domingo, 28 de julho de 2013

PARA UMA ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO BRASILEIRA

PARA UMA ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO BRASILEIRA




Ao longo da historiografia da alimentação pelo mundo, a maneira de preparar os

mesmos alimentos difere de um povo para outro, ou mesmo diferenciam-se em seus

próprios ambientes, em função da variação tecnológica, econômica e social.

Na fixação sistemática do homem sobre a terra, traços formadores de um novo

sistema de vida foram identificados, aproximadamente, no ano de 7000 a.C., no Neolítico,

na Era da Revolução Agrícola, no continente africano. O inusitado desenvolvimento deste

complexo cultural, advindo de um sistema de vida nômade, ou semi-sedentário de produzir

alimentos e recolher o pescado, estabelece elementos que justificam as moradas fixas junto

às margens de rios e lagos.

Plantas e animais disponíveis, como material inicial para a domesticação, foram

pressupostos iniciais na acumulação de alimentos. Os grupos que pretendesse crescer, para

tanto, baseava-se na produção de alimentos.

Da Pré-História e das primeiras civilizações à época contemporânea, identidades em

formas alimentares foram levadas pelo mundo, os alimentos e as bebidas do Antigo Egito,

os produtos e recursos alimentares dos Fenícios e Cartaginenses, os modelos do mundo

clássico, os banquetes romanos, as refeições gregas, os bárbaros e cristãos na aurora da

cultura alimentar européia, as cozinhas medievais, a alimentação oriental e africana, a

cozinha árabe e suas normas islâmicas, os costumes alimentares judeus, entre outros tantos.

Estudar a “cultura na mesa brasileira” é ir bem mais além das tradições e influências

dos nativos indígenas, das iguarias africanas e das suculências portuguesas. Pois a cozinha

é um reativo de rara sensibilidade para avaliar a cultura de uma população, é uma

linguagem que se deve saber interpretar para melhor compreender os costumes de um povo.

A alimentação como objeto de conhecimento é, também, uma ferramenta de

educação, pois, as tradições, as representações, as linguagens, as idéias e teorias despertam

curiosidades, verificações e comunicações. Quanto mais o indivíduo percebe as diferenças,


mais aumenta as possibilidades da busca do saber. A complexidade humana reúne e

organizam conhecimentos dispersos, o ensino através das origens do cultivo, do preparo, do

servir, do comer, dos tabus, hábitos, comportamentos, superstições e costumes alimentares,

estabelece uma comunicação entre disciplinas e a compreensão da trajetória das sociedades

humanas. A cultura é construída por fragmentos, separações e distinções que se reúnem e se

articulam. A coisa e a causa se confundem.

Cultura e culto derivam do mesmo verbo latino
colo, que significa ‘eu cultivo’.

Cultus

é sinal de que a sociedade que produziu o seu alimento já tem memória. O culto faz

do solo o local do sagrado. A cova que receberá o grão que fora transformado em alimento

poderá ser, também, a cova que receberá os que partiram. Os sepultados, na verdade, são

plantados para que renasçam. O solo no qual repousam os antepassados é o mesmo do qual

brota, a cada ano, o sustento alimentar do corpo, inferindo aos espíritos dos antepassados a

cooperação na germinação das plantas cultivadas.

É o ciclo do nascer e do morrer. Do plantar e do renascer. Da luta pelos meios do

sobreviver e do religar ao passado pelas mediações e pelos laços que irão sustentar a

identidade das origens.

Culto e cultura neste enfoque nos desloca para as matizes do passado buscando no

termo
colo, a ocupação do chão, amarrando os significados que mostra o ser humano preso

a terra e, nela, abrindo covas que lhe fornecem alimento e lhe abrigam depois de mortos.

A Antropologia da alimentação no Brasil tem como referência, as obras de Gilberto

Freyre. Em seu livro “Assucar: algumas receitas de doces e bolos dos engenhos do

Nordeste” publicado em 1939, tendo a segunda edição, aumentada e revisada, em 1967,

com o subtítulo, “em torno da etnografia, da História e da Sociologia do doce no Nordeste

canavieiro”, ressalta toda a influência subjetiva do açúcar no sentido de adoçar maneiras,

gestos e palavras. De forma definitiva, em Casa Grande & Senzala, Freyre, trata a

alimentação como valor essencial para a análise sociológica, até então discriminada às

categorias secundárias da investigação científica.

No Brasil os elementos trazidos nas bagagens, na memória, intrínsecos nas heranças

culturais, vivo nos hábitos, fiéis nas tradições, aculturaram-se, reformularam-se,


reelaboram-se numa cozinha, que em um primeiro momento mobiliza a base alimentar do

índio, nativo brasileiro.

Traços marcantes das culturas dos nossos antepassados indígenas, como gêneros

alimentícios, práticas de cultivo; utensílios para fazer a comida, para guardá-la, para pisar o

milho ou o peixe, moquecar a carne, espremer as raízes, peneirar as farinhas, como os

alguidares, as urupemas, os tipitis, as cuias, as cabaças de beber água, os balaios, foram

incorporados à cozinha colonial, e, freqüentemente encontrados nos dias de hoje nas casas

do norte, do centro e do nordeste do Brasil.

Das comidas preparadas pela mulher nativa brasileira, as principais eram as que

faziam com a massa ou a farinha de mandioca, sendo adotada pelos colonos no lugar do

pão de trigo, tornando-se a base do regime alimentar de todo colonizador. A mandioca

como a mais brasileira de todas as plantas, tem uma ligação direta com o desenvolvimento

histórico, social e econômico do Brasil.

Assim como ensinou ao português o cultivo e o consumo da mandioca, o indígena

fez o mesmo com o milho. Alimento tradicional dos povos americanos, o milho foi o único

cereal encontrado no Brasil e levado para Europa. A farinha de milho foi comida de

escravos e de bandeirantes, não tão consumida quanto à farinha de mandioca, mas,

difundida por todo o Brasil, através do preparo do cuscuz, este, por sua vez, transformado

na cozinha brasileira, da sua origem árabe à base de arroz, para a reelaboração com farinha

de milho e coco.

A tradição alimentar indígena, com as frutas e os frutos brasileiros, combinados

com as especiarias, trazidas pelos portugueses, tais como: cravo, canela, gengibre, nozmoscada

e erva-doce e, mais, o modo tradicional de fazer bolos, doces e conservas,

passados pela alquimia da cozinha brasileira, foi parte de um processo intercultural, no

qual, o milho, nativo do Brasil; o açúcar de cana, planta originária da Ásia e o coco, de

origem indiana, resultaram em complexas receitas, guardadas em segredo, como

verdadeiras maçonarias.

O português foi o principal europeu formador da nossa árvore genealógica. Mas, é

necessário esclarecer que a formação étnica do nosso colonizador português foi uma

decorrência de longos anos de aculturação e assimilação. Desde os tempos mais primitivos


do continente europeu, fizeram parte da sua história: os celtas e os iberos, tendo, também,

em sua estrutura civilizatória, os povos mediterrâneo-camitas, originários da África do

Norte. As invasões romanas fazem entrar em território português povos diversos: sírios,

armenóides, itálicos. A influência judia fixou-se, impondo aspectos políticos e sociais na

difusão de sua cultura no território português.

Dos romanos, recebeu a formação portuguesa variada influência, que, de modo

geral, tornou-se básica, no levantamento do nível intelectual da população, na facilidade da

comunicação através da construção de estradas, na edificação de cidades, no sentido

municipalista, na organização política, bem como o cristianismo, que se tornou um dos

fundamentos de sua formação cultural. Às invasões germânicas, sucederam-se as romanas,

resultando na integração de novos grupos humanos na população portuguesa, entre eles,

alanos, vândalos, godos, suevos, visigodos, com a predominância do elemento de

procedência nórdica. Com os germanos, introduziu-se, em Portugal, a aristocracia, que veio

chocar-se com a democracia romana.

Invasões árabes levaram a Portugal novos elementos étnicos e novos valores

culturais, onde perduram até hoje, na arquitetura, com os arabescos mouriscos; na

agricultura, na introdução de técnicas de irrigação; nos minhos de água; nas indústrias; nos

trabalhos em pele; no aperfeiçoamento de tecidos de lã e linho; nas artes; na língua; nos

trajes. A entrada dos mouros, que eram escravos trazidos da Mauritânia, país que fica no

norte africano, entre o mundo árabe e a chamada África Negra, trouxe características sutis à

cultura portuguesa. Dos mouros, sabe-se que muitos dos libertos isolaram-se em grupos,

formando as mourarias. Assim, o elemento português, um dos formadores do povo

brasileiro, trouxe em seu processo histórico a aculturação, que decorreu durante séculos, até

a sua formação quinhentista.

Instalando-se para ficar definitivamente no Brasil, o português recriou o ambiente

familiar, cercando-se dos recursos de curral, quintal e horta. Trouxe vacas, touros, ovelhas,

cabras, carneiros, porcos, galinhas, gansos, pombos e o mais disputado animal entre os

indígenas, o cachorro. Trouxe também as festas tradicionais e as devoções aos santos

católicos. Outros verdes vestiam a nova terra: figo, romã, laranja, limão, lima, cidra, melão

e melancia. Pepino, coentro, alho, cebola, hortelã, manjericão, cenoura e bredos, tornaram5

se habituais o uso, da manteiga, do ovo, do azeite e do vinho. As conexões geográficas

realizadas pelos portugueses possibilitaram o desenvolvimento da diversificação na

produção de alimentos no Brasil.

Compondo a tríade formadora do nosso tronco cultural, sobre o qual a sociedade

brasileira foi modelada, o negro africano, ainda em sua terra natal, sofreu influências de

diversas culturas. O processo de expansão ultramarina, faz com que o português chegue ao

continente africano no século XV, exercendo junto com outros países vizinhos, um

amalgamento de culturas. Essas influências acrescida da diversidade étnica africana, teve

maior peso na formação do povo brasileiro, o patrimônio cultural do africano negro, trouxe

peculiaridades comuns e valores diversos, contribuindo para que a transmissão da cultura

africana não fosse apenas por um, dois ou três elementos assimilativos, mas de inúmeras

nações africanas com culturas variadas e impregnadas pelas culturas européia e islâmica.

O ciclo do açúcar, o ciclo do ouro, o ciclo do café, formaram o caminho das iguarias

e dos manjares africanos pelo Brasil. As sociedades secretas e os ritos religiosos, com suas

comidas sagradas, transportaram as oferendas dos orixás, em pratos do cotidiano da mesa

do brasileiro.

A palmeira, de onde se extrai o azeite-de-dendê, o óleo de palma ou o azeite-decheiro,

plantada pela orla ocidental e oriental africana, foi trazida para o Brasil nas

primeiras décadas do século XVI, possibilitando o acesso a um dos elementos primordiais

da culinária afro-brasileira.

A cozinha africana contemporânea firmou suas características e elaborou suas

técnicas, depois do Brasil ter sido povoado, na segunda metade do século XVI. Foi o

período em que as espécies brasileiras foram transladadas ao continente africano, tais como,

a mandioca, a macaxeira-aipim, o milho, o caju, entre outros.

O vatapá representante oficial da cozinha afro-brasileira e, principalmente, da

baiana, foi uma elaboração da nossa cozinha, na qual, o leite de coco, junta-se à farinha de

milho ou de mandioca e ao azeite de dendê para compor com o peixe e os camarões um

prato especificamente brasileiro. Na África o leite de coco não possui o prestígio que

usufrui no Brasil, ao que se sabe, vatapá não é palavra de nenhum idioma banto. E apenas

em Angola, alguns pratos se aproximam do vatapá, o
muambo de galinha e o quitande de


peixe. O vatapá foi desenvolvido nas cozinhas baianas, tomando o rumo das mesas

brasileiras e continuando a evoluir e complicando-se em sua química pela adição e

substituição dos seus componentes pelas diversas regiões brasileiras.

No imenso território que é o Brasil, seja na zona rural ou na zona urbana, nossos

ancestrais africanos, deixaram enraizados as suas culturas, miscigenadas pela confluência

de gostos, aromas e sabores, além do folclore, da arte, da música, da dança e de outras

influências encontradas na cultura brasileira. Mas, é na cozinha que a presença dos índios,

negros e portugueses desperta o deleite e o prazer da mistura.

As sabedorias no plantar, a prática do colher, as técnicas de conservar, a arte de

preparar, o ritual do servir, o prazer do comer e degustar, revelam a marcha da formação do

povo brasileiro. O desbravamento do nosso país pode ser lido através do multiculturalismo

alimentar. Grupos étnicos diversos aqui, fixaram-se, formando um ladrilho cultural,

reelaborados em cada região, nas combinações das sobrevivências dos hábitos e costumes,

instaurando-se como indicadores das nossas raízes e da nossa identidade.


 
 

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