quinta-feira, 18 de julho de 2013

Trajetória das religiões afro-brasileiras ou: “como chegamos até aqui?

Trajetória das religiões afro-brasileiras ou: “como chegamos até aqui?


 
Para descobrir um novo mundo, é preciso saber esquecer seu próprio mundo, do

contrário, o pesquisador estará simplesmente transportando seu mundo consigo ao

invés de manter-se ‘à escuta’
 

(Hampaté Bâ)

 
Se queres saber quem sou,

Se queres que te ensine o que sei,

Deixa um pouco de ser o que tu és

E esquece o que sabes
 

(Tierno Bokar)
 

 Universos culturais e cosmovisões africanas: uma visita necessária

Considerando as discussões já realizadas nas aulas anteriores, partamos para

uma ampliação dos nossos conhecimentos e compreensão acerca das religiões afrobrasileiras.

Proponho então dois movimentos:
(a) revisitarmos, brevemente, o universo

das culturas africanas que deram origem às modalidades de religiões que analisaremos

mais adiante e
(b) Mergulharmos nos universos das religiões afro-brasileiras. O

primeiro movimento será feito através do texto aqui apresentado. O segundo faremos

durante a aula, em forma de oficina. Ao que poderá se seguir uma visita a um terreiro,

caso alguém se sinta motivado a isso.

O texto que segue deve então ser visto como base e substrato para essa primeira

incursão às origens e trajetórias das religiões afro-brasileiras.


. O poder da Palavra e da tradição, segundo Amadou Hampaté Bâ
 

Povos de referência:
 
bambara e peul (fulas).

Neste seu clássico texto, Amadou Hampaté Bâ nos apresenta uma boa

introdução ao universo cultural africano (melhor seria utilizar a expressão no plural), ao

abordar temas fundamentais como a tradição oral, a origem divina da Palavra, o poder e

os sentidos da Palavra entre os peul e os bambara, os tradicionalistas, a autenticidade da

transmissão da palavra nas sociedades africanas, os ofícios tradicionais, as

características da memória africana além da relação entre a islamização e as culturas

tradicionais de partes daquele continente. Vejamos, em que aspectos o texto nos pode

ser útil para a nossa discussão, sem perdermos de vista que caminhamos na direção de

buscarmos possibilidades pedagógicas para a implementação da Lei 10.639/2003.

Hampaté Bâ começa e termina seu texto com frases de um grande sábio de

Bandiagara Tierno Bokar. Ao começar dizendo que “
A escrita é uma coisa, e o saber

outra
 Hampaté Bâ e Bokar já adiantam grande parte do que será dito ao longo do

texto. Contudo, essa compreensão do saber não é consenso, principalmente nos tempos

atuais e no mundo ocidental. Por isso, Hampaté Bâ acha necessário retomar a famosa e

enfadonha discussão acerca da legitimidade e autoridade da tradição oral como

produtora de conhecimento digno de confiança. Sobre a importância da oralidade, ele

diz:
O testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e

vale o que vale o homem
Com isso ele quer chamar a nossa atenção para a

importância da tradição oral e da oralidade. É necessário, portanto, como Bokar voltará

a dizer no final do texto, nos despir de certas hierarquizações do saber, próprias do

mundo ocidental. Só assim poderemos compreender a importância da oralidade no

sentido que ela possui nas culturas tradicionais africanas, e nas culturas afro-brasileiras.

Mas adiante Hampaté Bâ continua:
Nas tradições africanas - pelos menos nas

que conheço e que dizem respeito a toda a região de savana ao sul do Saara -, a

palavra falada se empossava, além de um valor moral fundamental de um caráter

sagrado vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela depositadas. Agente

mágico por excelência, grande vetor de ‘forças etéreas’, não era utilizada sem

 
prudência
 Não obstante, Hampaté Bâ insiste que, durante muito tempo o ocidente fez

questão de desprezar a importância da oralidade, hierarquizando as fontes e formas de

conhecimento, de forma a menosprezar as tradições orais. Nessa dinâmica, reduzia-se a

oralidade apenas à transmissão de mitos e lendas. Mas ele explica: “
Contraditoriamente

ao que alguns possam pensar a tradição oral africana, com efeito, não se limita a

histórias e lendas, ou mesmo a relatos mitológicos ou históricos, e os
griots estão longe

de ser seus únicos guardiões e transmissores qualificados
 

A partir daqui ele começa então a esmiuçar os diversos elementos que compõem o

mundo da oralidade africana. Universo esse que alimentará as tradições religiosas afrobrasileiras

ao longo de séculos, e que podemos perceber, até hoje, em muitas

manifestações culturais no Brasil.

Ao vermos Hampaté Bâ afirmando que a tradição oral “
esculpe a alma do homem

africano
 já podemos fazer um link com os estudos de Fábio Leite (que analisaremos a

seguir) no que diz respeito ao engendramento social do ancestral, já que os processos

iniciáticos também moldam esse ancestral. A palavra então se reveste de um poder

indispensável na elaboração do ser do sujeito. Ela tem poder de criação. Contudo, como

se verá na ação dos
griots (“os homens da boca rasgada”) ela tanto pode criar a paz

quanto pode destruí-la (p.173), e nisso ela se assemelha ao fogo. E Hampaté Bâ

completa: “
A tradição, pois, confere a Kuma, a Palavra, não só um poder criador, mas

também a dupla função de conservar ou destruir. Por essa razão a fala, por excelência,

é o grande agente ativo da magia africana
 

Numa cultura aonde a palavra possui um poder tão grande ela é vista como

portadora de verdade. É preciso que ela transmita verdade. Contudo a mentira também

existe. Então como fica a natureza da palavra? Até que ponto ela pode ser portadora de

verdade? É um dilema que a vida social tem que resolver. Dá-se então um processo de

produção de sujeitos autorizados a manipular a palavra. Alguns jamais poderão fazer da

palavra a
anti-palavra: a mentira. A mentira é vista então como verdadeira “lepra

moral
E para alguns ela será mesmo interdição, prescrita pelos rituais de iniciação.

Para aqueles que não devem jamais incorrer nela, a sociedade e a tradição é impiedosa,

e isso aparece bem claro nas palavras de Hampaté Bâ: “
Na África tradicional, aquele

que falta à palavra mata sua pessoa civil, religiosa e oculta. Ele se separa de si mesmo


e da sociedade. Seria preferível que morresse, tanto para si próprio como para os

seus
 

Mas, que sociedade não reconhece também a utilidade da mentira? E que

sociedade renunciou definitivamente ao seu uso? Veremos então que alguns sujeitos

poderão faltar e até brincar com a palavra, sem que isso interfira no seu papel social.

Entre essas categorias estão algumas formas específicas de
griots, chamados por isso de

bocas rasgadas”. É aqui que Hampaté Bâ nos adverte sobre as diferenças entre o

Tradicionalista
Conhecedor, Doma) e o griot. Enquanto o griot pode se utilizar de

pequenas e engraçadas mentiras, o tradicionalista (assim como o nobre) jamais poderá

fazê-lo. São palavras de Bâ: “
Um mentiroso não poderia ser um iniciador, nem um

‘mestre da faca’, e muito menos um ‘
doma’. Se excepcionalmente acontecesse de um

tradicionalista – doma – revelar-se um mentiroso, jamais voltaria a receber a

confiança de alguém em qualquer domínio e sua função desapareceria

imediatamente
 É aqui que reside uma das grandes diferenças entre o tradicionalista e

o griot.

Portanto,
Não se deve confundir os tradicionalistas-doma, que sabem ensinar

enquanto divertem e se colocam ao alcance da audiência, com os trovadores,

contadores de histórias e animadores públicos, que em geral pertencem à casta dos

Dieli
(griots) ou dos Woloso (‘cativos da casa’). Para estes, a disciplina da verdade

não existe; e, como veremos adiante, a tradição lhes concede o direito de travesti-la ou

de embelezar os fatos, mesmo que grosseiramente, contanto que consigam divertir ou

interessar o público
 

Para se tornar um tradicionalista, no entanto, não há outro meio senão a iniciação,

que muitas vezes pode durar anos, já que a aquisição de conhecimento dura a vida

inteira.
É aqui que muitos pesquisadores africanos e europeus, não conseguem

penetrar, já que nem sempre estão dispostos à passar pela iniciação. É assim que se dá a

educação nas sociedades tradicionais africanas. Com isso, a tradição oral não se resume

à transmissão de conhecimentos, mas constitui-se uma
forma geradora e formadora de

Quanto aos conhecimentos inerentes à tradição oral e aos processos iniciáticos,

nessas sociedades, Hampaté Bâ nos lembra que tudo isso está muito ligado às profissões

tradicionais e às associações, castas e confrarias. No que se refere às profissões ele

elenca as seguintes:
ferreiros, tecelões, trabalhador da madeira, trabalhador do couro,

animadores públicos
, caçadores, pescadores, agricultores, curandeiros, etc. Cada uma

dessas profissões é portadora de um conjunto de conhecimento e se submete a um

processo iniciático. Como cada categoria se subdivide em outros subgrupos, esses

processos se complexificam ainda mais. Hampaté Bâ afirma então que, pode-se mesmo

falar de uma “civilização” para cada uma dessas categorias profissionais. Com isso:

Cada povo possui como herança dons particulares, transmitidos de geração a geração

através da iniciação
”.15 E foi assim que tais saberes chegaram aqui através das

populações africanas escravizadas. Entre eles também estavam os
peul, mais conhecidos

aqui como
fulas.

Para se ter uma ideia, na categoria dos
griots pode-se falar de três subcategorias:

os músicos
, os embaixadores e os genealogistas. A serviço de seus mestressenhores,

esses
griots, diferentemente dos horon (nobres) e tradicionalistas (doma) os

griots
(dieli) podem “brincar” com a palavra. Inclusive através da mentira e de outros

artifícios como a ironia e o disfarce. Sobre as emblemáticas figuras dos
dieli Hampaté

Bâ explica: “
Treinados para colher e fornecer informações, eles são os grandes

portadores de notícias, mas igualmente, muitas vezes grandes difamadores. O nome

dieli em bambara significa sangue. E de fato, tal como o sangue, eles circulam pelo

corpo da sociedade, que podem curar ou deixar doente, conforme atenuem ou avivem

os conflitos através das palavras e das canções
 

Pergunta-se então: até que ponto a prática dos
griots dessas sociedades africanas

podem ser comparadas com a cultura do “
fuxico de candomblé” (na expressão de Júlio

Braga)?
 
 

 As iniciações e a produção do ancestral, na análise de Fábio Leite
 

Povos de referência:
iorubás, agni, senufos.

Vejamos então o que nos diz Fábio Leite sobre o universo cultural dos iorubá,

agni e senufos.

Como veremos mais adiante, os povos de língua iorubá constituíram um dos

principais grupos culturais que muito influenciaram o campo religiosos afro-brasileiro.

Provenientes das áreas que hoje compõem a Nigéria o Benin e Togo (
iorubalândia),

esse povo, na verdade compunha um universo maior que abrangia os seguintes grupos

(LEPINE, 1978): Ana, Itsa, Dasa, Ketu, Ifonyin, Nagô, Awori, Egba, Egbado, Ijebu,

Oyo, Ifé, Ijexá, Onde, Owo, Ilaje, Ikiti, Igbomina, Yaagba, Bunu, Aworo, Itasekiri,

Owu, Ekiti).

Um dos elementos comuns às diferentes culturas que abrangiam esses povos é a

ideia de “
Princípio Vital”. Mais ou menos equivalente ao que conhecemos como “axé”,

os princípios vitais, na verdade abrangem diferentes aspectos da vida pessoal e social

dos sujeitos ligados à esse universo. Esses princípios, quando combinados, agem

diretamente na constituição e sustentação da existência (visível e invisível) humana.

Entre os iorubás, os princípios vitais primordiais são os seguintes:
ARA (corpo);

ESSE
(pés), ORÍ (cabeça), EMI (sopro, respiração, espírito), OKÁN (coração/alma),

EXÚ
(imortalidade).

Ao estudar essas culturas Abimbola (1973) fala do processo de criação através do

qual:
ORINSALÁ molda, OLODUMARE insufla e AJALÁ concede o Orí.19

A escolha do
ori é o ato máximo de livre-arbítrio e é irreversível. A única

testemunha desse ato é
ORUMILÁ (divindade do segredo). Como Ajalá é um tanto

irresponsável, pode-se escolher um
ori com defeito (cru, cozinhado demais, etc.).

Já entre os
AGNI, Fábio Leite fala dos seguintes princípios vitais: AONA (corpo),

WOA WOE
(dinâmica, duplo/espírito), EKALA (caráter/qualidade da pessoa).

Essa compreensão não se distancia muito da dos SENUFO, já que eles falam do

Preexistente
(KOULO TYOLO) que cria pela palavra e delega a ILIQUÉ FOLO a

complementação da criação. Os princípios vitais, por sua vez, são:
TYERI (corpo), NERI

 
(espécie de força, fluido de sopro do criador),
PILE (aquilo que individualiza o ser,

destino).

Voltando aos iorubás: Fábio Leite, na sua abordagem, ao descrever o processo de

engendramento do ancestral, trabalha com as seguintes categorias: HOMEM

NATURAL, HOMEN NATURAL-SOCIAL, PRÉ-ANCESTRAL e ANCESTRAL.

No conceito de HOMEM NATURAL o Ori tem uma importância fundamental.

Leite então dá voz a Verger, a fim de entender o destino de ori após a morte do sujeito.

Fala Verger (1975:508): “
A cabeça (orí), ela, se alguém morre, torna-se Egun”. E Leite

complementa: “
Isso está relacionado à proposição iorubá onde fica estabelecido uma

distinção entre mortos em geral e aqueles mortos fortemente individualizados no

interior de um grupo
[egbé – ilê axé – terreiro]. Estes últimos são os ANCESTRAIS

propriamente ditos. O EGUN é então um elemento caracterizador do parentesco e dos

laços de sangue configurados no âmbito da família e da sociedade através das práticas

históricas. Orí é pois, um princípio vital que institui a imortalidade do homem
 

Para se entender o conceito de HOMEM NATURAL-SOCIAL é importante

compreender também a importância do nome. Entre os iorubá existem diferentes

categorias de nomes (VERGER, 1973): ORUKO AMUNTORUNWA (ligado à forma

de nascer), ORUKO ABISO (ligado à situação da família, por ocasião do nascimento),

ORUKO ORIKI (ligado à personalidade – ORI – da pessoa). Esse último geralmente

muda nas iniciações, por se acreditar que elas alteram a personalidade; ORUKO ORILE

(ligado à posição do sujeito no conjunto genealógico familiar). O nome possui então um

caráter vital. E, na página 72 Leite reafirma:
O nome é, assim, mais um elemento vital

configurador da personalidade e sua natureza social contribui decisivamente para

acrescentar uma dimensão histórica fundamental no indivíduo
 

Através das iniciações dá-se então a formação do ANCESTRAL, de acordo com o

seguinte movimento: HOMEM NATURAL – HOMEN NATURAL-SOCIAL – PRÉ-

ANCESTRAL – ANCESTRAL. Esse movimento também se dá, transversalmente,

entre a EXISTÊNCIA VISÍVEL (histórica) e EXISTÊNCIA INVISÍVEL (memória).

Contudo, Fábio Leite nos adverte que essa construção se dá através de uma

combinação entre os processos de SOCIALIZAÇÃO (família, contato de corpos,

imitação, histórias e fábulas, “classes de idade”
da INICIAÇÃO : “(...) a suposição

básica é a da ocorrência de uma transformação substancial da personalidade com o

envolvimento decisivo das instâncias divinas ou mágicas e da sacralização do homem
 

É nesse contexto que podemos situar, por exemplo, a participação tão fundamental de

algumas categorias sociais e profissionais nos processos iniciáticos. A figura do
ferreiro

(em função da sua proximidade e interação com a terra e com a transformação dos

elementos que são retirados dela), por exemplo, é fundamental durante esses ritos. E

nisso tanto Hampaté Bâ quanto Leite concordam.

Sobre as iniciações o autor fala de dois tipos:
(a) ATÍPICA: reservada a algumas

categorias específicas de sujeitos: feiticeiros, confrarias, sacerdotes, reis, etc.
 

TÍPICAS: direcionadas a pessoas comuns, plenamente integradas na sociedade.
Com

isso se depreende que, em sociedades como estas, ninguém fica isento de iniciações. A

existência do sujeito depende delas. Em outras palavras, socialmente ele só passa a ser

depois que se inicia. Só através delas ele é, de fato e de direito.

Leite nos relembra que, genericamente, qualquer iniciação se dá, basicamente

através de três momentos: SEPARAÇÃO - RECOLHIMENTO – REINTEGRAÇÃO.
 
Ao analisarmos esses ritos de passagem, tão comuns a qualquer vida social, até mesmo

às formas mais atuais e modernas de sociedades, veremos como esses ritos ainda são

fortes marcadores de identidade e posições sociais no interior das religiões afrobrasileiras.

E é justamente aqui que nós, professores de educação básica, temos que

redobrar nossa atenção em sala de aula. Pois é nesses momentos que nossos alunos se

encontram mais expostos e vulneráveis a casos de discriminação, intolerância e

violência, ao exibirem ou portarem sinais e/ou símbolos ligados a esses processos

iniciáticos.
 

Entre os povos africanos analisados por Leite, ele assegura que: “
Todos esses

momentos são caracterizados por uma forte concentração da sociedade sobre o

indivíduo
 Os rituais funerários (sobre os quais a obra de Juana Elbein dos Santos, Os

nagô e a morte
 é referência obrigatória) compõem o derradeiro elemento vital da vida

social negro africana. E aqui podemos pensar em como esses ritos tem aparecido nas

religiões afro-brasileiras e até que ponto toda essa cosmovisão africana reaparece nessas

modalidades religiosas.


 
 Transladação e diáspora: um movimento forçado

 Da África para as Américas
 
Depois de termos revisitado o universo cultural e religioso africano através das

palavras de Amadou Hampaté Bâ e de Fábio Leite, façamos agora, confortavelmente, a

travessia que as culturas africanas fizeram, em meio a um contexto totalmente adverso.

Vejamos a trajetória das culturas africanas da África para as Américas.

No seu conhecido livro
As culturas negras no Novo Mundo (1979), Artur Ramos

reflete sobre questões que, no momento em que o livro é publicado pela primeira vez,

(1937) também estavam sendo discutidos pelo 2º Congresso Afro-brasileiro, em

Salvador.
 

Nas palavras iniciais de Ramos ele já enuncia o que motiva sua reflexão:

 
Abandono agora, por um momentos, as pesquisas parciais, sobre os cultos, religiões e

folclore do negro, no Brasil, para lançar uma visão de conjunto sobre o negro em toda

a América. O negro como representante de suas culturas. É este, portanto, um ensaio

de Psicologia Social e Antropologia Cultural. Examino os padrões de culturas que os

negros transportaram da África para o Novo Mundo e o destino que aqui tiveram
 
Um dos temas abordados pelo autor é justamente a discussão a respeito dos

diferentes povos e culturas africanas radicadas nas Américas. Sobre os povos
bantos

Ramos explica: “
Os Bantus constituem um conglomerado de povos diversos unidos

apenas pelo laço lingüístico. (...) Poderiam os Bantus ser definidos, lembra Seligman,

como sendo todos os negros que se servem da raiz
ntu, homem, para qualificar os seres

humanos. Com o prefixo plural
ba, teremos o nome ba-ntu, ‘homens da tribo’. E foi

esse o nome que permaneceu na terminologia etnográfica. Os Bantus podem ser

distribuídos em três grupos gerais: a) os bantus Orientais, que se estendem ao norte da

Uganda, na colônia de Quênia, território de Taganica, Rodésia setentrional, a

Niassalândia, e o este africano português ao norte do Zambeze;

 

 
Meridionais, ao sul do Zambeze e do Cunene, ocupando uma vasta região que

compreende a Rodésia meridional, a metade sul do Oeste africano português, as partes

oriental e central da União Sul-Africana, os protetorados da Suazilândia e da

Bechuanalândia, e o sudoeste africano; c) os Bantus Ocidentais, que vivem ao norte do

Cunene, do Atlântico à Rodésia do noroeste e à depressão dos grandes lagos,

estendendo-se para o noroeste ao Congo francês e sul de Camarões
 

No seu propósito de identificar os padrões de culturas africanas sobreviventes

nas Américas, Ramos chega a seguinte conclusão: “
Podemos assim concluir que três

padrões principais de culturas negro-africanas entraram e sobreviveram nas Índias

Ocidentais. Nas Antilhas Espanholas (Cuba...) a cultura dominante veio da Nigéria:

cultura yoruba. Nas Antilhas francesas (Haiti, pequenas Antilhas Francesas...) os

padrões culturais são daomeanos. Nas Antilhas Inglesas (Jamaica, Bahamas,

Barbados...) a cultura negra é Fanti-Achanti, da Costa do Ouro, como nas Guianas

Holandesas e Inglesa
 

A partir das palavras de Ramos podemos então identificar uma geografia das

culturas negro-africanas que vieram para as Américas: “
A) Culturas sudanesas,

representadas principalmente pelos povos
yoruba, da Nigéria (Nagô, Ijechá, Eubá, ou

Egbá
, Ketu, Ibadan, Yebu ou Ijebu e grupos menores); pelos Daomeanos (grupo Gêge:

Ewe
, Fon ou Efan, e grupos menores); pelos Fanti-Ashanti, da Costa do Ouro (grupos

Mina
propriamente ditos: Fanti e Ashanti); por grupos menores da Gâmbia, da Serra

Leoa, da Libéria, da Costa da Malagueta, da Costa do Marfim... (
Krumano, Agni,

Zema
, Timiní...). B) Culturas guineano-sudanesas islamizadas, representadas em

primeiro lugar pelos a)
Peul (Fulah, Fula, etc.), b) mandiga (Solinke, Bambara...) e c)

Haussá
do norte da Nigéria; e por grupos menores como os Tapa, Bornú, Gurunsi, e

outros.
C) Culturas bantus, constituídas pelas inúmeras tribos do grupo Angola-

Congolês
e do grupo da Contra-Costa.29

Apesar de ter inovado significativamente nas pesquisas, em relação ao seu mestre

Nina Rodrigues, Ramos não deixa de cair em algumas armadilhas da pesquisa e

continua defendendo as culturas iorubás (nagô) como sendo a cultura que mais teria

influenciado as religiões afro-brasileiras, ligando-a a um ideal de pureza que seria muito


criticado depois. E com isso ele termina privilegiando os iorubás. Sobre essa questão ele

afirma:

 
A cultura yoruba foi a mais importante das culturas negras transladadas ao Brasil.

Esta cultura foi introduzida pelos negros da Costa dos escravos, que forneceu um

grande número de escravos para o Brasil. Desde muito tempo, toda a zona do Golfo da

Guiné fora explorada pelos mercadores de escravos, como o prova o tráfico português,

desde 1452. Mas foi somente em fins do século XVIII e começos do XIX que o reino dos

Yorubas começou a fornecer regularmente negros para o mercado de escravos. E sabese

o papel que desempenhou o mestiço brasileiros Félix de Souza de parceria com

Domingos Martins na organização deste tráfico. Data daí a grande afluência de negros

yorubas ao Brasil e a Cuba. Formado o reino de Yoruba, só conhecido dos europeus no

século XIX, tornou-se Lagos o ponto mais importante do tráfico em todo o Golfo da

Guiné. Mas os pontos de procedência foram vários: de Oyó, capital de Yoruba, de

Ilorin, de Ijexá, de Ibadan, de Ifé, de Yebú, de Egbá... o que explica as várias

denominações de negros que tanta confusão têm causado aos historiadores. A grande

massa de negros Yoruba foi introduzida na Bahia e lá tomaram a denominação geral

de nagôs, termo que davam os franceses aos negros da Costa dos Escravos que falavam

a língua yoruba. No seu tempo, assevera Nina Rodrigues que os mais numerosos dos

negros eram os de Oyó; depois, em ordem decrescente, os de Ijexá, de Egbá... O mestre

baiano apenas conheceu um negro de Ifé, três de Yebú. Lagos era o empório central, de

onde eram todos enviados para os mercados do Brasil e outros pontos da América
 

(RAMOS, 1979: 189-190).

Contudo, mesmo advogando principalmente na causa dos iorubás, devemos a

Ramos muitos estudos sobre os bantus, como demonstram as páginas 225-226 desse seu

livro, nas quais ele reproduz uma famosa descrição feita por Brás do Amaral, acerca dos

negros de angola.


 
2.2. As religiões africanas no Brasil: seguindo as pistas de Roger Bastide.
 
Depois de termos acompanhado, com Artur Ramos, o movimento de translado

das culturas africanas parta o Novo Mundo, vejamos agora, através da contribuição de

Roger Bastide (1971), como essas culturas religiosas se ambientaram no Brasil.

Hoje considerado de leitura indispensável para uma compreensão das religiões

afro-brasileiras o livro de Roger Bastide,
As religiões africanas no Brasil, pode ser de

grande utilidade para o professor de educação básica que deseja, de fato, trabalhar o

tema das religiões afro-brasileiras com seus alunos. São muitas as “sacadas” desse

pesquisador neste livro. Uma delas é a demonstração de que, em função da escravidão,

apenas alguns orixás sobrevivem nas Américas. Ele percebe então que a maioria deles

está ligada à guerra e às condições de vida das populações escravizadas, como a justiça,

a cura e a magia (Ogum, Ossãe, Oxósse, Oxum, Xangô...). Outros, de naturezas

incompatíveis com as condições adversas da escravidão (orixás ligados à agricultura,

por exemplo) não encontraram respaldo e sumiram. Apesar de hoje, século XXI,

estarem ressuscitando.

Outra constatação feita por Bastide é a relação entre as religiões afro-brasileiras

e os serviços policiais e de proteção ao psicopatas, nos estados de Pernambuco, Bahia e

Alagoas. De fato, durante muito tempo esses serviços foram as principais fontes de

informações sobre essas religiões já que era através delas que os governos controlavam,

perseguiam e puniam os seguidores dessas religiões, tidas pelo poder público como

perigosas e pouco merecedoras de confiança. Interessante é observar os números de

casas religiosas registrados por Bastide à época da sua pesquisa (especificamente nos

estados de Pernambuco e Bahia). Impossível resistir à tentação de comparar com os

números de hoje.
 

Mas Bastide não se limita a falar apenas de candomblé. A propósito, a sua

pesquisa específica sobre o candomblé da Bahia já havia sido feita anteriormente. Aqui

ele também se preocupa com outras modalidades de manifestações religiosas afro-

 

brasileiras. É assim que ele fala, por exemplo, do CANJERÊ
Depois ele cita a

CABULA, outra manifestação religiosa que teria existido no Espírito Santo na mesma

época do canjerê.
 Dados interessantes são trazidos por Bastide na página 282, onde

ele faz referência ao número de casa em Porto Alegre e fala também sobre o controle

policial sobre o BATUQUE.
 Mas adiante aparece nas análises de Bastide referências

ao BABASSUÊ,
 presente na Amazônia e resultante do encontro do culto aos voduns

com a pajelança. E continua falando de CATIMBÓ, CANDOMBLÉ, MACUMBA,

UMBANDA...

Porém, muitas críticas foram e tem sido feitas a Bastide. Um dos motivos dessa

críticas está ligado ao sentimento de “purismo” que ele apresenta em suas análises ao

privilegiar o candomblé como modelo de religião pura e criticar (às vezes

violentamente) outras modalidades religiosas como a macumba paulista e carioca.

Deve-se lembrar que Bastide buscava entender as relações entre as estruturas sociais e

os valores religiosos, e ao criticar o ingresso do mestiço e do branco no universo do

candomblé, ele termina atribuindo a essa interpenetração de culturas os motivos da

“degeneração” do candomblé que, segundo ele, estaria em vias de degeneração. O

resultado final desse processo estaria representado pela
macumba e pelo espiritismo de

umbanda
. Contudo não cabe aqui retomarmos essa discussão. Mas, na compreensão

dele, tudo isso apontaria também na direção de uma perda da memória coletiva religiosa

afro-brasileira. A prova disso seria o sincretismo religioso. Nas suas palavras: “
Os

problemas do esquecimento e do preenchimento das lacunas da memória coletiva nos

levam, por conseguinte, a novos problemas: os do sincretismo e das interpenetrações

de civilizações
 

Ainda para o autor, a luta racial no Brasil, poderia ser claramente percebida nas

relações entre as religiões. Um exemplo disso seria o surgimento e desenvolvimento da

umbanda. Ele fala em 30 mil tendas de umbanda entre Brasília e o estado do Rio. E

solta: “
A umbanda vem da África, não há dúvidas, mas da África oriental, isto é, do

 

P. 282. O canjerê teria sido uma forma de religião afro-brasileira que teria existido em Minas Gerais,

(calundu?) no século XIX.


 

Conforme dados recolhidos de uma Carta Pastoral de D. João Nery, bispo que veio do Esp. Santo ara

Campinas.


 

Nome pelo qual ficou conhecido a principal manifestação religiosa afro-brasileira do Rio Grande do

Sul, equivalente ao candomblé da Bahia.


Egito
 E, analisando os resultados dos primeiros congressos de espiritismo e

umbanda do Brasil, ele explica a tentativa das lideranças de umbanda em

desconstruírem a pecha de barbarismo, do qual sofriam, ao reivindicarem suas origens

no Egito e na Índia.

Sobre a matriz de candomblé que mais se impôs: o modelo KETU
 
No trajeto que fizemos até agora podemos perceber que, não obstante a grande

heterogeneidade das culturas africanas transladadas para o Brasil, no que tange às

expressões religiosas que aqui conseguiram se manter, alguns modelos conseguiram se

impor. Entre eles o que parece ter sido mais proeminente durante muito tempo foi o

modelo
nagô (iorubá), mais conhecido popularmente como candomblé de nação ketu.39

Vejamos então, com a ajuda de Renato da Silveira, como se deu esse processo de

constituição do primeiro terreiro de nação ketu da Bahia. Mas antes retomemos,

brevemente, o histórico das primeiras manifestações religiosas africanas no Brasil.

As primeiras manifestações religiosas africanas em solo brasileiro (Brasil

colonial) aparecem nos registros históricos (autos de processos, inquéritos policias,

documentos da inquisição, depoimentos de viajantes...) designados de CALUNDUS. A

seguir, apresento um quadro que expõe algumas das primeiras manifestações religiosas

africanas no Brasil colonial, devendo advertir que todos esses dados foram reunidos por

Renato da Silveira, a partir de pesquisas suas e de outros estudiosos. De acordo com

Silveira, os primeiros registros desses calundus podem ser sistematizados da seguinte

forma:
 
 

Aqui nos serviremos da pesquisa magistral realizada por Renato da Silveira e sistematizada no livro:

SILVEIRA, Renato da.

O candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro

baiano de keto

. Salvador : Edições Maianga, 2006.


Ao privilegiarmos aqui essa modalidade (nação) de candomblé, não estamos querendo reforçar o

equivocado processo de hierarquização das nações. Queremos apenas facilitar a identificação dos

elementos do candomblé mais presente nas grandes cidades brasileiras. Isso poderá nos ajudar, por

exemplo, a percebermos quando nosso alunos aparecerem na sala de aula portando símbolos desse

candomblé.


 

Tabela baseada na obra já mencionada de Silveira, pp. 178-234.


 
Referência Lugar/Data Elementos Origem

Domingos

Umbata

Porto Seguro,

1646.

Tigela com água, folhas, noite,

‘cascavel’(tornozeleira de guizos) dente de

onça, uso de língua diferente, carimã, cruz,

círculo, pós, facas, performances ligadas à

adivinhação, encontro público.

Congolês

Negertanz

(‘Dança de

negros’)

Gravura 105 do

Zoobiblion

(‘Livro dos

animais’) de

Zacharias

Wagener
 
Pernambuco,

século XVII.

Dança em círculo e em movimento antihorário,

percussionistas, cocar, beberagem,

indumentárias, posições rituais (mãos nas

ancas, olhos para o alto, braços erguidos...).

Angolano

(?)

Calundu de

Branca.

Vila de Rio

Real, norte da

Bahia, 1701.

Toques de atabaques, cânticos em língua “de

Angola”, dança, torço, pemba (para borrifar),

transe, roupas especiais para o período de

transe (em forma de pele de gato), adaga e

argola metálica (durante o transe), comida e

aluá, curas com utilização de ervas.

Angolana

Calundu de

Luzia Pinta

(“calunduzeira,

curandeira e

adivinhadeira”).

Vila de

Sabará, MG,

1720 1740 +

ou -

Festas e reuniões com atabaques e cantos, sala

de casa feito templo, transe, trocas das vestes

durante os transes, cocares, plumas, alfanje ou

machadinha, uso de língua incompreensível

durante o transe, saltos impressionantes e

“zurradas à maneira de burros”, curas e

adivinhações, uso de ervas e pós, bebidas e

vinhos, símbolos como canoas.

Angolana

A “Dança de

tunda “

(= acotundá).

Josefa Maria.

Paracatu, MG,

1747.

“Boneco” preso a uma haste de ferro e coberto

de sangue, panelas contendo ervas e terra,

toques de atabaques, cantos e danças, transe,

“camarinha”, mudança de roupas durante o

transe, língua africana, adivinhações, diferentes

casinhas, curas, oráculos, milagres...

Courana.
 

Calundu de

Sebastião

Dagomé”

Cachoeira,

BA, 1785.

Rua do Pasto.

Uso de língua jeje, instrumento de ferrinho

toques na boca de um pote, penacho, flechas,

moedas, cabacinhas, pedrinhas, folhas

fedorentas”, ungüento “fedorento”...

Mina/Jeje

Calundu do

Bairro do Accu

Salvador, BA,

1829.

Boneco guarnecido de fitas, búzios, cuia

grande da costa cheia de búzios, dinheiros,

toque de atabaques, mulheres dançando, outras

recolhidas em um “quartinho”, imagens de

santos católicos.

Jeje

 

Alemão de Dresden, que viveu no Pernambuco holandês, entre 1634 e 1641, a serviço de Maurício de

Nassau.


 

De “Courá”, região africana próxima a atual cidade de Lagos, na Costa da Mina.


Contudo, nenhum desses calundus seria a base do primeiro candomblé de nação

ketu da Bahia. Conhecido hoje como
Ilê Axé Iyá Nassô Oká ou Terreiro da Casa

Branca do Engenho Velho
, o “Candomblé da Barroquinha” surge a partir de um grupo

de africanos (nagôs) ligados à Irmandade do Senhor Bom Jesus dos martírios (fundado

em meados do século XVIII), no bairro e igreja de mesmo nome (Barroquinha).

Enquanto isso, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos das Portas do

Carmo, a maior e mais importante da época, era o principal reduto dos negros de origem

banto (angola., congo...).

Segundo Pierre Verger, ainda na Barroquinha, a casa seria dedicada à Xangô e

levaria o nome de Ìyá Omi Àsé Àirá Intilè. Ainda segundo esse autor, a data de

fundação se situaria entre 1788 e 1830.

Já Edison Carneiro, no seu livro
Candomblés da Bahia, fala de 1850, apesar de

deixar aberta a possibilidade de ter sido em 1747. A imprecisão está diretamente ligada

a questão ligadas a datas de aluguéis e compra de terrenos para a sede da casa.

Martiniano do Bomfim fala, para Ruth Landes (1938) sobre a data de 1788. É difícil

precisar essas datas. Mas isso não tira a legitimidade do processo histórico. Até porque,

estamos diante de uma cultura religiosa na qual a tradição oral também possui uma

grande legitimidade. Já quanto ao patrono da casa, ao que parece, enquanto ela esteve

na Barroquinha foi mesmo
Airá. Ao se transferir para a atual sede da Casa Branca, Odé

Oni Popô
passou a ser o patrono.

Sobre esse momento primordial da história da casa Renato da Silveira fala: “
Tudo

indica que um culto a
Odé Oni Popô foi organizado na casa da Barroquinha e,

posteriormente, assentado em uma roça próxima, por pessoas graduadas pertencentes

à família Arô
 E ele continua: “Ora, a saudação feita a Oxossi nas casa de keto

baianas descendentes da Casa Branca, ‘Okê Odé, okê arô’, ou apenas ‘Okê arô’,

significa que primeiro saúda-se a divindade e em seguida seus descendentes que a

trouxeram para o Brasil, ou, no segundo caso, apenas seus descendentes. Esta hipótese

ainda pode ser refinada, levando-se em consideração que essas pessoas da linhagem real

Arô foram muito provavelmente sequestradas pelos daomeanos na cidade de Iwoyê

(Ìwòyè), grande centro ritual, reduto dos Arô, no antigo território dos popôs, que

coincidentemente é a área de onde veio Airá Intile. Iwoyê foi a principal cidade

saqueada pelos daomeanos em 1788-1789, segundo os historiadores do Reino de Ketu.

 

 

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