quinta-feira, 18 de julho de 2013

Uma donzela arisca: a perfeição

Uma donzela arisca: a perfeição

     


Maria Stella de Azevedo Santos
Oxaguiã é um orixá guerreiro. Sua maior luta é pela perfeição: de si mesmo, dos outros e das coisas. Odeia a preguiça, que ele considera o inimigo número um da perfeição. Da união de Oxaguiã com Iyemanjá, nasceu Ogum, orixá guerreiro como o pai. Ogum guerreia para destruir o que precisa ser renovado, enquanto Oxaguiã luta para construir o que foi destruído. Neste vai e vem de batalhas, Oxaguiã foi um dia à cidade de Ogum para buscar munição e encontrou o povo em festa. A comemoração era pelo término da construção do novo palácio do rei Ogum. Tudo parecia perfeito. Não para Oxaguiã! Ele bateu sua poderosa espada no palácio, que ruiu imediatamente. O povo ficou irado! “Tanto trabalho jogado fora, por um capricho de Oxaguiã”.
O pai de Ogum então falou: “O rei de vocês está em guerra e não voltará tão cedo. Por que entregar este palácio para ele, quando um muito melhor pode ser construído?”. Passado um tempo, Oxaguiã retornou à cidade e encontrou o palácio reconstruído. Entretanto, tudo se repetiu: O pai de Ogum destruiu o novo palácio e ordenou que o povo construísse outro, ainda mais perfeito.
Aconteceu que o dia da volta de Ogum se aproximava, só restando para Oxaguiã contentar-se com o último palácio construído, que para todos estava mais do que perfeito. De tanto reconstruírem o palácio, os moradores daquela cidade passaram a ser conhecidos como “os construtores quase perfeitos”. O povo não gostou daquele “quase” e ousou reclamar com a divindade. Oxaguiã disse: “A perfeição é como uma donzela arisca, ela se compraz em ser buscada, mas nunca permite ser encontrada e muito menos ser cultuada”.
Esse itan (estória narrada de geração para geração) fala sobre a importância da busca pela perfeição. Outro dia ouvi o seguinte comunicado: “Não basta fazer, é preciso fazer com amor”. Eu completo esse lindo comunicado, dizendo: Não basta fazer, é preciso fazer com amor, mas fazer bem feito. E ninguém faz nada bem feito se não tiver tempo. Se a preguiça é o inimigo número um da perfeição, a falta de eficiência para lidar com o tempo é o número dois. É por isso que se diz: “Quem tem tempo faz a colher e borda o cabo”.
Quem tem tempo faz arte. E a arte é uma das importantes formas de aproximação com o sagrado. Não é preciso ser artista para se fazer arte, é preciso apenas se tentar fazer as coisas da melhor maneira possível. Tanto nas coisas mais simples, como nas mais complexas; tanto nos assuntos sociais, quanto nos assuntos religiosos.
Lavar os pratos e estar atento para não deixar na pia nem um grão de arroz, de modo que a harmonia e pureza externas ajudem a harmonizar o interior de quem penetre naquele recinto, é arte. Quem me ouve ou lê o que escrevo está acostumado a ouvir a frase “estou sempre correndo atrás da perfeição”. Acontece que quanto mais eu corro atrás da perfeição, mais parece que a perfeição corre de mim. É como um gostoso jogo de “picula”, onde não tem vencido nem vencedor. E a graça consiste exatamente nisso: tentar, incansavelmente, domar essa virgem rebelde. Sim, acredito ser realmente virgem, a perfeição.
Não conheci ninguém que conseguiu casar-se com ela, apesar de não lhe faltar pretendentes. Entretanto, todos nós gostamos de crer que existem pessoas perfeitas. Gostamos de criar ídolos. Um grande risco, tanto para quem idolatra, quanto para quem é idolatrado. Parece que precisamos de ídolos para seguirmos, como se a “perfeição” (ou o axé) do outro pudesse ser por nós absorvida.
O caminho para a perfeição não é reto, ele é cheio de saliências e reentrâncias. É um caminho individual, como individual é o encontro que cada um tem com sua própria forma de construir e reconstruir seus palácios, sejam eles de areia ou de cristal. A perfeição, como o próprio nome indica, é um movimento em direção a: alguma coisa, algum lugar, alguém… Aperfeiçoar-se é simplesmente manter-se em movimento; é buscar sempre o que lhe parece faltar a cada dia, a cada momento. E é Oxaguiã o orixá que nos auxilia a manter acesa essa chama. É Oxaguiã o orixá que estimula o progresso.

 

TEXTO  Jaime Sodré
É isto. O titulo é estratégico para motivar o leitor ao texto. “Vou fazer a louvação, ao que deve ser louvado, louvando o que bem merece deixando o ruim de lado”.
No mínimo estranheza deveria, em outros tempos, causar a visita de um fiel do candomblé a um templo protestante, mas assim o fizemos por obediência à orientação de Ebomi Cidália, que recomendava esta salutar visita para estreitar laços de amizades, enriquecer o conhecimento e abraçar amigos.
A Igreja Batista de Nazareth, um templo histórico, comemorava 35 anos, uma história de muitas histórias dos irmãos solidários, sempre em busca de novos horizontes inclusivos. O culto solene de aniversário teria como orador o excelente Pr. Djalma Torres, assim como o Jantar Teológico, onde teríamos o privilegio da companhia do Pr. Joel Zeferino e Pr. Moises Alves, acolhedores anfitriões, assim como Pr. Djalma, oradores e condutores litúrgicos brilhantes.
Só emoção. Acolhidos, estávamos em casa, sem restrições ou olhares de intolerâncias. Só respeito e carinho. Muita luta ocorreu, tendo como abrigo esta Igreja, contra a ditadura, em favor da democracia plena, dos direitos humanos, contra as injustiças no campo e na cidade.
Em especial, destacamos a participação solidária na luta contra a intolerância religiosa, reconhecimento e respeito à diversidade sexual. Estimulando o dialogo com as paróquias católicas, comunidades protestantes e movimentos sociais, a Igreja alargava o seu horizonte.
Pr. Djalma Torres empenhou-se para que a Igreja fosse recebida pelo Conselho Latino Americano de Igrejas Cristãs (CLAI), na Assembleia de Buenos Aires em 2005, quando o pastor ajudou a criar a Aliança de Batistas do Brasil.
Na “compreensão de que o Reino de Deus é maior do que as suas paredes, sejam físicas ou mentais” destacamos a disposição do Pr. Djalma Torres em dialogar, compreender e participar, como militante ativo, contra as manifestações que vinham de grupos religiosos que, numa demonstração de inadaptação de uma convencia interreligiosa, atacavam o Candomblé.
Pr. Djalma sempre solícito e amigo dos fiéis do candomblé, reservava um espaço do seu precioso tempo para as reuniões ou caminhadas, junto ao povo-de-santo, nas sugestões de posturas para a solução desta incompreensão vil. O Pastor Djalma Torres, pela sua seriedade e apoio às nossas causas, tornou-se um irmão especial, e para retribuir este seu carinho e solidariedade, o povo-de-santo, reconhecendo a sua coragem, sinceridade, em um tom alegre, jocoso, mas respeitoso, desejando ter a honra de integrá-lo em nosso meio, resolveu chamá-lo de Pastor Djalma de OGUM.
Levando em conta e seguindo a máxima da Igreja de Nazareth de que “o que importa são as pessoas”, é para os grupos que necessitam de apoio que o Pastor e a sua Igreja dirigem o melhor dos seus esforços. Também os ministérios e seus respectivos ministros, orientam-se por esse principio e foi assim que o Pr. Djalma empenhou a sua vida em Nazareth e hoje o faz através do Cepesc e a Igreja Evangélica Antioquia.
Outros personagens atuam na mesma lógica do servir. São eles: Pr. Eliab Barbosa, Pr. Moises Alves e Pr. Joel Zeferino. Salve os irmãos das diversas religiões que se irmanam em convicções diversas na “esperança de que o Reino de Deus” ou de Olorum é algo plenamente possível, e por esse ideal vale “gastar a vida”.
E como nos revela o texto da Igreja de Nazareth: “só assim, com resistência, luta e fé é que vale viver”. Estreitando os nossos laços, desejamos um AXÉ para o Pr. Djalma Torres e muitos anos de vitorias para a Igreja Batista Nazareth, que caminhou do Centro para Monte Serrat; para o Garcia; para Brotas e finalmente Nazaré, atual sede.
Parabéns pelos 38 anos, que Ogum lhe dê força e perseverança. Pastor Djalma, de Ogum e de todos aqueles que tem a chance da sua amizade sincera; “quem disse, que não somos nada, que não temos nada a oferecer. Repare, nossas mãos abertas, trazendo as ofertas do nosso viver…Oôô! Recebe Senhor… Louvando a quem bem merece deixando o ruim de lado…”

Jaime Sodré é doutorando em História Social, professor universitário e religioso do Candomblé


 
      

 
Numa livre interpretação, o espelho do orixá Oxum, sempre associado à vaidade e à feminilidade, também serve para que as pessoas se reconheçam, se identifiquem e elevem seu amor próprio e sua autoestima. E quem diria que uma freira franciscana faria desse espelho sua vida?
Foto: Arquivo pessoal
Irmã Telma usa a dança para trabalhar a autoestima de crianças e adolescentes da periferia de SP
Deus escreve certo por linhas tortas, diz um ditado cristão. Às vezes, porém, essas linhas são tão tortuosas quanto o gingado dos corpos que executam algumas danças de origem africana. E é com vibração que a irmã Telma Maria Coelho Barbosa conta o quanto suas aulas de dança e os desfiles que organiza têm ajudado crianças da periferia de São Paulo e de cortiços na região central da cidade a se sentirem mais belas, mais ricas culturalmente, mais felizes. Para irmã Telma, “essa é uma forma de Deus operar em suas vidas, tornar esses meninos e meninas mais fortes para enfrentarem, com dignidade, todas as adversidades, que não são poucas.”
Maranhense, dançarina e professora de danças populares brasileiras, como o Tambor de Crioula, típico de seu estado natal, irmã Telma atua nos Centros Franciscanos de Acolhimento (CFA’s) do Jardim São Luís, na zona sul da capital paulista. “Nossas aulas e oficinas culturais são ministradas nesses espaços de ensino não formal, que funcionam no contraturno escolar das crianças e adolescentes, em situação de vulnerabilidade”, explica a freira que também é massagista, especializada em massoterapia, capoeirista e percussionista. O mesmo trabalho com crianças ela também executa no bairro da Liberdade, onde existe um grande número de moradores de cortiços.
Militante de carteirinha do Movimento Negro, irmã Telma coordena o Grupo de Religiosos Negros (as) e Indígenas (Greni), de São Paulo, e também é integrante da Coordenação dos Agentes de Pastorais Negras (APN’s), do Estado de São Paulo, além de fazer parte da diretoria da Educafro onde, há mais de 20 anos, trabalha com o Frei David, na inclusão de afro-brasileiros em universidades e no combate às desigualdades raciais.
Foto: Arquivo pessoal
“Todo o meu trabalho tanto dentro da Congregação quanto fora sempre foi e será com o recorte racial, falando de cultura negra”, diz irmã Telma. As imagens comprovam sua afirmação
Foto: Arquivo pessoal
Negra, mulher, religiosa
“Quando alguém afirma que esse tipo de atividade à qual me dedico, desde muito nova, pode ser conflituosa com minha vida religiosa, eu sempre respondo que não nasci freira. Essa é minha vocação e opção de vida. Nasci mulher e negra. A causa feminina, porém, tem muito mais respaldo da mídia e de instituições, mas a de nossa origem étnica é sempre subestimada. Por isso eu a priorizo. E sei que assim agrado a Deus e cumpro a missão que a mim ele destinou. Todo o meu trabalho tanto dentro da Congregação quanto fora sempre foi e será com o recorte racial, falando de cultura negra.” Diante dessa afirmação da freira, não causa estranheza vê-la com suas roupas coloridas e adereços, ora dançando, ora tocando atabaque ou jogando capoeira, geralmente em função de liderança e promovendo eventos, como os do Projeto Beleza Negra, que ela criou. “Nosso grupo Conexão Dançar África Brasil, por exemplo, resulta da luta pela afirmação de homens e mulheres, orgulhosos de nossa cultura e de nossos ancestrais. Somos sujeitos de direito, comprometidos com uma causa comum”, garante.
Hoje, um grande sonho dessa freira é obter um espaço em que possa acomodar e expandir seu Acervo Afro, composto por tecidos dos mais variados, utilizados em amarrações de roupas de inspiração africana, indumentárias originárias da África, bonecas negras, instrumentos de percussão, além de fotografias, DVDs que documentam trabalhos realizados e outros que são utilizados nas aulas e oficinas.
Foto: Arquivo pessoal
Foto: Arquivo pessoal
A vida religiosa não impede irmã Telma de utilizar a arte em seus trabalhos
Foto: Arquivo pessoal
Que mulher é essa?
A história de Telma Maria começa de uma maneira tão inusitada quanto ela: grávida, a quebradeira de coco babaçu, Nila viajava na cangalha sobre o lombo de um jumento, vinda do interior, em direção à capital maranhense de São Luís. Na cidade de Vitória do Mearim, a menina nasce. Firmino, o pai, é lavrador e arranja um trabalho por ali, numa roça. Um tempo depois vão para São Lourenço, no sertão e depois seguem para São Luís, onde ele vai trabalhar de pedreiro. Anos depois, seguem para o Rio de Janeiro, Brasília e Tucuruí, no Pará, onde ajuda a construir a barragem de uma hidrelétrica. Das seis crianças de Nila, só quatro meninas sobrevivem e, mais tarde, uma delas também morre. “Mamãe também já se foi. Hoje tenho apenas duas irmãs, uma das quais cuida de meu pai, com 82 anos, que anda muito doente”, comenta.
Confessa que era a mais moleca de todas as filhas do casal. “Eu vivia empoleirada nos galhos mais altos de um ingazeiro. Ali, sonhava mais alto ainda. Queria conquistar o mundo. Criada com leite de cabra e de babaçu, apesar de pequenina, sempre fui muito forte. Com oito anos, conheci uma freira que trabalhava com crianças e decidi que eu queria ser como ela. Mamãe era contra. Dizia que negra em convento vai direto para a cozinha, feito escrava. Mas, em 1971 ela morreu e eu entrei para a Congregação das Irmãs Franciscanas de Ingolstadt”, conta Irmã Telma.
Essa ordem religiosa nasceu na Alemanha, há 774 anos. Depois de realizar os primeiros estudos em Londrina, Telma fez os votos de pobreza, obediência e castidade. Realizou seu trabalho de apostolado em vários pontos do Brasil. “Mas o que eu queria mesmo era trabalhar com as crianças. Por isso hoje me sinto realizada.” Além de ensinar danças de origem africana, ela também toca atabaque, agogô, afoxé, pandeiro, xequerê e panderola de bumba meu boi na bateria do Akomabu, um bloco afro do Maranhão, cujo nome quer dizer a luta não deve morrer.
Com suas lentes de contato verdes, irmã Telma confessa: “Sou muito vaidosa. Gosto de meu cabelo de mulher negra e ora o deixo black, ora trançado, algumas vezes com fitas e miçangas, gosto de deixá-los ao estilo abanjá. Já usei dreads, turbantes e amarrações com tecidos. Somos feitos à imagem e semelhança de Deus e, se não nos amamos, não O amamos também. E é só me amando que conseguirei estimular as crianças a se amarem.” Ela garante que a vaidade e suas atividades não ferem nenhum de seus votos religiosos e que mantém sua fé inabalável. Uma fé que ela jamais dissociará de sua negritude, esse espelho no qual quer ver todas as crianças refletidas.
“JÁ USEI DREADS, TURBANTES E AMARRAÇÕES COM TECIDOS. SOMOS FEITOS À IMAGEM E SEMELHANÇA DE DEUS E, SE NÃO NOS AMAMOS, NÃO O AMAMOS TAMBÉM. E É SÓ ME AMANDO QUE CONSEGUIREI ESTIMULAR AS CRIANÇAS A SE AMAREM”

 
Vencedora do programa The Voice Brasil, da Rede Globo, cantora mostra suas raízes e desponta como uma notável celebridade negra
Dona de uma das vozes mais marcantes da atualidade e com um carisma ímpar, Ellen Oléria se tornou fenômeno desde que entrou para a primeira edição do programa The Voice Brasil, exibido pela Globo no final de 2012. Mas se engana quem acha que a carreira desta jovem brasiliense começou no programa. Seu talento para a música vem desde criança, na busca do ritmo entre bater tampa de panela e brincar com a sonoridade de copos com água. Em 2009, quando lançou seu primeiro projeto autoral, já era apontada como o maior expoente do cenário musical de Brasília. Hoje, se divide entre gravação do novo CD, entrevistas e shows, sem deixar que a fama lhe tire a humildade e a perseverança de uma verdadeira artista.
Mulher, negra e homossexual, Ellen é merecedora da atenção que tem recebido dos mais diversos veículos de comunicação. Quem já teve a oportunidade de assistir a uma de suas apresentações dela sabe que, dos vários talentos da cantora, sua presença de palco se mostra como uma das marcas mais genuínas. O olhar penetrante e a voz envolvente são somente a porta de entrada para um universo que, muitas vezes, parece não caber dentro de uma única pessoa. Não restaram dúvidas sobre a validade de sua vitória mais do que merecida, afinal, foi a escolha do público, com 39% dos mais de 10 milhões de votos computados. A vitória garantiu um contrato com a Universal Music, um prêmio de 500 mil reais em dinheiro e uma apresentação no réveillon de Copacabana, onde esteve no palco ao lado da Claudia Leitte.
Ellen faz questão de revelar-se como sua própria referência de beleza e atitude. Em uma das mais emocionantes apresentações do The Voice Brasil, ela já chegou à telinha mostrando a que veio, e foi uma das poucas candidatas a ter a aprovação dos quatro jurados do programa em sua primeira audição. Mas não é apenas sua voz que surpreende. Desde muito pequena se mostrava uma ótima instrumentista também. Aos 16 anos já tinha aprendido a tocar violão, bateria, baixo, cavaco e clarinete, embora admita que o último instrumento seja o único que não domina muito. Essa negra de sorriso largo tem o irmão como grande mestre de alguns instrumentos, embora seja autodidata e não negue a influência da igreja em sua formação musical, já que frequentava uma Igreja Batista onde chegava antes dos ensaios da banda só para tocar poder tocar bateria, set de percussão, baixo, violão, e qualquer instrumento que visse pela frente.
Influências é o que não faltaram para a cantora. Sua música é considerada uma mistura de samba, afoxé, jazz e hip hop, tudo com muito equilíbrio e sobriedade. Entre os ídolos sempre citados, tem no repertório nomes como Gilberto Gil, Alceu Valença (que interpretou uma de suas apresentações finais no The Voice), Carlinhos Brown (seu “tutor” no programa) e Racionais MC’s, além de divas do samba, como Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus e Leci Brandão. E o resultado deste caldeirão musical é visto (e ouvido) em seu primeiro CD, Peça, lançado em 2009, onde a brasiliense se mostra uma intérprete versátil, com letras e melodias envolventes, com flexibilidade e maturidade na voz, sem perder a sensibilidade feminina.
Ellen Oléria é formada pela Universidade de Brasília em Educação Artística, com habilitação em Artes Cênicas. “Sou uma professora de teatro que nunca exerceu a profissão.” Atua desde o ano 2000 no circuito cultural como cantora, compositora e instrumentista, ou seja, fazendo de tudo um pouco. No currículo exibe os prêmios do Festival Universitário FINCA (Festival Interno de Música Candanga), da Universidade de Brasília (UnB), e o fato de ser a maior vencedora da história do Festival de Música Tom Jobim do Sesc/ DF. Enfim, Ellen já vivia uma vida profissional empolgante, reconhecida regionalmente, mas que depois do The Voice Brasil ganhou o país. Agora conta com a assessoria de sua namorada, Poliana Martins, que também cuida dos figurinos da artista.
Em entrevista exclusiva, sua primeira para a revista RAÇA BRASIL, Ellen Oléria foi espontânea em demonstrar sua força como mulher negra. Ela falou sobre as dificuldades de ser artista no país, sua relação com o movimento negro e contou detalhes de sua participação no programa, que emocionou o Brasil inteiro.
 
Como você começou na carreira musical?
Eu acho que a música tem algo de especial, uma das melhores memórias que temos. Socialmente, eu acho que ativamos a nossa memória, a nossa lembrança, a partir da música e da sonoridade das coisas. Às vezes, escutamos uma canção e transcendemos para outro mundo. A música sempre esteve presente, e sempre fez parte do meu mundo, seja a sonoridade da sanfona do meu pai, as aventuras com os meus irmãos na cozinha – enfim, achando as sonoridades que nos interessassem. Cansei de bater tampa de panela, fazer instrumentos com arroz, copos, esse tipo de coisa, ou seja, experimentar, que é até comum com as crianças, mas é fazer música também.
Então é uma questão de berço?
A música sempre foi um ponto de encontro para nós. Tinha o rádio da minha mãe, que ficava sempre em cima da geladeira, a sanfona do meu pai que ele tocava todo domingo de manhã. A gente ouvia de tudo. Minha mãe tinha um gosto musical muito peculiar, inclusive, com estas histórias que a gente escutava no rádio da Dona Eva. Tudo foi muito importante musical e artisticamente para mim. Mas a minha primeira aproximação com um instrumento profissional foi bem minha, na verdade: meu irmão tinha um violão que não me deixava tocá-lo. Então, quando ele saía, eu arrombava o quarto dele, pulava a janela, pegava o violão e tocava, sozinha mesmo, e quando estava perto da hora de ele chegar, pulava de volta a janela e colocava o violão no mesmo jeitinho na cama.
Sua carreira profissional começou aos 16 anos?
Sim, digo sempre isso porque eu entendo que ser profissional é necessariamente ter o apoio de uma instituição e ter o cotidiano dedicado exclusivamente para esta função. Isso faz de mim profissional. Falo que comecei com 17 porque foi o ano em que tirei a carteira da Ordem dos Músicos do Brasil, mas acredito que antes disso eu já estava atuando profissionalmente.
Você se formou na UnB, uma das primeiras universidades brasileiras a aderir ao sistema de cotas. Para quem vivenciou o dia a dia da instituição, o que você acha das cotas?
Houve muitas conversas sobre as cotas, encontrei muitos professores que expressavam na sala de aula os seus “achismos”. A gente ouve falar em cotas raciais há muito tempo para garantir o acesso a pessoas brancas, principalmente no sentido imigratório para o Brasil na década de 30, quando pessoas vinham de outros países para “embranquecer” o país. Se isso foi tão utilizado para nos violar no passado, por que não podemos utilizar este recurso para reparar danos causados durante todos estes séculos? As cotas, a meu ver, são um grande sucesso, não só para a comunidade negra, mas para toda a população brasileira. Ele não é um sistema perfeito – na verdade nenhum sistema é, porque é feito por pessoas, e as pessoas não são perfeitas – mas eu acredito que é possível que a sociedade observe que nós não temos nada a perder com a implementação deste sistema. Muito pelo contrário, nós estamos um pouco mais perto de vivenciar uma expectativa que vem sendo construída há muitas décadas, de que nós somos o futuro. Acho que podemos ter uma história muito bonita, com a equidade que temos sonhado há tanto tempo.
Você se considera parte do movimento negro?
Acredito que, diante de uma luta histórica dos movimentos negros, nós já alcançamos vários direitos, inclusive a possibilidade de eu não apanhar de graça da polícia quando estiver caminhando com o meu pandeiro. Quem é [negro] sabe que isso já aconteceu com muita frequência. Hoje podemos pisar nos palcos e ter o direito de ser tratados iguais a qualquer outra pessoa. Uma vez ouvi a Leci Brandão dizer que a Jovelina Pérola Negra foi pouco convidada para fazer TV porque a pele dela era muito escura para fazer televisão. Eu tenho os traços marcados por estas histórias, que são tão minhas quanto as histórias que eu ouvia a minha mãe contar, de casas onde ela não conseguia trabalhar porque havia pessoas mais claras do que ela para exercer a função.
Você já tinha uma carreira antes do programa da Globo. O que te motivou a entrar no The Voice Brasil?
Existe algo muito cruel em termos de arte, que tem a ver com esta dificuldade em garantir estabilidade financeira. Mesmo com status, uma carreira consolidada, ou mesmo com pessoas acompanhando o seu trabalho, isso tudo nem sempre garante pão na mesa. Nós que estamos nesta área sabemos disso. É algo que se repete: há grandes nomes da história da arte brasileira que estão passando dificuldades de várias ordens. A instabilidade do meu ofício me fez passar por problemas por tanto tempo, que cheguei a um momento crucial: todos os dias eu pensava em não fazer mais música, não seguir mais a profissão de cantora, até para poder atender às minhas demandas. Eu também quero atender aos meus desejos, quero comprar aquele vestido, fazer uma viagem com a minha família, como todo mundo. Estas inconstâncias de poder passar três meses sem trabalho mexem muito com a nossa autoestima.
Foi aí que você se inscreveu para o programa?
Eu decidi participar porque acredito que há algo de muito imponente nesta caixinha de ondas eletromagnéticas que é a TV. O Brasil é um país com uma cultura televisiva muito intensa, apesar de eu não ser uma telespectadora. Para você ter uma ideia, eu nem tenho o aparelho em casa, não me interesso. Mas sei da importância deste veículo. Toda a geração da década de 80 foi criada por ela, por isso acho que já assisti televisão o suficiente para o resto da minha vida. Mas eu acredito que a TV chega com uma força muito grande nos lares brasileiros, não só aqui como em todo o mundo, e achei que seria inteligente acessar este meio para fazer minha música, chegar até estas pessoas com a minha arte. Tantas coisas chegam pela TV – o cinema, por exemplo, foi popularizado entre as classes mais pobres pelo mundo com a televisão – e acho lindo isso: levar tanto para as casas ricas quanto para as casas pobres, brancas ou negras, hétero ou homossexuais, enfim, levar para todos uma força cultural. Eu acreditei no crivo de cada olhar das pessoas, pois independente de sua origem, todo mundo tem condições de ver e ouvir algo e ter critérios para avaliar. Assim me coloquei à prova para o povo brasileiro. Eu não imaginava que teria tamanha expressão, que iria encontrar as pessoas pelas ruas emocionadas ao me encontrar, porque, ao me ver, elas voltaram a ter a mesma sensação que tiveram ao me ouvir. São pessoas que ficam arrepiadas a até mesmo chegam às lágrimas. Esta é a força da televisão, e eu acho maravilhoso que a música chegue a essas pessoas por meio dela.
E foi esta emoção da sua música que conquistou o público?
Eu tenho convicção de que sim. Existe uma certeza no meu coração desde que comecei a musicar, e é um ensinamento que eu trago desde quando eu me apresentava com os amigos e amigas na Igreja Batista, onde toquei até os meus 15 anos. Eu sei que a música que faço é muito maior do que eu. Ela é muito mais esperta, mais rápida, e chega às pessoas numa velocidade brutal. Eu sou só um canal para a minha música. Provavelmente se não fosse eu musicando, seria outra. O corpo é finito, mas a música não. Ela continua. É essa magia que extrapola fronteiras quando estamos em um grupo, e não importa de onde eu vim ou para onde eu vou, se essa música diz o que ela vem dizer, isso basta.
A temática afro sempre esteve presente nas suas apresentações. Qual a importância de trazer as suas raízes para o público em geral?
A força afro não está só nas músicas que toquei ou nas poesias que embalam as minhas apresentações. Eu acredito que a influência negra está presente em grande parte da produção musical do Ocidente. Não só nas músicas que interpretei no programa, mas em toda a música pop ou contemporânea. Esse encontro étnico que temos ao longo dos anos marca demais a produção universal de música. E essa presença no meu trabalho é indissociável, porque é de um lugar afro que ela emana. Eu poderia cantar uma música erudita, mas essa ancestralidade são os fundamentos das canções que faço. Esse é o grande barato das músicas ocidentais, que promovem este encontro de tantas tradições. Não posso negar que a minha música em especial tem muito de raízes: essa sou eu.
“AS COTAS, A MEU VER, SÃO UM GRANDE SUCESSO, NÃO SÓ PARA A COMUNIDADE NEGRA, MAS PARA TODA A POPULAÇÃO BRASILEIRA. ELE NÃO É UM SISTEMA PERFEITO – NA VERDADE NENHUM SISTEMA É, PORQUE É FEITO POR PESSOAS, E AS PESSOAS NÃO SÃO PERFEITAS – MAS EU ACREDITO QUE É POSSÍVEL QUE A SOCIEDADE OBSERVE QUE NÓS NÃO TEMOS NADA A PERDER COM A IMPLEMENTAÇÃO DESTE SISTEMA. MUITO PELO CONTRÁRIO, ESTAMOS UM POUCO MAIS PERTO DE VIVENCIAR UMA EXPECTATIVA QUE VEM SENDO CONSTRUÍDA HÁ MUITAS DÉCADAS, DE QUE NÓS SOMOS O FUTURO”
Sua mãe acompanhou suas apresentações no The Voice Brasil. Como você vê a presença dela na sua vida profissional e pessoal?
Minha mãe é minha heroína; é minha referência no encontro com as pessoas. Ela me deu vários presentes como este, o contato especial com o próximo. Ela me apoiou sempre, apesar de esta profissão não ter sido uma razão de tranquilidade para ela, afinal eu às vezes tinha que sair de madrugada para tocar e ela não dormia enquanto eu não chegasse em casa. Mas eu fico feliz que a música tenha dado a ela não apenas aflições, mas também muitas alegrias. Minha mãe é minha conselheira, é a pessoa para quem eu vivo, minha filósofa, que guarda todos os meus passos e me faz seguir adiante.
Durante o programa, houve uma reação positiva sobre a Globo ter colocado a Poliana como sua namorada na legenda. Você acha que este detalhe pode ser considerado uma conquista, mesmo que pequena?
Eu não acho pequena. Acredito que é uma conquista muito grande quando vemos a força da repercussão na sequência do fato. Acho que se falou muito disso por ser importante, e é muito legal ser referência de uma coisa boa como esta. Esta é uma categoria tão sofrida: ainda temos tantas coisas a fazer, tantas lutas, e ainda há tantas violências contra a nossa escolha. A questão da legenda foi algo muito bonito, pois ilumina quem demonstra seus afetos como eu. É importante que possamos celebrar essas conquistas juntos, como um grupo, já que infelizmente os nossos ancestrais não puderam viver isso.
Qual foi o impacto de vencer o The Voice Brasil e como você vem lidando com esta fama?
A vida tem sido muito generosa comigo. Fui muito abençoada e, quando acabou o programa, os dias seguintes serviram para que eu visse que existem pessoas que gostam muito de mim, que talvez haja forças celestes que estão do meu lado e que me deram forças para que eu fizesse algo bom para a minha gente, para o meu lugar. Espero poder multiplicar as coisas boas que tenho recebido e que tenha a oportunidade de produzir e compartilhar com as pessoas que acreditaram e se comoveram com a minha música. Eu sou muito grata por tudo isso.
O que é ser mulher negra?
Ser mulher é ser realizada. É viver um sonho dentro de um sonho.
Quais seriam as suas principais influências? Você se encontrou com alguns deles depois de vencer o The Voice Brasil?
Sim, tenho a felicidade de compartilhar a minha alegria e cantar com pessoas como a banda Preto Tu, com quem tive a honra de cantar em Salvador. No The Voice Brasil, tive o Carlinhos Brown ao meu lado, conheci a Maria Gadú. Como eu disse antes, a música está muito ligada a tudo o que vemos no dia a dia, e eu me sinto privilegiada por encontrar pessoas que estão embalando a memória de tanta gente, há tantas gerações, inclusive a minha. Quando eu penso sobre qualquer coisa, estas pessoas estão ali, do meu lado, no meu imaginário, e é muito bom ter este sentimento materializado.
“EU SEI QUE A MÚSICA QUE FAÇO É MUITO MAIOR DO QUE EU. ELA É MUITO MAIS ESPERTA, MAIS RÁPIDA, E CHEGA ÀS PESSOAS NUMA VELOCIDADE BRUTAL. EU SOU SÓ UM CANAL PARA A MINHA MÚSICA”
Quais são os próximos desafios para Ellen Oléria?
Os desafios nunca acabam, não é? Agora é produzir um álbum, trazendo esta alegria que o povo brasileiro me deu. Quero devolver para as pessoas a fé que elas depositaram em mim. Será para mim um disco histórico, porque será a primeira vez que estarei assistida por uma grande instituição como a Universal Music Brasil, e vamos fazer um disco bem bonito. Este é o desafio.
O que o público deve esperar deste novo CD?
Este CD deve sair em junho deste ano, e o público pode me esperar inteira nele. O disco tem a produção de Alexandre ___, que tem se tornado um grande amigo desde o programa e está cuidando com muito carinho deste trabalho que está chegando. O que eu posso garantir é que estarei inteira neste disco.
Você já sofreu preconceito?
Eu não quero trazer à minha memória, que é para não dar espaço para isso. O que posso te dizer é que a minha presença no planeta incomoda muita gente, e de fato isso não me interessa muito. Como diria a Rita Lee: “Quem não está do meu lado, que saia da minha frente”. Eu continuo caminhando, a despeito destes encontros ou comentários, eu quero ao meu lado quem for produtivo, e o que não for eu quero deixar para trás.
E a Ellen Oléria fora dos palcos? O que você faz quando não está cantando?
Gosto muito de namorar, mas faço isso enquanto trabalho também. Confesso que o trabalho não tem me abandonado muito. Mas eu gosto de cozinhar, ver filmes, principalmente desenhos animados.
Como vencedora, que mensagem você gostaria de deixar para as mulheres que votaram em você e que estão lendo esta matéria?
Eu cheguei a dizer quando venci o programa que eu não sou alguém a ser alcançado, eu sou o padrão da mulher brasileira. Depois eu fiquei pensando e descobri que realmente sinto isso, que eu sou o meu próprio padrão. Eu queria dizer que me colocaram nesta posição e mentiram sobre muitas coisas sobre mim, mas eu continuo com o meu próprio discurso. Fico feliz por ter tantas mãos segurando nas minhas, me trazendo sempre muito carinho. Quero dizer para todas: vamos que vamos, que o show não pode parar. Muito axé. Saravá!
 
 
Iemanja

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