quarta-feira, 24 de julho de 2013

Somos todos quilombolas

Somos todos quilombolas
 

Negro fugido, naquela época da escravidão, se refugiava na mata junto com os seus para viver em liberdade. Muitos fazendeiros iam atrás dos escravos fugitivos e tentavam trazê-los de volta a ferro e fogo. Para não serem capturados, aqueles que escapavam procuravam lugares de difícil acesso, como, por exemplo, o alto das montanhas, ou o interior de uma mata fechada. Assim foram formando seus locais de refúgio, chamados quilombos.
A liberdade sempre foi uma das mais profundas aspirações humanas, pois sem ela a vida parece desprovida de sentido e prazer. Viver sob o jugo de outro, trabalhando sem remuneração e sendo humilhado diariamente, foi a sina de milhões de negros africanos, trazidos para o Brasil em navios de traficantes de escravos, e de seus descendentes.
Muitos se revoltaram e buscaram, nos quilombos, refazer as suas vidas, reencontrar a liberdade que conheceram em seus países de origem. Até hoje temos no país populações descendentes daqueles quilombos, que chamamos de quilombolas. Eles permanecem vivendo na terra que foi desbravada pelos seus antepassados e onde encontraram refúgio no período da escravidão.
O Ministério Público Federal luta pelo reconhecimento desses povos quilombolas, que tentam manter suas terras e preservar sua cultura, embora sejam constantemente ameaçados de serem expulsos de seu território por grileiros. A 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF coordena o trabalho dos procuradores da República que, em todo o país, trabalham em prol da defesa das populações minoritárias que precisam da proteção do Estado brasileiro para terem seus direitos respeitados, como os índios, os quilombolas, os ciganos, as comunidades ribeirinhas e extrativistas.
A nossa Constituição, em seu art. 216, parágrafo 5º, estabeleceu que “ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”, e o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias diz que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".
De acordo com a Fundação Cultural Palmares, instituição vinculada ao Ministério da Cultura encarregada de promover e preservar a cultura afro-brasileira, existem atualmente mais de 1800 comunidades quilombolas certificadas. A certificação de áreas quilombolas é o documento expedido pela Fundação após receber um pedido das comunidades se auto reconhecendo como remanescentes de quilombos.

Os descendentes dos negros que se refugiaram em quilombos para fugir da ferocidade da escravidão têm direito às suas terras não apenas porque as ocupam há várias gerações, mas também por que a Constituição de 1988 quis reparar a injustiça cometida contra essas vítimas de um regime escravagista que foi apoiado pelo Estado brasileiro.
A escravidão foi uma mancha que envergonha a história do Brasil, e a nação, representada na Assembleia Nacional Constituinte que redigiu nossa Constituição, reconheceu a dívida de gratidão que tem para com os negros que foram trazidos da África como animais e aqui construíram a riqueza do nosso país sem receber qualquer reconhecimento ou pagamento.
Os quilombolas permaneceram em suas terras desde a época da escravidão e têm, portanto, o direito legítimo à posse delas, não só por ocupá-las há mais de século, como também porque foi nelas que seus ancestrais buscaram recuperar a dignidade que o tráfico negreiro lhes roubou, trazendo-os à força para trabalhar como escravos em uma terra estrangeira.

O Brasil tem uma enorme dívida de gratidão para com os descendentes dos escravos e, por isso, o MPF luta também pela implantação de ações afirmativas que deem a eles mais chances de ascensão social do que tiveram no passado, como, por exemplo, maior facilidade para ingressar em universidades públicas por meio de cotas raciais. As populações vítimas de maus tratos no passado, como negros e índios, foram dizimadas, expropriadas de suas terras ou perderam a liberdade para ajudar a construir o Brasil próspero que conhecemos hoje.
Nós todos, sejamos descendentes de índios e negros ou não, temos em nossas mentes e costumes a herança das culturas africana e indígena. Estamos em um país que se moldou à imagem de três povos distintos: o europeu, o africano e o ameríndio, e não podemos, hoje, esquecer aqueles que ainda trazem viva a tradição do nosso passado, como os quilombolas e os povos indígenas que ainda não foram aculturados. Esses remanescentes do nosso passado, que resistiram à aculturação imposta pelos europeus, merecem o nosso respeito e gratidão. Não podem ser esquecidos nem suas terras tradicionais ocupadas por pessoas gananciosas interessadas em expulsá-los do espaço que necessitam para manter viva sua cultura.
Enquanto brasileiros, assim como nós que vivemos nas cidades, eles têm que ter seus direitos de cidadãos respeitados e sua dignidade restaurada. Fizeram a opção de viver de acordo com a tradição dos seus antepassados, nas terras que herdaram deles, e não podemos deixar que elas sejam invadidas e sua cultura exterminada.
Enquanto puderem manter suas raízes, teremos um pouco do nosso patrimônio histórico preservado em suas línguas, na culinária, nos rituais religiosos e costumes. Afinal, esse imenso Brasil um dia foi completamente terra de índios e, depois, construído pelos negros trazidos da África para trabalhar nas fazendas de café, de cana de açúcar ou nas minas de ouro, por exemplo. Os negros serviram aos europeus que aqui chegaram em busca da fortuna e quando foram libertados ficaram completamente na miséria, sem nenhuma assistência do Estado. Ao invés de empregá-los, seus antigos patrões preferiram contratar imigrantes que mandaram buscar na Europa. Sem dinheiro, sem educação e sem emprego, os escravos libertos não tiveram as mesmas chances de ascensão social que os descendentes de europeus. Nada mais justo, portanto, que hoje a nossa população, totalmente miscigenada, lembre-se dos seus antepassados e os homenageie respeitando aqueles descendentes que se recusaram a abdicar de sua cultura para integrar-se à civilização europeia.
Se hoje ainda existem quilombolas e indígenas vivendo em suas terras tradicionais, apegados ao legado de seus ancestrais, só podemos homenageá-los e lembrar que fazem parte da nossa herança cultural, são os vestígios do nosso passado que devemos preservar e do qual podemos nos orgulhar. Eles são a história viva da civilização brasileira. Afugentá-los de suas terras, querer que se adaptem aos nossos hábitos e costumes urbanos é uma violência contra o nosso patrimônio cultural. A presença deles homenageia o que fomos, e isso não podemos esquecer.
O nosso passado está inscrito nessas terras quilombolas, assim como nas terras tradicionais dos povos indígenas. Se, em nome do progresso ou da ambição de alguns, deixarmos que elas sejam retiradas de seus verdadeiros donos, estaremos matando o que restou da nossa herança africana e ameríndia. Ou seremos nós apenas europeus? Então porque relegar os nossos pais do passado, os povos que nos deram a identidade que temos hoje?

O dia 20 de novembro foi escolhido para homenagear a consciência negra porque nessa data, no ano de 1695, morreu Zumbi dos Palmares, um negro guerreiro que lutou pelo direito de viver em liberdade junto com seus companheiros refugiados no quilombo de Palmares. Localizado na Serra da Barriga, no município alagoano de União dos Palmares, esse quilombo foi o maior e mais famoso do Brasil, e ao defendê-lo Zumbi deixou sua marca na história como um herói que lutou pela dignidade do nosso povo. Junto com ele morreram vários negros rebelados contra a injustiça da escravidão e a eles rendemos homenagem como bravos brasileiros que foram, pois, recusando obediência à tiraria que reinava nas senzalas, construíram pequenas ilhas de liberdade na floresta, fora do alcance do açoite daqueles que se diziam seus donos.
Não podemos, portanto, esquecer que os quilombos foram mostras da dignidade de uma raça oprimida e subjugada pelos brancos que colonizaram o Brasil. Devemos pensar nos quilombos com o orgulho de um povo que teve nesses negros rebeldes um exemplo da altivez que não se curva à tirania nem à opressão.
Fomos oprimidos junto com os negros escravizados, pois o que antes era africano, hoje já não é mais. É tudo brasileiro. O que era escravo, já não é mais. Hoje somos apenas um povo, formado por essas três etnias: índios, negros e brancos. A miscigenação já misturou em nós o sangue dessas três raças, e se esquecermos que somos apenas brasileiros, continuaremos tratando os negros e índios remanescentes da nossa história com o mesmo racismo e arrogância dos nossos ancestrais portugueses.
Enfim, não somos uma nação europeia. Não somos uma nação negra. Não somos uma nação indígena. Somos uma nação brasileira, que é feita desses três povos, e se perseguirmos parte do que somos, só podemos dizer que somos loucos, pois quem persegue a si mesmo só pode ter perdido o juízo.
Enquanto nação miscigenada, não apenas por essas três raças, mas também por imigrantes vindos de várias partes do mundo, somos um povo único no planeta. Disso podemos nos orgulhar, pois aqui se uniram populações de diversas origens para formar uma só. Enquanto brasileiros, temos que respeitar cada país que contribuiu para a formação da nossa cultura. Além dos índios, africanos e portugueses, tivemos grandes levas de imigração japonesa, alemã, italiana, libanesa, judia, polonesa, holandesa e tantas outras. Aqui todos esses povos, com suas culturas e religiões diferentes, foram aceitos e integrados, e hoje somos uma civilização multirracial, rica na sua diversidade e da qual só podemos nos orgulhar. No entanto, para que não venhamos a nos envergonhar no futuro de termos exterminado totalmente a cultura remanescente dos nossos ancestrais negros e índios, devemos deixar que os quilombolas e povos indígenas vivam em paz em suas terras tradicionais. É protegendo esse patrimônio cultural vivo da nossa história que remediaremos as injustiças cometidas contra eles no passado.

 

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