continuar sendo católicas como os seus antigos colonizadores portugueses. Há, também, muitas casas de Umbanda que têm se aproximados das tradições africanas, especialmente às da Macumba, da Cabula etc.
Muitas coisas foram acrescentadas e misturadas. Isso não aconteceu só no Brasil, mas o foi, também, na África. Voduns foram acrescidos ao panteão yorùba. Nanan Buruku, Omolu, Ewa, entre outros, foram "mesclados" e passaram a compor um novo aspecto. Na Umbanda isso também aconteceu. Já não ouviram dizer: Que Zambi o abençôe! ou Que Oxalá o abençôe! Para muitos umbandistas Nzambi e Òşàlà são a mesma coisa e muitos crêem tratar-se de Jesus, o Cristo.
Em muitos rituais do Candomblé Ketu se cantam músicas para Orixá, Vodun e Nkisse, para homenagear o Orixá que está no barracão. Por exemplo: fui, em certa ocasião, numa saída de Xangô. Como diziam que o Xangô que estava em terra era muito antigo deveriam cantar para Nzazi, então iniciaram uma série de cânticos do Culto Angola-Congo. Confesso que achei isso estranho, mas os Zeladores mais antigos parabenizaram o Ogan por saber tantas músicas daquele Vodun, sendo ele um Ògán de uma casa de Ketú. Lembrando que o Sàngó (Xangô) que estava em terra sabia as coreografias de ambas as nações. Por isso é difícil encontrarmos o que é oficial. O culto aos Òrìsàs, Voduns, Nkisses, segundo dizem os próprios africanos, é um culto dinâmico, mutável, que vem ao encontro das necessidades de seus praticantes.
 
 
SOLUÇÕES PARA O PROBLEMA DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA: CUMPRIMENTO DA LEI E EDUCAÇÃO PARA A ÉTICA, O RESPEITO À DIVERSIDADE E À LIBERDADE
Por Cristina Zecchinelli

Publicado originalmente em: http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/1980410:BlogPost:57996


“Historicamente, a intolerância está presente na esfera das relações humanas fundadas em sentimentos e crenças religiosas. É uma prática que se autojustifica em nome de Deus; adquire o status de uma guerra de deuses encarnados em homens e mulheres que se odeiam e não se suportam.” ( Antonio Ozaí da Silva )


“De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus”.(José Saramago - O Fator Deus, 2001)


A intolerância religiosa é uma doença que de tempos em tempos torna-se epidêmica e precisa de tratamento continuado e prevenção. É um mal social, cuja cura passa pelo cumprimento da lei e pela educação. Um mal que atinge uma camada imensa da população global, que fere a dignidade humana, e a liberdade consciencial, que se baseia no preconceito, na discriminação e na pretensão de alguns em serem “os donos da Verdade”, que se sentem possuidores de alguma “procuração de Deus” para em seu nome, achincalhar, invadir, prender, torturar, matar, espoliar, e por fim,exterminar o outro.
E o outro é aquele a quem não se dá o direito de ter pensamento próprio, aquele a quem não se dá a liberdade de ser quem é, aquele que o intolerante julga intelectual e moralmente incapaz de fazer uma escolha “certa”. Porque qualquer escolha que não seja a sua - do intolerante- é errada.
Para se tentar acabar com a intolerância, é imprescindível tratá-la como doença, cujos remédios são a detecção e denúncia de sua existência, a exigência do cumprimento da Lei e, para prevenir sua recidiva e evitar o surgimento de novos casos; a execução uma ação intensiva e continuada de conscientização e educação plena de idosos, adultos, adolescentes e crianças; uma educação para a tolerância, para a compreensão, para a alteridade e o respeito. Num processo que envolva o comprometimento de toda a sociedade.
As justificativas dadas pelos intolerantes, principalmente pelos intolerantes religiosos vão desde a necessidade do cumprimento das “Leis de Deus” interpretadas e manipuladas a seu bel prazer, por interesses bem humanos e pouco religiosos - que no caso do Brasil desrespeitam a Constituição Federal – às questões de “segurança nacional” como ocorreu na América do Norte em relação ao Iraque.
A história nos mostra que a discriminação e a intolerância religiosa, foram e são responsáveis por guerras, fratricídios, genocídios, holocaustos, por divisões entre famílias e ódios milenares que são repassados e cultivados geração a geração por séculos, até que se percam da memória os reais motivos por que começaram. São frutos da manipulação política, social, econômica e ideológica. Criadas por mentes que anseiam pelo poder e a riqueza, tentam usurpar do Homem o direito e a capacidade de autogestão espiritual, de pensar e agir conforme suas próprias convicções, de avaliar por si mesmo o mundo em que vive.
A intolerância religiosa nasce da “fé cega” e não raciocinada de muitos dirigida pela astúcia de uns poucos que se aproveitam dos fiéis para obter poder, riqueza e vingança. Vingança quanto àquilo que não encontram em si mesmos, resultante da inveja, do ressentimento e da incapacidade de ser verdadeiro, original, de encarar de frente a luta para se ver livres de suas fraquezas, de agir com liberdade, de ser feliz . Nasce do desejo de destruir no outro aquilo que mais se admira, porém não se tem força, determinação, ousadia ou poder para ser.
A intolerância nasce da mesquinhez humana, do medo de ser, de fazer-se Ser, de ousar, de arriscar o novo, de pensar, questionar e refletir sobre o que já está estabelecido. Nasce da aceitação rancorosa das regras e dogmas contra os quais não se tem coragem de lutar, levantar a voz ou a dúvida.
Busque-se o intolerante e encontrar-se-á uma mente fechada, um espírito enrijecido, ressentido, engessado por sua própria deturpação da realidade. E que por isso mesmo precisa manipular o mundo à sua volta de modo a sentir-se seguro; convencendo esse mesmo mundo da necessidade de fechar-se em dogmatismos, fundamentalismos e fanatismos. Levando o fiel a um não-pensar, condicionando-o a um pensamento único e repetitivo, ao jugo de uma mentalidade tão estreita que dela não possa libertar-se e ao convencimento de que assim terá uma parte desse poder para si.
É certo que as massas se inflamam e se deixam levar por um bom orador. Não faltam exemplos na história. Sabemos que a repetição de uma inverdade não faz com que ela se torne “a Verdade” porém, pode levar muitos a crer que assim o seja.
Se o gérmen do fanatismo é individual, talvez presente de forma latente no Homem, se ele pode ser despertado e cultivado através do convencimento, da incitação, da repetição e do incutir continuado da idéia de estar cumprindo uma “missão sagrada”, um “designo divino” que pode livrar o homem do inferno e levá-lo ao paraíso; por outro lado há no ser humano toda uma generosidade, uma capacidade de empatia e de compreensão, de amor e fraternidade que precisa ser trabalhada quotidianamente em prol do bem comum, do cumprimento da lei, da tolerância religiosa e da liberdade.
Para se tentar acabar com a intolerância faz-se necessária uma ação de conscientização e educação plena de anciãos, adultos, adolescentes e crianças. Uma educação para a tolerância, para a compreensão, a alteridade e o respeito. Num processo que envolva o comprometimento de toda a sociedade. Idéia muito bem explicitada por Nelson Mandela:
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.”


Paulo Freire explica que ensinar exige aceitação do novo, rejeição a qualquer forma de discriminação, consciência de inacabamento, respeito à autonomia do educando, bom senso, humildade, tolerância, e também nos mostra que a educação é ideológica, portanto para modificar o quadro da intolerância faz-se necessário que a educação tenha uma ideologia pró-tolerância, pró-respeito, pró-alteridade. Que entre o que pregamos e o que efetivamente vivenciamos haja coerência, constância , exemplificação e assunção de si.
As crianças antes mesmo de entrarem para a educação formal nos observam e gravam em seus inconscientes os pequenos ou grandes gestos em que contradizemos ou confirmamos nossas palavras. Disso resulta que se não nos educarmos primeiramente, se não corrigirmos primeiro nossos vícios preconceituosos não conseguiremos alterá-los nas mentes das próximas gerações. As mentalidades se alteram em velocidades mais reduzidas que as modificações físicas do mundo.
Cabe aos incomodados, seja pela intolerância que vivenciam seja pela que vêem outros vivenciarem, a vigilância sobre o efetivo cumprimento da lei, o auto-policiamento de forma a não cair no mesmo erro que condena em outros, e a responsabilidade de agilizar e perseguir com garra e determinação a mudança de mentalidade necessária à criação de um futuro verdadeiramente fraterno, igualitário e livre.
Montesquieu que em 1715 já nos dava sua opinião sobre a questão da intolerância religiosa:
“Admito que a história está repleta de guerras de religião. Mas é preciso prestar bem atenção. Não foi a multiplicidade de religiões que produziu essas guerra, foi o espírito de intolerância que animava aquela que se julgava dominante.(grifo nosso) È esse espírito de proselitismo, que os judeus tomaram dos egípcios e deles passou, como doença epidêmica e popular, aos maometanos e cristãos.
É finalmente esse espírito de vertigem, cujos progressos não podem ser considerados senão como um eclipse total da razão humana.
De fato, finalmente, se não houver desumanidade em afligir a consciência dos outros , se disso não resultasse nenhum dos maus efeitos que pululam aos milhares, seria preciso ser louco para voltar-se contra isso. Aquele que quer me levar a mudar de religião não o faz sem dúvida senão porque ele não mudaria a sua, caso se quisesse forçá-lo a isso; acha estranho, contudo, que eu não faça uma coisa que ele próprio não faria talvez em troca do domínio do mundo.” (Montesquieu)
E de certa forma sugeria ao intolerante que começasse a refletir sobre suas motivações, tentasse olhar a si mesmo com o olhar do outro.
A discriminação, filha do pré-conceito que impede o homem de observar de forma “desarmada” o mundo à sua volta e que o impele a julgar e condenar sem antes perceber com alteridade, é por sua vez mãe da intolerância, que exige dos seus adeptos posicionamentos irrefletidos, confeccionados em cima do suposto direito de ser o dono de uma “verdade única”, indiscutível, intocável, somente a eles pertencente.
Nietzche, em sua “Genealogia da Moral” já nos falava dos ressentidos, aqueles que por incompetência para a ação, covardia ante a luta pela liberdade, e humilhados pelo próprio reconhecimento de sua fraqueza de caráter, criam mecanismos para através da religião, do medo do inferno, do conceito de pecado dobrar aos seus caprichos as consciências nobres e livres mantendo-as cativas de suas imposições. Adquirindo poder não pela força, coragem e ousadia, que não têm, mas pela transformação dos conceitos de bom e mau, do bem e do mal. Pela inculcação de idéias distorcidas e torturadas, usadas “em nome de Deus” de forma a assenhorear-se do poder sobre as consciências e os atos humanos.
Sob a bandeira do “em nome de Deus”, os homens matam, saqueiam, estupram. Pela “honra” de Deus e em “Seu” nome destroem vidas, famílias e futuros. Prendem, torturam, queimam. Designam mesmo se o outro ser humano pode ou não ter uma alma.
Passam horas remoendo ressentimentos, orquestrando planos de dominações, vinganças e extermínio. Discriminam porque discriminar faz com que se sintam melhores ante seu Eu interior, que os condena pela própria covardia e inépcia diante da vida. Tornam-se intolerantes e levam outros à intolerância, pois essa é a sua forma de vingança, de obtenção de poder e força. Usam o nome da divindade como se Ela lhes pertencesse, e lhes coubesse o dever de manipulá-la. Em sua megalomania sentem-se o próprio Deus: oniscientes, onipresentes e onipotentes, porém sabem lá no fundo de si mesmos que são iníquos.
A história prova que o Homem pratica a discriminação e a intolerância numa constante, com alguns lapsos de tempo em que o interesse político se sobrepõe da alguma forma ao interesse religioso e permite outras formas de manifestação da fé, coibindo por certo tempo os intolerantes.


Intolerância intra-religiosa.
A Intolerância não ocorre somente em relação a membros de outras crenças. Ocorre também numa versão intra-religiosa , sob certos aspectos ainda mais grave e menos compreensível. Os motivos são os mesmos: pretensão de possuir a “verdade única”, desejo de poder, necessidade de dominação do outro, falta de educação para a alteridade, o respeito e a ética, e principalmente, no caso do umbandista, falta de coerência entre aquilo que prega, o que realmente pensa e vivencia na prática cotidiana. Falta de internalização da doutrina umbandista em sua essência.
É normal que surjam discordâncias de opinião entre membros de uma mesma religião, o que não se pode é admitir que isso se torne discriminação e intolerância, que levam é a desunião e à destruição da fé. O umbandista prepotente e preconceituoso nega a própria Umbanda em seus princípios de igualdade, compreensão e respeito. E o faz, certamente sem o aval da espiritualidade, embora pretenda fazê-lo por ela e em nome dela. Sendo a Umbanda, como é, uma religião de diversidade, multiplicidade, igualdade, nascida para abarcar em seu seio todo aquele que dela precisar, sem preconceitos e discriminações, trazendo desde sua “anunciação” a determinação de incluir os excluídos, compartilhar conhecimentos, como indicam as frases atribuídas ao Caboclo das Sete Encruzilhadas
“Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados.”
“e nós aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais e ensinaremos aqueles que souberem menos e a nenhum viraremos as costas”


E ainda, diz o Caboclo, referindo-se aos espíritos trabalhadores da Umbanda:
“Aqui inicia-se um novo culto em que os espíritos(...) poderão trabalhar em benefícios dos seus irmãos encarnados, qualquer que seja a cor, raça, credo ou posição social. A pratica da caridade no sentido do amor fraterno, será a característica principal deste culto, que tem base no Evangelho de Jesus e como mestre supremo Cristo”.


Se a intolerância religiosa é algo nada divino e pouco humanitário, quando passa a ser intra-religiosa se torna mais absurda e revoltante, incoerente e hipócrita. As correntes de pensamento dentro de uma mesma crença podem ter visões diferenciadas e mesmo alguns projetos e pontos de vista divergentes sem por isso perder-se da essência da religião, e mais, é provável que seja a partir dessas diferenças que as religiões se atualizem em certos aspectos e aumentando suas condições de sobrevivência através dos tempos. Isso não quer significar que tenham por isso que se digladiar ou que não possam chegar a um consenso.
Encontramos divergências internas no Judaísmo, no Cristianismo, Islamismo e em quase todas as outras religiões, faz parte do aspecto mais humano delas. Mas souberam se unir e se preservar apesar das diferenças.
No entanto, a mesma situação, quando ocorre entre umbandistas causa triplo efeito:
1º) Contraria os fundamentos da religião;
2º) dá aos detratores externos mais argumentos contra o todo umbandista,
3º)Gera desunião e mau exemplo.


Mas principalmente demonstra que esse umbandista, nada aprendeu com a Umbanda ou sobre a Umbanda. Como escreve Etiene Sales :
“Em uma época em que a Umbanda e o Candomblé sofrem cada vez mais ações de preconceito e discriminação, fora as diversas perseguições de algumas denominações Evangélicas (seja através de relações ilegais com o tráfico, seja por ataques nos meios de comunicação: rádio e televisão, principalmente), os Umbandistas não conseguem perceber o seu próprio preconceito interno e contra os Candomblecistas.”(...) “É estranho o Umbandista gritar contra o preconceito que sofre por parte de outras religiões, mas não conseguir enxergar o preconceito existente dentro da própria Umbanda.”


Lembra portanto, que o Umbandista intra-preconceituoso precisa reavaliar seus conceitos, reeducar-se, repensar-se enquanto umbandista e ser humano.


Conclusão
Parece só haver uma maneira de se tratar a intolerância. Faz-se necessário educar para a tolerância, a alteridade e a compreensão. Esse processo precisaria alcançar desde os mais idosos aos recém nascidos, visto que é do berço que se começa a educar o ser. Posto que, é desde a mais tenra idade que o ser humano ao observar ainda que de forma inconsciente o mundo a sua volta começa a criar dentro de si seus conceitos e pré-conceitos que poderão levá-lo à discriminação e à intolerância. Logo, se não educarmos cotidianamente a sociedade para o respeito ao outro e para tolerância jamais poremos fim ao preconceito, à discriminação e a intolerância.
Combater esses males sociais é dever de todos, responsabilidade à qual não podemos nos furtar. Ao Estado, cabe fazer cumprir o que determina a Constituição Federal e punir com o rigor da lei aqueles que violarem o previsto no artigo 5°CF e em outras leis afins. Ao cidadão cabe a denúncia do ato de intolerância ou discriminação e a cobrança junto aos órgãos competentes para cumpram sua função.
A Umbanda, religião brasileira, nascida sob a égide da igualdade e da fraternidade, da inclusão e da caridade, não permite nem deverá jamais permitir que entre seus adeptos ou por parte deles surja qualquer tipo de discriminação ou intolerância sob qualquer pretexto ou nominação.
No entanto, essa mesma Umbanda, multifacetada, multirracial, multi-étnica, plural, que vive a diversidade sem desigualdade, que respeita a fé e as formas de manifestação de crença de outros , é continuamente atacada e agredida (interna e externamente) , e por mais que a maioria de seus adeptos busquem a paz , o respeito e a compreensão do outro é chegado o momento de fazer valer a Lei e que dá ao homem o direito de escolher e praticar livremente a sua religião e tê-la respeitada e resguardada contra ataques de intolerantes.
Cabe ao umbandista como membro de uma religião pacifista , includente, e a favor da diversidade, como homem e como cidadão, agindo dentro da ética , da Lei e de acordo com os princípios da Umbanda fazer valer seus direitos. E Isso começa pela assunção de sua condição de umbandista, brasileiro e cidadão que cumpre seus deveres e obrigações, e exige que sejam respeitados seus direitos. Essa mesma premissa exige que se comece de dentro, através do combate a discriminação intra-religiosa.
Fica a cumprir a tarefa que pertence a todo brasileiro consciente: contribuir através da educação e do exemplo e da ação positiva para a transformação do Brasil - cuja vocação é a multiplicidade de raças, credos e etnias - em um país onde as diferenças sejam verdadeiramente respeitadas, a diversidade cultivada, a lei cumprida, a desigualdade e a intolerância banidas para que tenhamos mais que nunca orgulho de chamá-lo: Nossa Pátria, Brasil!
Por fim, deixo aos umbandistas uma reflexão contida na mensagem de Etiene Sales:
“Devemos aproveitar esse momento de oportunidade divina, mediante a adversidade da intolerância de outras religiões, para acabar com as nossas próprias intolerâncias internas. Devemos aproveitar o momento para criar uma união de fato. Algo lento e gradativo, mas que é necessário a nossa existência, pois necessitamos muito uns dos outros, pois unidos seremos fortes, desunidos seremos sempre presas fáceis e frágeis, mediante a qualquer conflito que nos cerque”
 
 
Importância do estudo da mitologia africana para a melhor compreensão da Umbanda e do Candomblé
Mário Filho*

É essencial que os Umbandistas conheçam a mitologia africana e não apenas a nagô, mas todas aquelas que se ligam ao "panteão" adotado na Umbanda. Por exemplo: Omolu e Nanan não são Orixás de origem nagô (provavelmente sejam de origem nupê, tapá, ou mahi, não há um consenso), mas foram agregados ao panteão nagô, pela sua importância e força.

Segundo o africano Prof. Dr. Sikiru Salami (que mora no Brasil) o Orixá Omolu não é original do povo nagô, mas todos, hoje em dia, na Nigéria o cultuam por ser um Orixá extremamente benfazejo. Isso rebate a acusação de que Omolu ou Obaluaiyê mandariam pestes às pessoas, mas ao contrário, cura-as delas.

Falando-se, então, dos mitos: Joseph Campbell, um dos maiores antropólogos, em seus estudos sobre mitos mundiais, descobriu que todos eles são a mesma história, porém contadas com inúmeras variações e adaptadas à realidade de quem a conta. Seus detalhes são diferentes em cada cultura, mas, fundamentalmente, são sempre iguais. Ainda declara Campbell: “...toda cultura antiga e pré-moderna utilizava uma técnica ritmada para contar histórias retratando os protagonistas e antagonistas com certas motivações e traços de personalidade constantes, num padrão que transcende as fronteiras da língua e da cultura”.

Assim, podemos concluir que é necessário sim discutirmos e estudarmos a mitologia africana, riquíssima, que deve servir, assim como os demais famosos mitos, tais como os nórdicos, os gregos e os romanos, de base para nosso aprendizado moral e religioso, pois como podemos ver todos tem a mesma origem e falam da mesma coisa. É fundamental que o umbandista estude, e muito, tudo aquilo que cerca o mundo dos Orixás, Inkices, Voduns e Entidades!

Infelizmente o que temos visto é a clara imposição daquilo que o Prof. Mário Teixeira de Sá Júnior chama de "embranquecimento umbandista", ou seja, o afastamento proposital da Umbanda de suas origens africanas, de sua “negrura”, perpetrado pelos "intelectuais umbandistas" que foram influenciados pela discriminação racial no Brasil, especialmente entre o término da escravidão e o fim da Era Vargas.

Vamos discutir um pouco sobre esse assunto, analisando alguns fatos históricos:

Como se sabe, em 1941, a União Espírita da Umbanda no Brasil, primeiro órgão federativo de Umbanda em nosso país, realizou a 1ª Conferência sobre o Espiritismo da Umbanda, inclusive com a participação de Zélio Fernandino de Moraes (pois foi o Caboclo das Sete Encruzilhadas que determinou que se fizesse o Congresso), que foi uma tentativa para definir e codificar a Umbanda como uma religião com direitos próprios. A conferência foi e ainda é conhecida por promover o distanciamento da Umbanda das religiões Afro-brasileiras existentes à época (Macumba, Cangerê, Cabula, entre outros). Os participantes concordaram em fazer dos trabalhos de Allan Kardec a doutrina da Umbanda. Lembro aos leitores que nessa conferência estavam presentes todos os maiores expoentes da Umbanda no Brasil, além de todos os dirigentes das 7 Casas fundadas pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas.

Nesse esforço para legitimar a Umbanda como uma religião original e evoluída os participantes procuraram cortá-la, totalmente, de suas raízes Afro-brasileiras, concluindo que:

- A origem da Umbanda foi traçada no Oriente de onde, se dizia, teria se espalhado para a Lemúria, depois Atlântida e daí para a África. Na África a Umbanda degenerou em feitiçaria (sic). Desta forma foi trazida para o Brasil pelos escravos negros. A influência africana da Umbanda não era assim negada, mas olhada como uma corrupção da tradição religiosa original, na sua fase anterior de evolução. (Quanto racismo e intolerância, gn);

- A Umbanda, teria ficado exposta ao barbarismo africano, na forma vulgar dos costumes, praticada por povos de costumes rudes, defeitos psicológicos e étnicos (Idem);

- Outro jeito de retirar o caráter africano da Umbanda foi expresso no reconhecimento de que ela se originou na África, mas na África oriental (Egito), portanto na parte mais ocidental e civilizado do Continente. (Ibidem);

- A influência africana da Umbanda foi reconhecida como uma mal necessário que serviu meramente para explicar sua chegada e desenvolvimento no Brasil, nada mais que isso! Além disso o Congresso afirmou que o Kardecismo é a doutrina que a Umbanda deve seguir, como norteador de sua parte teórica. Um dos objetivos da conferência era, dessa forma, traçar as raízes genuínas da Umbanda do Oriente. A invenção de raízes orientais - somada à negação das africanas refletiu na definição do termo Umbanda, palavra derivada da língua Bantu, em algumas de suas diversas formas. Declarou-se, fugindo do termo em Quimbundo, que umbanda teria vindo do Sânscrito “aum bhanda”, termos que foram traduzidos como "o limitado no ilimitado", "Princípio Divino, luz radiante, fonte de vida eterna, evolução constante". Essa interpretação foi dada por Diamantino Fernandes, da Tenda Mirim. No entanto, não existe no léxico hindu nenhuma palavra “bhanda”.

Os participantes se esforçaram, portanto, em associar a Umbanda com coisas como as tradições religiosas esotéricas européias e as novas correntes religiosas da Índia, representada especialmente por Vivekananda e pelas ideias teosóficas de Helena Petrovna Blavatsky, que estavam na moda naquela época.

Não devemos utilizar definições da Sociedade Teosófica, ou de afirmações de sua maior expoente, H. P. Blavatsky, como doutrina umbandista, pois o que ela diz é uma deturpação de parte do hinduismo, que deve ser estudado como um todo. A questão de raças, exemplificado por ela, não está em consonância com os maiores estudiosos do hinduismo, que não falam dessa questão de raças superiores e inferiores como ela expõe. Essa é mais uma teoria eurocentrista e ocidental, que visa dar uma superioridade à raça branca, em detrimento de todas as outras raças.

Houve, ainda, mais dois Congressos: o segundo realizado em 1961, organizado por Leopoldo Bettiol, Oswaldo Santos Lima e Dr. Armando Cavalcanti Bandeira, e o terceiro foi organizado e presidido pelo Dr. Armando Cavalcanti Bandeira. Todos os Congressos foram no Rio de Janeiro.

O Dr. Cavalcanti Bandeira, autor do livro “O que é a Umbanda”, refuta que a origem do nome Umbanda venha do sânscrito, mas sim da língua bantu. Afirma, também, que não quer que se “reafricanize” os rituais de Umbanda, pois diz que assim “ela voltará para trás” (mais uma vertente do racismo instituído pela doutrina kardecista aplicada no Brasil).

Voltando à questão do Candomblé, que alguns Irmãos umbandistas abominam, podemos perceber que naquela época (a do 1º Congresso) o Candomblé estava centralizado no Nordeste do Brasil e era olhado como um estágio anterior da Umbanda, que havia se desenvolvido no Sudeste, ou seja o Sudeste é melhor que o Nordeste, bem racista, não! Isso é visto até hoje!

O Candomblé, segundo diziam, estava ainda marcado pela barbárie dos rituais africanos e assim é associado com a magia negra. A lavagem branca da origem da Umbanda se expressa em termos como "umbanda pura", "umbanda limpa", "umbanda branca" e "umbanda da linha branca" no sentido de "magia branca". Esses termos contrastavam com magia negra e linha negra que estavam associados com o mal. Além disso, a divisão dos espíritos estabelecida desenhou a linha entre aqueles da direita (bons), representados pela Umbanda, e os espíritos da esquerda (maus), representados pela magia negra ou por aquilo que não era considerado Umbanda (Macumba, Quimbanda, Cangerê etc). As únicas instâncias de identificação positiva da influência africana da Umbanda tem a ver com os Pretos Velhos (que eram vistos como pessoas simples e humildes, mas espíritos muito evoluídos, pois haviam se submetido), e com a África como um continente heróico e sofredor.

Uma obra que tenho, que data do ano de 1953, chamada "Umbanda Sagrada e Divina", escrita por Paulo Gomes de Oliveira, famoso jornalista carioca, que tinha um programa de rádio no qual falava sobre Umbanda e que dava palestras sobre ela desde 1930, diz:

"As tendas de Umbanda surgiram com a Umbanda evoluída (quer dizer que havia uma outra Umbanda?), ou seja, despida de muitas tradições obsoletas e revestida do Espírito evangélico cristão. O culto jêje-nagô (para o autor é uma coisa só) tem sua origem nas relações fetichistas sudanesas, e é esta coisa esquisita e estranha que se observa nos chamados Candomblés e Cangerês, onde a ignorância, a par de um enfermiço misticismo idólatra, estendeu seu nefasto império de superstições, enchendo a alma de seus adeptos de vibrações negativas, e dos complexos originários de crendices e vícios. Usam vestimentas esquisitas e bisonhos títulos. Praticam uma série de atos verdadeiramente chocantes e ridículos, revelando um acentuado desequilíbrio nervoso que somente afeta o delicado organismo psicológico. Atualmente admitem a mescla de todas as religiões, formando um ecletismo absurdo e nocivo. Os locais de trabalho estão revestidos de símbolos exclusivamente materiais e tudo respira uma atmosfera de idolatria áulica, perigosa aos destinos do Espírito. Acredito que, evoluindo através do estudo, venham a se transformar em Umbanda".

Este texto acima reflete muito bem o pensamento que, hoje, após mais de cinqüenta anos, muitos umbandistas têm, infelizmente.

Por essas e por outras não podemos julgar os Irmãos que denigrem os ensinamentos contidos no Candomblé, achando-os atrasados, falhos, sem nenhuma base espiritual. É nossa obrigação afastar esse tipo de pensamento dos umbandistas. Não podemos aceitar que digam que essa ou aquela prática é fetichista, atrasada, "magia negra" etc, sem a conhecê-la muito bem. Acusar os outros é fácil!

A mitologia africana se assemelha e em muito à mitologia grega, com seus casos amorosos, traições, brigas, ciúmes, usurpação do poder etc. É a chamada antropomorfização. Isso aconteceu em todas as culturas. Não é possível nós termos divindades tão longe de nós. Elas têm que se aproximar dos seres humanos. Têm que odiar, amar, pensar, sentir, enfim, serem humanos como nós. Vocês acreditam que realmente Ògún (Ogum) desceu do céu em uma corrente ou teia de aranha, e abriu caminho com seu facão para os demais Orixás poderem andar na Terra? Você acredita que Obà (Obá) cortou sua orelha para cozinhá-la para Sàngó (Xangô), pois Òsún (Oxum) lhe disse que este adorava um ensopado de orelha? Você acredita que Ògún brigou com Sàngó por causa de Oya (Iansã) e ficaram inimigos para sempre? Meus Irmãos isso tudo são lendas para nos fazer pensar nas coisas. São mitos. O mito é sempre uma representação coletiva, transmitida aos descendentes para explicar o mundo. Ele é ainda sentido e vivido. Circunscreve um acontecimento, narra uma criação, diz do que não existia e como passou a existir. Segundo Goethe em citação de Campbell (1997), os mitos são as relações permanentes da vida. Fala sempre das relações humanas e não é nem poderia ser lógico, pois se presta a todas as interpretações.

Moyers no livro de J. Campbell (O Poder do Mito) diz: "Mitos são histórias de nossa busca de verdade, de sentido, de significação, através dos tempos... Precisamos que a vida tenha significação, precisamos tocar o eterno, compreender o misterioso, descobrir o que somos". Para Jung, mito é a conscientização de arquétipos do inconsciente coletivo, uma união de consciente e inconsciente coletivo, assim como as formas através das quais o inconsciente se manifesta. O mito é aquele que remete, o rito é sua ação. Na mitologia grega podemos observar o relacionamento dos mitos sobre curas fantásticas e dons cedidos pelos deuses, além da eterna busca de contato com estes por parte do povo. Visitando os templos, fazendo oferendas, erguendo altares e consultando os sacerdotes, estes sim que - em transe - teriam um contato direto com os deuses. O Dr. Bernardo de Gregório diz: “Na Antigüidade o ser humano não conseguia explicar a Natureza e os fenômenos naturais, então, dava nomes ao que não podia explicar e passava a considerar os fenômenos como deuses. O trovão inspirava um deus, a chuva outro. O céu era um deus pai e a terra, uma deusa mãe e os demais seres, seus filhos. Criava, a partir do Inconsciente, histórias e aventuras que explicavam de forma poética e profunda o mundo que o rodeava. Estas "histórias divinas" eram passadas de geração para geração e adquiriam um aspecto religioso, tornando-se mitos ao assumirem um caráter atemporal e eterno, por dizerem respeito aos conflitos e anseios de qualquer ser humano de qualquer tempo ou local”. Vemos, portanto, que a experiência mítica é característica de todos os povos e culturas. É a forma de explicarmos a religião e o sentimento religioso. Dá-nos ferramentas para entender e conceituar nossa experiência religiosa e justificar nossas práticas.
A Iniciação em Ifá, Umbanda e/ou Candomblé não é uma panacéia
Alguns dos seguidores das religiões e cultos de matriz africana e afro-brasileiros (Ifaismo, Candomblé, Umbanda, entre outros) têm a errônea noção de que ao se iniciarem no caminho de Ifá ou dos Orixás todos os problemas de sua vida serão eliminados, que esse ato iniciatório lhes dará o poder de transcender as dificuldades e os fará imunes às tragédias. Todas essas noções são inexatas e equivocadas. A iniciação neste caminho não é, em nenhuma hipótese, uma panaceia, ou seja, uma cura ou remédio para todos os males, sejam espirituais, mentais, emocionais ou físicos.
O propósito da iniciação nessas religiões e cultos é dar à pessoa uma consciência mais profunda de si mesma e do mundo. Essa consciência se torna a base de um processo de solução dos problemas, processo este que está baseado em uma visão complementar da interação pessoal e espacial do iniciando. A cerimônia iniciatória estabelece uma nova maneira de ver, de ouvir e de ser. Ela não remove, de forma mágica, as dificuldades da vida do Iniciado; ao contrário, posso dizer, piora-os, num primeiro momento, pois obriga o iniciado a lidar com seus problemas, erros, enganos e desacertos, algo que não fazia antes. A iniciação o obriga a buscar as soluções em si mesmo, não em algo exterior, mas em seu âmago. Isso é extremamente difícil e doloroso, por isso é um processo difícil.
Ainda assim, a iniciação não é apenas a cerimônia realizada por um Sacerdote/Sacerdotisa, mas a reafirmação diuturna do Iniciado dos princípios dos Orixás, tal como são experimentados durante o processo ritualístico iniciatório, que realiza o renascimento dos indivíduos para uma nova vida. Este é um processo de transcendência das limitações. Cada nova revelação, compreensão, experiência ou cerimônia trás o potencial necessário para cada um dos iniciados.
Em sua iniciação o velho deve morrer e renascer com uma nova profundidade de sabedoria. Deixar ir ao velho ser, deixar as velhas idéias, as velhas maneiras e manias pode ser uma tarefa difícil e dolorosa. A experiência de deixar esse estado anterior, no contexto da Iniciação, dá ao iniciado uma experiência simbólica de mudanças internas e externas que ocorrem cada vez que expandimos nossa consciência.
Os que estão buscando o fim das dificuldades, dos conflitos, dos desafios estão buscando o final da vida, não as bênçãos da vida. Na cosmologia e cosmogonia de matriz africana e afro-brasileira todas as formas de abundância chegam como consequência das transformações que acontecem durante a vida religiosa. Por isso não podemos enxergar a Iniciação aos cultos Afro-brasileiros como uma panacéia, mas sim como um meio de ser melhor para si mesmo, para os demais seres humanos e para toda a Criação.



Ìwà Pèlé - educação, bondade e gentileza de caráter na religião tradicional africana
Mário Filho*

Introdução
Os conceitos na língua Yorùbá são muito difíceis de serem traduzidos, pois é uma língua antiga, portanto de difícil compreensão para aqueles que não a dominam totalmente. Na Nigéria há vários centros de estudos da língua Yorùbá, que tentam resgatar toda sua beleza.
Para que os leitores possam compreender melhor este texto há dois conceitos que devem ser analisadas de antemão. Um é o Ìwà Pèlé e o outro é o Ìwà Rere:
- Ìwà Rere quer dizer, literalmente, caráter bom;
- Ìwà Pèlé não tem uma tradução literal para nossa língua. Pèlé indica um comportamento gentil, sensível, educado, polido, portanto abarca vários significados em sua etimologia, num amplo aspecto. Para nossa facilidade vamos traduzir Pèlé como bom, mas esclarecendo, uma vez mais, que Pèlé é um conceito que vai muito além da bondade.

Contextualizando

Ìwà Pèlé é considerado pelos Yorùbás como a representação do bom caráter e está relacionado com a capacidade prática de provocar mudanças evidentes de energia. Na religião tradicional Yorùbá isso é de suma importância, já que o caráter do homem demonstra seu coração e Olòdúmarè (Deus), o qual é chamado de “O buscador de corações”, vai em busca de nossos corações analisando-o sempre. Nas religiões tradicionais o coração desempenha papel importante.
Ìwà significa caráter, a energia da vida. Ìwà é o que caracteriza uma pessoa sob o ponto de vista ético. Para ser feliz uma pessoa deve ter Ìwà Pèlé, pois quem tem bom caráter não entra em choque com os seres humanos, nem com os poderes sobrenaturais. Esse é o mais importante dos valores morais Yorùbá, e a essência da fé consiste em cultivá-lo.
Quando dizemos que uma pessoa tem bom Ìwà é porque em suas relações pessoais demonstra as qualidades corretas de um bom indivíduo. Isso é um dos conceitos básicos da religião tradicional Yorùbá, já que o bem-estar, seu desenvolvimento na vida, inclusive a extensão de seu caráter, será regido por Ìwà.
As ações diárias ou o viver cotidiano são produzidos pelo subconsciente, isso não é mais que o reflexo dos feitos, pensamentos e atitudes da vida. Uma pessoa em harmonia com a vida, está de acordo com o princípio universal e recebe de uma maneira acelerada as coisas boas da vida. O bom caráter é um escudo de proteção suficientemente sólido contra qualquer acontecimento, por duro, difícil ou extremo que pareça. Quem o possui a nada teme. Há um provérbio africano que diz que um bom caráter é armadura suficiente contra qualquer acontecimento desfavorável na vida, qualquer um que tenha um bom caráter não precisa temer nada. Há um Odù de Ifá que diz: "O bom caráter é a salvaguarda do ser humano, os covardes e temerosos carecem de proteção devido à sua moral e caráter”.
Não se deve confundir Ìwà com reputação. Nosso Ìwà é conhecido por nossa consciência e é imortal, vem de Olòdúmarè (Deus). A reputação, ainda que pareça com Ìwà, não é nada mais que um termo dado a nós pelos humanos, portanto é mortal e não o representa, já que há pessoas com boa reputação que não tem nem boa alma, nem bom coração, portanto não é Ìwà.
Ao termos Ìwà Pèlé alcançaremos uma boa reputação. Nossa boa reputação ajuda a construir boas relações sociais. Essas relações sociais ajudam a construir uma comunidade forte e íntegra para nossos filhos e netos.
No corpus de Ifá, Òrúnmìlà nos expressa isso nos seguintes Odus :

1) "Venha e olhe as inumeráveis crianças de Ìwà.
Ìwà leva as crianças em seus braços,
Venha e olhe as inumeráveis crianças de Ìwà.
O caráter é tudo o que se requer,
Na há nenhum destino a ser chamado de infeliz en Ife.
O caráter é tudo o que se requer.”

2) Em Irete-odi compreendemos que o bom caráter facilita os acontecimentos da vida,
os rendimentos de sua vida permanecerão em suas mãos.
O bom caráter é o que habilita a corda da vida,
Para tornar-se indestrutível na mão de alguém.
Assim declarou o Oráculo a Òrúnmìlà
Quem, por meio do bom caráter,
Irá ganhar a corda da vida dos 401 Irúnmalè.

3) Não só há que ter bom caráter,
Mas colocá-lo em prática.


A lenda de Ìwà é relatada na literatura de Ifá:

Ìwà era uma mulher de rara beleza com quem Òrúnmílà se casou. Entretanto, apesar de sua beleza, tinha maus costumes e falava demais, sendo ainda preguiçosa e irresponsável. Depois de algum tempo ele, não podendo suportar seu mau comportamento, mandou-a embora. Quando Ìwà partiu, Òrúnmílà viu que não podia viver sem ela. Perdeu o respeito dos vizinhos, sua prática divinatória perdeu o valor, seus clientes se afastaram, ficou sem dinheiro, enfim perdeu tudo. Vestiu-se de Egúngún e saiu por aí, à procura de Ìwà. Foi à casa dos 16 chefes de Ifá à procura da esposa, cantando na porta de cada um: "Grande Sacerdote de Ifá de Ajeró, é Ìwà que estou procurando. Se você tem dinheiro, mas não tem Ìwà, o dinheiro não é seu; se alguém tem filhos, mas não tem Ìwà, os filhos são de outra pessoa; Ìwà, Ìwà é que nós procuramos... Todas as boas coisas da vida que um homem tem, se ele perder Ìwà, elas passam a pertencer à outra pessoa. Ìwà é o que estamos à procura!" Depois de grande procura achou Ìwà casada com Olójo. Este se recusou a devolvê-la, e brigaram. Òrúnmilá, que havia oferecido um sacrifício antes de sair, venceu a luta e levou Ìwà de volta para sua casa.
Ao analisarmos a lenda vemos que Ìwà é simbolizada por uma mulher, porque para os Yorùbá a mulher representa os dois extremos: o amor (o bem) e a deslealdade (o mal). Ìwà pode ser bom ou mau. A lenda mostra, ainda, que o homem deve cuidar de seu caráter tão bem como cuida de sua esposa. A sociedade não pode sobreviver sem a mulher, da mesma forma que não se pode ser feliz sem ter bom caráter. Os versos da lenda significam que o homem que tem todos os bens materiais, mas não tem caráter, provavelmente irá perder tudo para uma pessoa de caráter. Ìwà é o atributo de maior valor entre todos no sistema Yorùbá.
Outro Odu de Ifa nos fala das pessoas que, cegas pelo poder ou que crêem que devido a este a energia do universo é sua, manifestam mudanças que provêm de seus interesses pessoais, a arrogância ou a ira, e não de seu bom caráter, de Ìwà Pèlé. Exemplo disso vemos em Ogbe Ìwòrì que nos diz que quem tem muito amor pela riqueza perde seu bom caráter.
Em certas ocasiões os habitantes do mundo declararam que nada era mais importante que o dinheiro e eles descartariam qualquer coisa para correr atrás dele. Òrúnmìlà lhes disse que deveriam pensar mais em Ifá e não honrar tanto o dinheiro. O conhecimento disto os levaria a desfrutar uma vida estável, saudável e de muitos anos de existência. Disse-lhes: “têm muito dinheiro, mas estão loucos, coxos, cegos e enfermos! Para que lhes serviu o dinheiro?

Ìwà Pèlé um estado de ser ou a maneira de ser, que é alcançado pela prática de nossa vida diária. Nesse estado poderoso que nos sustém podemos obter mais Aşè que podemos imaginar, é o Eu interior (Orì Inu) que nos permite decidir e atuar com integridade, inclusive nos momentos em que é difícil fazê-lo.

Podemos aprender, estudar, memorizar, cantar sabermos todos as rezas, tudo referente aos Òrìşà, mas se não exercermos o Ìwà Pèlé nunca teremos êxito. As palavras, os cantos, as idéias não se estenderão além das paredes do quarto em que são feitas.

Ìwà Pèlé se refere ao caráter moderado que nos permite tomar decisões cruciais que afetem o contexto do mundo em que vivemos. Em síntese, representa o que é correto universalmente e não algo arbitrário que possa alimentar nosso próprio Ego; o único caminho que nos permitirá ocupar nosso lugar no mundo de Olòdúmarè (Deus) é cumprir com nossos destinos.

A Ìylòrìşà Maria Inez nos traz uma excelente poesia que retrata bem os costumes e a importância que o povo Yorùbá dá à educação e à honra:

TÓJÚ ÌWÀ RE
Tójú ìwà re, òré mi!
Olá a ma si lo n'ilé eni,
Ewà a sì ma sì l'ára enia,
Olówó òní 'ndi olòsì b'ó d'òla
Òkun l'óla, òkun nìgbì orò,
Gbogbo won l'ó 'nsí lo nílé eni;
Sùgbón ìwà ni 'mbá'ni dé sàréè,
Owo kò jé nkan fún 'ni,
Ìwà l'éwà l'omo enia.
Bí o l'ówó bí o kò ní 'wà 'nkó,
Tani jé f'inú tán o bá s'ohun rere?
Tàbí bí o sì se obìrin rògbòdò,
Bí o bá jìnà sí 'wa tí èdá 'nfé,
Taní jé fé a s'ílé bí aya?
Tàbí bi o jé oníjìbìtì enia,
Bí a Tilè mo ìwé àmòdájú,
Taní jé gbé 'sé aje fún o se?
Tójú ìwà re, 'òré mi,
Ìwà kò sí, èkó d'ègbé,
Gbogbo aiye ni 'nfé 'ni t'ó jé rere.

CUIDE DE SUAS MANEIRAS
Cuide de suas maneiras, meu amigo!
A honra pode abandonar nossa casa,
e a beleza às vezes acaba.
O rico de hoje pode ser o pobre de amanhã.
A honra é como o mar, e também a onda da riqueza;
ambas podem escapar de nossa casa.
Mas as boas maneiras acompanham-nos até ao túmulo.
O dinheiro não é nada,
boas maneiras são a beleza da humanidade.
Se você tem dinheiro, mas não se comporta bem,
quem irá confiar em você?
Se você é uma mulher muito linda mas não se comporta de maneira adequada,
quem desejará tê-la como esposa?
Cuide de suas maneiras, meu amigo!
Se você é muito educado, mas engana as pessoas, quem confiará em você para negócios?

Para ter uma vida próspera a pessoa deve desenvolver seu Ìwà Pèlé. Ìwà Pèlé representa o crescimento da beleza interior e a profundidade de caráter. Por nossas ações e interações nós demonstramos que estamos em harmonia ou equilibrados com os conceitos universais e tradicionais da vida, o que mostra nosso respeito a tudo aquilo que faz parte da Criação. Ìwà Pèlé abarca a importância da responsabilidade e as conseqüências que vêm de positivo ou negativo em nossas ações.

Ao nos esforçarmos para termos Ìwà Pèlé adquirimos alguns atributos fundamentais:

- Integridade – administra sua vida e comportamento de acordo com os princípios religiosos e sociais, seguindo seu código de ética;

- Probidade - desenvolva a honestidade e confie para se tornar o guardião de não só segredos mundanos, mas também de mistérios sagrados. Com isso as pessoas sentirão confiança em você, permitindo uma melhor comunicação;

- Objetivo - não julga ninguém, nem tem preconceitos;

- Resignação – Aceita que as coisas acontecem ao seu tempo e sabe que ao terminarem elas estão findas. Tudo está sendo feito de acordo com a vontade divina. Porém essa resignação não é uma entrega ao destino, pois somos seres dotados de livre arbítrio e podemos lutar pelo nosso sucesso.

-Paz interna – torna-se una consigo mesma. Escuta sua voz interna e pensa antes de falar.


vídeos interessantes sobre as Religiões e Cultos Afro-brasileiras e de Matriz Africana











 
Introdução ao estudo de Exu (Èṣù)


Mário Filho*

Não creio que seja possível falar em Èṣù, seja em sua forma de arquétipo popular, seja em seus fundamentos e desenhos originais, sem que se faça, pelo menos, uma incursão rápida por dois temas: a vinda dos africanos e das religiões africanas que deram origem ao Candomblé no Brasil, através da diáspora que o processo de escravidão negra representou; e como conseqüência do mencionado, se refere à questão do sincretismo.
No final do séc. XV inicia o que pode ser considerado como tráfico negreiro. As primeiras experiências são feitas na Ilha da Madeira e Porto Santo. Depois os africanos também são enviados para os Açores e Cabo Verde. Na metade do Séc. XVI são trazidos ao Brasil.
Com o apoio de quase todos os governos da Europa, começa uma forma de mercado que permite grandes lucros - a compra de escravos nas costas da África, seu transporte e sua venda como mercadoria. Vários países insistem, então, nessa atividade e muitas rivalidades aparecem da competição entre França, Inglaterra, Holanda e Portugal. Na América, recentemente “descoberta”, os grandes latifúndios exigem cada dia mais braços vigorosos para o trabalho de campo. Os negros trazidos da África pertenciam a várias culturas. Este contingente, segundo Arthur Ramos, mencionado por Bastide, pode ser dividido em quatro grupos :
- sudaneses – correspondem aos negros trazidos da Nigéria, do Daomeh e da Costa do Ouro. São os Yorùbás, Ewe, Fon e Fanti-Ashantis (chamados mina), Krumanos, Agni, Zema e Timini;
- civilizações islamizadas - sobretudo representadas pelos Peuls, Mandingas, Haussa, Tapa, Bornu e Gurunsi;
- civilizações bantu do grupo angola-congo – representadas pelos Ambundas (Cassangues, Bangalas, Dembos) de Angola; Congos ou Cambindas do Zaire e os Benguela;
- civilizações bantus da Costa - representadas pelos Moçambiques (Macuas e Angicos).
Quando os primeiros africanos chegaram ao Brasil, a Coroa de Portugal criou uma lei que determinava, em seu primeiro artigo, que todos deveriam ser batizado na religião católica. Caso o batismo não fosse cumprido num período de pelo menos cinco anos, as “peças” deveriam ser vendidas e a importância relativa a esta transação comercial revertida para a Monarquia.
Outros artigos importantes dessa lei, como a duração da escravidão por um período não superior a dez anos, foram sendo, pouco a pouco, alterados para que, na verdade, a lei nunca fosse executada, excetuando-se o batismo cristão. Essa legislação ajudava as relações entre o governo português e a Igreja católica, e a teologia da Igreja Católica com respeito à África, aos Africanos e à escravidão.
A tese de que a África era a terra da maldição, é defendida, então, por vários teólogos cristãos. O sacerdote Antônio Vieira, em seus Sermões (XI e XXVII) afirma que a África é o inferno de onde Deus se digna retirar os condenados para, através do purgatório da escravidão na América, finalmente chegar ao paraíso. O mesmo sacerdote, no Sermão XIV, de Rosário à Fraternidade dos Escravos Negros, elaborado em 1633, ao comentar o texto de São Paulo (Coríntios 12,13), diz que os Africanos, batizando-se antes de seu embarque da África à América, devem agradecer a Deus porque eles escaparam da pátria, onde viveram com os pagãos, entregues ao poder do diabo. E disse que todos os africanos irão para o inferno, onde queimarão durante toda a eternidade. Todavia em outro sermão, Vieira diz que, para ele, a catividade do Africano, na América, é uma catividade menor, pois só alcança o corpo. Assim a alma não está mais cativa, libertou-se do poder do diabo que governa a África e o escravo, no Brasil, deve tentar conservar essa liberdade da alma, para não cair, de novo, sob o domínio dos poderes malévolos que reinam na África.
Em 1873, uma oração para a conversão dos povos da África Central à Igreja Católica, escrita pela Escrivã da Sagrada Congregação das Indulgências, dizia assim: “Oremos pelos povos mui miseráveis da África Central, que constituem a décima parte da humanidade, para que Deus, Onipotente, tire, finalmente, de seus corações a maldição de Caim e lhes dê a benção que só podem conseguir em Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor: Senhor. Jesus Cristo, único salvador de toda a humanidade, que reina de mar a mar e do rio até os confins da terra, abra com benevolência teu sagrado coração às almas miseráveis da África que até o momento estão na obscuridade e nas sombras da morte, para que pela intercessão da Puríssima Virgem, tua Mãe imaculada e de São José, havendo abandonado os ídolos, se prostrem diante de Ti e se unam à Tua Santa Igreja”.
A visão teológica que se demonstra estabelece a relação entre: religiões africanas dos dominados e a religião branca (européia e cristã) dos dominadores, seja na América e, particularmente, no Brasil, seja na África durante os processos colonizadores. Do encontro, além do impacto, dessas duas culturas, dessas duas cosmovisões, desses dois troncos religiosos, o sincretismo aparece. Realmente, aqui ou na África, o homem branco foi o primeiro que quis acercar-se às divindades Africanas, para ajustá-las e adaptá-las ao Catolicismo, em particular, e ao Cristianismo, em geral. Era necessário, sem dúvida, que, com a introdução das pessoas Africanas na religião católica, através do batismo obrigatório, se processasse o vazio de sua identidade e o dano de suas possibilidades de resistência cultural.
Penso que o sincretismo, diferentemente do que propõem muitos estudiosos e líderes religiosos, se constituiu mais em um desenvolvimento de uma estratégia branca de dominação, que um movimento de resguardo de valores e de resistência à dominação cultural e religiosa por parte dos homens negros. Assim, não posso deixar de pensar que o sincretismo produz perdas significantes dos valores e da cosmovisão africana. Representou a redução da capacidade dos africanos de resistir à dominação e não lhes garantiu valia e identidade durante o processo de escravidão. Na medida em que a abolição não trouxe aos afro-descendentes possibilidades eficazes de exercício da cidadania, podemos dizer que os resultados negativos do sincretismo religioso persiste até os dias de hoje, trazendo para a maioria da população brasileira, constituída de afro-descendentes, baixa auto-estima, auto-imagem negativa e dificuldade de definir e assumir sua identidade. Podemos enumerar como as conseqüências mais significantes do sincretismo:
- a perda do caráter monoteísta das religiões de matriz Africana: durante a formação do processo sincrético sucedeu nas religiões afro-descendentes, quase que de forma geral, uma perda de sua base monoteísta. Isso se estendeu pelo tempo que, todavia hoje, muitos sacerdotes da religião de Òrìşà consideram sua religião como politeísta e os Òrìşà como deuses, trazendo, como conseqüência, uma visão interior da religião que a reduz à dimensão de seita e una visão externa que a define como panteísta, primitiva, bárbara e fetichista. Perde-se, assim, sem dúvidas, a dimensão do sagrado, o status de universalidade e de revelação que lhes são próprios e a respeitabilidade que merece ao lado das grandes religiões de humanidade. Tirar da religião seu caráter de monoteísta significa, antes de qualquer coisa, tirar das várias nações africanas sua identidade, sua força de unidade e de coesão;
- perda das respostas sociais de inserção do indivíduo no sagrado: com o sincretismo se obrigou aos Africanos, para que eles pudessem desfrutar algum, ainda que mínimo, reconhecimento social, parar nas mãos dos sacramentos da Igreja Católica para sua inserção no sagrado. Assim, até hoje, as comunidades-terreiro não ajudam seus seguidores e crianças com suas liturgias próprias para esses assuntos, como “batizado” e matrimônio. Os rituais como o Ìkómọjáde (batizado), o Ììsọmọlórúkọ (cerimônia de dar o nome à criança), o Ìgbéyàwó (matrimônio), o âmbito da prática religiosa Yorùbá, por exemplo, se perdeu no tempo e poucas são as casas que os praticam. E mesmo os rituais de passagem (vida e morte) terminam por ser complementados ou, muitas vezes, substituídos pela liturgia católica. Em algumas Casas tradicionais do Candomblé brasileiro uma das instâncias do processo iniciatório do novo/a adepto/a (yàwó) é a passagem ritual por alguma Igreja Católica. Há, inclusive, Casas de Candomblé que possuem uma Capela própria onde se rezam missas em homenagem aos novos iniciados.
- redução do valor e grandeza dos Òrìşà: Os Òrìşà são espíritos puros criados por Ọlọrun (Olódùmarè), Deus, como os princípios universais no processo da Criação. A comparação com os santos católicos, as pessoas que viveram segundo os valores da Igreja católica e que, por isso mesmo, depois de sua morte foram santificadas, reduz o tamanho e a dimensão dos ÒRÌŞÀ. Isso, sem dúvida, acaba contribuindo para a construção de uma representação torcida, endossando o estereótipo dos africanos uma vez mais como pessoas inferiores, enquanto contribuem para afetar a auto-estima e auto-imagem do afro-descendente. Associa-se a isso que seus valores, seu respeito pelo antepassado e suas raízes religiosas, estão reduzidas e subordinadas aos valores e formas das pessoas brancas e sua cosmogonia é absorta e dominada pela cultura dos senhores de escravos;
- a reprodução de alguns modelos de escravidão nas relações de poder e autoridade nas comunidades-terreiro: até hoje, em algumas comunidades-terreiro, as relações de autoridade reproduzem modelos da relação senhor-escravo, em uma condição que supera em muito as dimensões do princípio da senioridade, do awó (mistérios do culto) e do sagrado. Estabelece-se entre sacerdotes e iniciados, ou postulantes à iniciação, um desenho inteiro de relações que, muitas vezes, degradam o homem e a mulher, desacatando e sujeitando-os aos mecanismos impróprios para a plenitude da vida religiosa;
- degradação dos arquétipos: nesse encontro de divindades africanas e santos católicos, encontro em que as primeiros se põem sob os segundos, os arquétipos relacionados a cada Òrìşà terminam sendo degradados e até, muitas vezes, prostituídos, num processo penetrado pelas referências das morais católicas. Assim, quando possível, afastam dos Òrìşà sua vitalidade e características de sensualidade; quando não, sua dimensão se põe em um quadro “pré-conceitual” e moralista que alteram profundamente o espaço que ocupam e o papel que levam a cabo no âmbito de uma cosmovisão rica e completa. Nesse processo, sem dúvida, deliberado, de tirar dos escravos o apoio religioso e cultural capaz de assegurar a resistência eficaz à dominação do espírito, os Òrìşà estão deformados e se puseram pequenos. Melhor exemplo é Èṣù:
- Quem é esse homem das travessuras, muitas vezes bêbado, sempre sem-vergonha e disposto a desviar os homens dos caminhos perfeitos?
- Quem é essa ilustração diabólica, instrumento do mal, tão próximo dos homens pecadores?
- Quem é essa imagen de Satanás, inimigo de Deus e terror dos homens de bem? O vagabundo, o contrário à ordem e às estruturas?
- Essa figura perigosa, sempre colocou o mundo e as pessoas em perigo?
- Esse mesmo Èṣù que é o senhor entre os Òrìşà? Esse mesmo Èṣù que é o líder de Òrìşà, o primogênito do Universo, a primeira estrela a ser criada? O menino querido de Ọlọrun-Olódùmarè? Pois é exatamente assim que Èṣù é chamado em muitos Ìtàn (lenda) do corpo literário de Ifá, as estruturas do conhecimento oral receptoras da revelação da religião, o rico grupo de conhecimento oculto e os registros históricos da tradição milenar africana. Inspetor de Ọlọrun-Olódùmarè desde o início dos tempos, o Zelador de Deus. Esses são mais alguns de seus títulos no seio da religião afro. É esse Èṣù que conheço! É esse o qual chamamos de Èṣù Òdárà, aquele que abre os caminhos e atrai prosperidade, ou melhor, é Èṣù que apóia a seu filho incansavelmente. Quando entramos em contato mais profundo com as orações, louvores e saudações feitas a Èṣù, somos enviados, necessariamente, a uma análise mais profunda do Òrìşà Èṣù do que aquela que nós normalmente encontramos divulgados em livros ou sites de Internet.
Èṣù é o guardião e diretor de todas as coisas da Criação. Sua associação íntima com o Criador, como aquele que trabalha ao Seu lado, é transparente em seus títulos com os quais é nomeado. Podemos inferir, por isso, que Èṣù garante o curso ou o desenvolvimento do projeto de Ọlọrun-Olódùmarè pela Criação, enquanto assegura a continuidade e dinâmica de todos os processos com vista à primazia da ordem em todas as realidade.
Confirmando este enfoque, podemos concluir: a caminhada de todas as pessoas, o trabalho e os deveres de cada Òrìşà estão sob regular mando de Ọlọrun-Olódùmarè, porém, para auxiliá-LO, surge Èṣù como Inspetor Geral de Ọlọrun-Olódùmarè.
Ọlọrun-Olódùmarè executa Seu projeto através de Seus Ministros, os Àwon Òrìsà, assiste e acompanha Sua obra, define Seus princípios e movimentos. Assim, Seus Ministros (Òrìşà), sobretudo Èlà (Òrúnmìlà) e Èṣù são Sua extensão e maneira de exercer Sua Onisciência, Onipresença e Onipotência.
Em um Ìtàn (lenda) do Odù Òşé Òtúrá encontramos essa questão claramente posta quando vemos que ÒRÚNMÌLÀ ao chegar no ÒRÚN para descrever a Ọlọrun-Olódùmarè o que acontecia na terra, ali encontrou Èṣù Òdárà que, aos pés de Olódùmarè, fazia seu informe. Assim, quandoỌlọrun-Olódùmarè recebeu ÒRÚNMÌLÀ, Ele já sabia dos problemas que se passavam na terra com os Òrìşà. Para executar seu trabalho, de fato, Èṣù está presente em todos os espaços, e próximo de cada ser vivo, formando uma unidade com cada Òrìşà. Igualmente ele está presente nas cidades, nas vilas, em cada rua e casa, exercendo seu papel como o princípio dinâmico de comunicação e individualização de tudo: Èṣù é os olhos, ouvidos e a presença de Ọlọrun-Olódùmarè em todo o Universo.
Citaremos dois Ìtàn (lenda) sobre Èṣù: O primeiro narra que no princípio dos tempos nada existia além do ar. Ọlọrun-Olódùmarè era um massa infinita de ar que quando começou a se mover, tomou uma parte de Seu próprio ar para transformá-lo em uma massa de água, originando Ọbàtálá chamado de ÒRÌŞÀNLA, o grande ÒRÌŞÀ funfun. O ar e a água se moveram conjuntamente e uma parte se transformou em barro. Desse barro surgiu uma espuma, a primeira matéria dotada de forma, dessa espuma brotou uma pedra vermelha e barrosa. Ọlọrun-Olódùmarè admirou essa forma e soprou sobre ela Seu hálito e lhe dando vida. Essa forma, a primeira dotada de existência individual, uma pedra de laterita, era Èṣù - Èṣù Yangí. Por esse Ìtàn se reconhece que Èṣù é o primeiro nascido, o primogênito do Universo. Ele também é o terceiro elemento, nascido da interação entre o ar e água e, assim, ÒRÚNMÌLÀ, em um Ìtàn do Odù Òtúrá Méjì que fala sobre a vinda de ORI para a terra, chama Èṣù de terceira pessoa.
O segundo Ìtàn é do Odù Èjìogbè Ọwọnrìn que fala da multiplicação de Èṣù yangí ao infinito pela ação de ÒRÚNMÌLÀ, num processo que permitiu que Èṣù povoasse todo o Universo e definiu as condições para ele exercer o papel de Inspetor Geral. Ao mesmo tempo, segundo esse Ìtàn, o processo gerou o contrato entre Òrúnmìilá e Èṣù, definindo para Èṣù o papel do executor dos projetos e diretor dos destinos, aquele que garantirá a execução das regras de Ifá. Èṣù YANGÍ é chamado pelos Yorùbá de ỌBÀ BÀBÀ Èṣù, Rei e Pai de todos os Èṣù. Essa saudação e esse Ìtàn nos remete ao assunto de que existem muitos Èṣù, todos mantendo a mesma natureza: multiplicação que se fez necessária para que houvesse a particularização devida no processo de povoamento do Universo. Particularmente a terra, onde vemos no Ìtàn do Odú Ogbè Ìretè que mostra àgbà Èṣù liderando-os na chegada ao Àíyé (o mundo material) e designando-os para seus diferentes propósitos. O Ìtàn diz que Ọlọrun-Olódùmarè criou Èṣù como um ebora muito especial e que Èṣù tem que existir para afrontar a cada pessoa e a cada ÒRÌŞÀ.
Esse Ìtàn, além de nos dar a noção da individualização e conseqüente especialização de Èṣù na terra, em particular, e na Criação, no sentido geral, envia-nos ao Ìtàn do Odù Òtúrá Méjì que diz: "Èṣù disse que quem tem a prosperidade na terra tem que separar a parte dele; que aquele que procriar na terra não pode deixar Èṣù para trás; aquele que quer prosperidade na terra não pode deixar Èṣù para trás. Èṣù pergunta ao OrìÌ se ele não sabe que Èṣù é o mensageiro de Ọlọrun-Olódùmarè?"
Se falamos que Èṣù é o “diretor dos destinos” isso nos remete imediatamente ao fato de que Èṣù é como o “diretor dos caminhos” e lembramos a associação que se faz de Èṣù e as encruzilhadas, a representação por excelência da multiplicidade de caminhos e da geração e da imposição de alternativas e possibilidade. Destino e encruzilhadas estão, sem dúvida, intimamente ligados. Ao mesmo tempo que está em todos os lugares e em todas as formas criadas, Èṣù está simbolicamente representado pelas encruzilhadas, de onde assiste e acompanha todas as opções feitas pelos homens em sua caminhada pela vida.
De fato, um Ìtàn do Odú Èjìogbè Méjì diz em certa parte: Èṣù foi e se sentou na encruzilhada. Todos os que se dirigiam a Olórun-Olódùmarè teriam que dar algo a ele; e todos os que voltavam deviam dar-lhe algo, também". Esse Ìtàn nos mostra a íntima relação entre Èṣù e os ÒRÌŞÀ. É necessário reforçar a idéia que Èṣù executa para os ÒRÌŞÀ o mesmo papel que executa para as pessoas humanas. Assim, ele os assiste, acompanha, regula e os corrige. Muitos são os Ìtàn e ODÙ que falam a respeito deste especial papel e a conseqüente superioridade de Èṣù sobre os demais ÒRÌŞÀ. Esquecendo o Ìtàn do ODÙ Òsé Òtúrá Méjì que diz como Èṣù assumiu a superioridade sobre os demais ÒRÌŞÀ, podemos nos referir, em particular a um Ìtàn do ODÙ Ògúndá Méjì que diz, referindo-se a um diálogo dos BÀBÀLAWÓ com Òsanyìn, após a luta deste com Èṣù. Os BÀBÀLAWÓ perguntaram a Òsanyìn: “- Você foi lutar com Èṣù Òdàrà, que é mais forte que você? Você não sabia que Èṣù é o líder dos ÒRÌŞÀ? Não há qualquer ÒRÌŞÀ que desafie Èṣù! Por esse desafio feito a Èṣù não podemos fazer nada por você!”
Qual ÒRÌŞÀ, por sua dimensão cosmogônica, por suas características de princípio dinâmico associadas à Criação, a Olórun-Olódùmarè e a todas as coisas, poderia servir de base à grande resistência que se fez necessária frente à dominação, seja física, cultural, ou religiosa, que a escravidão fez?
Qual ÒRÌŞÀ, além de Èṣù, poderia garantir a sobrevivência da identidade e da cosmovisão negra na América europeizada e cristianizada?
Quem, além de Èṣù, para recordar ao dominado o pacto estabelecido por DEUS, Ọlọrun-Olódùmarè, com Sua Criação, incluindo o grupo humano, de que, nesse momento, os Africanos eram os degradas pela escravidão e pelo barbarismo branco?
Quem, além de Èṣù, para recordar ao dominante branco, teólogo do racismo, do prejuízo e da discriminação, sua culpa ante seu próprio DEUS e alma? Foi necessário depreciar, prostituir e degradar Èṣù completamente. Foi necessário reduzir suas dimensões no Universo. Foi necessário colocá-lo em confronto com DEUS e com os homens. Foi necessário inseri-lo numa visão manifesta de contrários, de oposição entre o bem e o mal. Foi importante privá-lo de capacidade de zelo e guarda sobre os dominados, instrumental possível de resistência e luta. Foi fundamental dissimular seu papel dialético, seu princípio dinâmico e vitalizador da Criação, negar a ele o propósito e fundação na ação divina. Ọlọrun-Olódùmarè verte continuamente em Sua obra o Àṣẹ que garante durabilidade e sucesso do qual Èṣù é o guardião e transportador desse elemento essencial aos processos de individualização no sistema e para a personificação do homem na relação de filiação com Ọlọrun-Olódùmarè. Sem dúvidas a teologia católica sobre a África e os africanos não confirmaria isso, infelizmente!

Àṣẹ, o! Àṣẹ, o! Àṣẹ, o!

Fonte: Omiloba, Aworeni Ifa Orilana. Èṣù.