quarta-feira, 31 de julho de 2013

Resumo

Resumo

Desde aproximadamente os anos 1960, desmoronou-se boa parte do mundo
que as ciências humanas haviam construído. Mais precisamente, houve um
profundo “descentramento” (decentering) desse mundo na academia – isto
é, uma mudança dos paradigmas que guiam a pesquisa. Quero refletir sobre
essa mudança, enfocando particularmente os estudos africanistas. Pretendo
abordar meu tema com ênfase na disciplina de história e a partir de três
perspectivas. Primeiro, delineio o perfil geral da mudança de paradigmas
para propor uma atualização urgente na estrutura curricular das ciências
sociais brasileiras. Segundo, discuto trajetórias intelectuais e mudanças
institucionais dentro da academia do “centro” como exemplo cabal do
descentramento – ou subversão – causado pela “vivência com a periferia”:
isto é, pela intensa experiência de pesquisa de campo de estudiosos do
Atlântico-norte fora de sua região, e a progressiva incorporação de
intelectuais dos países do “Sul” como seus interlocutores. Terceiro, enfoco
os estudos afro-brasileiros para sugerir a necessidade de um deslocamento
semelhante, operado a partir das “margens” da sociedade brasileira.
Palavras-chave: História da África; Ciências Humanas; Epistemologia; Estudos
Afro-brasileiros.

Desde aproximadamente os anos 1960 – a década da aceleração do
processo de independência das colônias europeias, da derrubada da
segregação racial nos Estados Unidos, dos movimentos estudantis de 1968
 desmoronou-se boa parte do mundo que as ciências humanas haviam
construído. Mais precisamente, houve um profundo “descentramento”
(decentering) desse mundo na academia – isto é, uma mudança dos
paradigmas que guiam a pesquisa. A experiência europeia/norteamericana deixou de ser o padrão para se pensar a história do restante da
humanidade. A relação entre “centro” e “periferia” no mundo moderno
foi radicalmente re-definida a partir de uma perspectiva dialética,
enfatizando a profunda interação e interpenetração entre esses dois
“extremos”. Paralelamente, no imaginário dos pesquisadores, os
“subalternos” (os “de baixo” na pirâmide social) ganharam voz,
pensamento estratégico e participação ativa no processo histórico.
Quero refletir sobre essa mudança, enfocando particularmente os
estudos africanistas. A África, afinal, esteve na encruzilhada dos caminhos
da expansão europeia, desde a época do tráfico de escravos para a América



A África na ordem internacional do século XXI: mudanças epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória?
 
África in the 21th century's international order: epidermic changes or essays of decisory autonomy?
 
 
 
RESUMO
 
 
No artigo se propõem novos conceitos acerca do lugar da África na ordem internacional que se desenha no início do século XXI. O avanço gradual do processo de democratização dos Estados nacionais, a performance econômica satisfatória associado ao crescimento econômico generalizado no continente, bem como certa elevação de confiança política das elites, vêm contribuindo para o fortalecimento da capacidade decisória dos governantes no seio das opções disponíveis no sistema internacional que se desenha. O caso de Moçambique é utilizado para justificar o argumento central do artigo.
 
África, política regional Africana, Moçambique.
 
ABSTRACT
 
This article sets out to study new concepts about the Africa's role in the international order, which has been designed in the beginning of the 21st century. The national states' gradual expansion of democratization process, the satisfactory economic performance associated with the continent's generalized economic development, as well as the growth of political trust by the elites, are factors that have been contributing to strengthen the ruling body's decision skill in to the international system that are being designed. Mozambique's case justifies this article's discussion.
 
Key words: Africa, African regional politics, Mozambique.
 
 
 
O objetivo do presente artigo é o de suscitar novos conceitos acerca do lugar da África na ordem internacional que se desenha no início do século XXI. Merecerão destaque as atuais formas de inserção internacional dos seus Estados nacionais, criadas de dentro para fora das soberanias africanas, bem como o envolvimento crescente de antigos e novos atores globais que participam, de forma interessada e crescente, na gestação do futuro daquele continente.
A hipótese aqui examinada é a de que o continente africano assiste transição positiva para um novo patamar de inserção internacional no início do novo século. Três conceitos centrais alimentam o exame dessa hipótese: a) o avanço gradual dos processos de democratização dos regimes políticos e a contenção dos conflitos armados; b) o crescimento econômico associado à performances macroeconômicas satisfatórias e alicerçadas na responsabilidade fiscal e preocupação social; e c) a elevação da autoconfiança das elites por meio de novas formas de renascimentos culturais e políticos.
Os argumentos centrais estão organizados em torno de quatro unidades. Na primeira apresentam-se argumentos que comprovam a elevação do status na África no mundo e o paradoxo da baixa apreciação, no Brasil, do novo lugar da África na sociedade internacional. Em segundo lugar, abordam-se alguns dos desafios das cinco décadas da formação dos Estados independentes da África. Em terceiro lugar, tratam-se algumas visões depreciativas e positivas disponíveis na literatura universal acerca do papel da África no sistema internacional contemporâneo bem como os movimentos estratégicos de grandes Estados globais no coração do continente nos dias atuais. Em quarto avalia-se, no contexto dos países de língua portuguesa na África, a elevação gradual de status de Moçambique, caso emblemático da elevação da autonomia decisória na ordem internacional em construção no início do século XXI. À guisa de conclusão, avaliam-se iniciativas de soberania política na África que não são tributárias de criações políticas e econômicas de fora para dentro.
 
A África na ordem internacional do início do século XXI: conceitos enviesados e necessidade de construção de novos parâmetros de análise
 
A ordem internacional que se desenha no século XXI faz do mosaico africano uma necessidade umbilical da sua configuração. Há uma fronteira mundial cuja linha demarcatória está no triângulo africano de mais de trinta milhões de quilômetros quadrados.
A África subsaariana, ou África negra, considerada a região mais pobre do mundo, cresce entre 5% e 6% ao ano desde 2003. Adaptações macroeconômicas à globalização moveram as economias de todo o continente para equilíbrios na área da gestão dos negócios dos Estados. Alvissareiras são a inflações médias, contidas na faixa de 6% desde 2003, e as exportações que avançam, em 2006 e 2007, na proporção de 43% a 45% do PIB. Reformas econômicas liberalizantes e redução de vulnerabilidades externas geradas por saldos exportadores e crescente atração de investimentos externos diretos são fatos, entre outros, celebrados como de sinalização de sustentabilidade econômica pelos africanos e que ainda surpreendem aos elaboradores dos relatórios das agências internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.
Há razões para otimismo em todas as regiões da África. O ambiente anima a confiança dos mercados. Na média da África negra, os investimentos internos equivalem a 19,4% do PIB, percentual muito próximo do Brasil, embora considerado baixo para a sustentabilidade do crescimento econômico. O vetor da elevação do crescimento interno é visível desde 2002 e tende a crescer nos próximos anos, mesmo ante a crise financeira que se desenha no contexto do capitalismo norte-americano. A África vem sendo escolhida como parte das prioridades para novas áreas e carteiras de empréstimos do Banco Mundial.
Há preocupações, no entanto, no campo social, que variam de país a país, por meio de políticas de construção de metas de redução da pobreza. Há também a atenção dos setores financeiros em alguns países africanos com a eventualidade de um novo ciclo de endividamento interno advindo principalmente das políticas financeiras engendradas pela política chinesa na África, que tem interesse estratégico no continente para compra de petróleo, commodities agrícolas e exploração de recursos minerais.
Mas há, sobretudo, o sentimento de que nos últimos sete anos, justamente os primeiros do novo século, a África vem superando o drama histórico das guerras intestinas e internacionais.5 O número de países africanos com conflitos armados internos caiu de 13 para 5, nos últimos seis anos, apesar da dramaticidade do caso do Darfur.Os conflitos foram a mais importante causa imediata da pobreza no continente. A redução dramática dos mesmos faz pensar que os recursos, quase da ordem de US$ 300 bilhões queimados nos conflitos entre 1990 e 2005, podem agora ser dirigidos às políticas de redução da pobreza e da miséria.
Há, ao mesmo tempo, uma onda democratizante dos regimes políticos em várias partes da África. Mesmo os critérios duvidosos da construção de variáveis para a taxonomia de democracia no mundo, propostos pela Freedom House, demonstram esse avanço inconteste. Um processo tardio, mas relevante, de consolidação de instituições e governos na África com bases menos autocráticas e com algum apelo às noções da democracia é fato relevante para a elevação da confiança internacional.
No Brasil, a reflexão acerca dos desafios africanos é modesta e tardia. A interpretação dominante acerca do futuro do continente é plasmada por olhares enviesados que se repetem com regularidade gritante. Meios de comunicação insistem em apresentar uma África indolente e ditatorial, onde o Brasil quase nada tem a fazer.Empresários e empresas nacionais, mesmo acumulando ganhos comerciais no momento, ainda duvidam das possibilidades do agir em terreno africano de forma mais duradoura, a impulsionar a logística que a África requer e que o Brasil pode bem aproveitar. As escolas continuam afônicas de histórias da África.As tragédias e genocídios ganham a cor espetacular das telas televisivas enquanto as experiências de estabilização e crescimento econômico assim como as iniciativas políticas de redução da pobreza e das doenças endêmicas na África são silenciadas.
Quando aparece a África no Brasil, chega enviesada e embalada por caleidoscópio de discursos intermediários que apenas envergam a vara para a percepção da África envolta nas questões de discriminação racial e dos preconceitos domésticos brasileiros. O prisma que vincula a redução da reflexão da África contemporânea à dimensão da afro-brasilidade é interessante pois permite comunicar as Áfricas que existem dentro do Brasil com a diáspora e os africanos do outro lado do Atlântico Sul, porém é ângulo incompleto ao esforço de entendimento dos grandes desafios da inserção africana na ordem internacional do século XXI.
O insuficiente acompanhamento dos debates africanos contemporâneos no Brasil conjuga-se à ausência de significativos centros estratégicos voltados para o acompanhamento da nova corrida para a África. Daí a preocupação legítima de setores responsáveis no governo e na sociedade: há ainda um reumatismo crônico como força impeditiva do avançar o país na velocidade dos demais corredores na direção do continente africano. Sem conhecimento estratégico não há tática que permita avançar de forma duradoura e consistente um programa de ação do Brasil na África nas próximas décadas.
Em síntese, a percepção da inteligência africana acerca do seu próprio futuro é matéria oculta, água turva, no seio do conhecimento brasileiro hegemônico disseminado nas universidades, empresas, agências de governo e meios de comunicação, senão mesmo nas veias da ação pragmática do Brasil para a África. A baixa apreciação da África por parte da mídia e de agentes sociais e econômicos brasileiros, no entanto, não corresponde à ação e à apreciação do Executivo, mais elevada. Essa é uma área correta do governo Lula, que evoluiu nessa matéria em relação às dificuldades do governo Cardoso.
 
Cinco décadas de independência africana e desafios dos Estados novos: renascença e nova partilha internacional
 
A África caminha mais célere e autoconfiante nos dias que nos cercam que o que se colhe nas manchetes dos jornais. Caminhará o continente, ao longo dos próximos anos, nas trilhas do cinqüentenário da sua liberdade política. São Estados novos, ainda infantes, quando comparados com as velhas democracias européias ou os Estados latino-americanos de 200 anos. Em todo caso, o ano de 2007 trouxer valor simbólico: é o meio século da independência da Costa do Ouro (Gana de hoje), a primeira da África Negra, liderada por N'Krumah em 1957. O ano de 2008 inaugura uma seqüência de atos e reflexões acerca do lugar da África no mundo, fora e dentro do continente. As mensagens não de algum otimismo cauteloso.
Iniciativas políticas e culturais convocam a comunidade internacional para o compartilhar do renascimento africano, embora não mais aquele das nascentes independências em fins dos anos 1950 e início da década de 1960, povoada por rancores anti-coloniais, romantismos revolucionários e jargões de libertadores ingênuos. Nem é o renascimento pós-apartheid apenas, alardeado pelo governo de Pretória, embora seu próprio renascimento nacional esteja na moldura mais ampla do que aqui chamo de renascimento africano. Também não se está falando do renascimento político dos anos 1960 e 1970, que já ficou para trás, nos debates recorrentes das elites africanas entre as idéias de Senghor e Cabral.
A África não quer remoer o passado à cata de culpados. Quer caminhar para frente. O renascimento do início do século XXI é mais altruísta, evidencia uma outra forma de renascer, mais eficaz que a anterior, mais pragmática, a fazer referência a outras formas obliteradas de africanidade pelos discursos políticos engendrados pelas ideologias da Guerra Fria e do nacionalismo teórico e político da primeira geração das independências. Há um outro renascimento, novos consensos, com outras referências culturais, políticas e sociais, com resultantes a serem alcançadas no mundo que vem aí.
Ícones da profundidade de campo histórico da África (para utilizar as imagens de Abdel Malek e C. A. Diop) vêm sendo trazidos para a discussão do futuro do continente. É este, a título de exemplo, o caso de Tombuctu, cidade antiqüíssima nas margens do Níger, que se revitaliza nos dias de hoje não como memória do classicismo africano, mas como lugar do presente da cultura africana e imaginação de um devir político soberano e altruísta do continente.A outra é o renascimento que bebe da historiografia de Heinrich Barth, revista na obra recente de Mamadou Diawarq, Paulo Fernando de Moraes Farias e Gerd Spittler. Ou mesmo da recuperação das obras de Ibn Haldun ou, alguns séculos depois, de Edward Blyden.
Animados por um conjunto de atividades acadêmicas, políticas e culturais, os africanos relembram, em várias partes do continente, o soleil des indépendances, mas em especial passam em revista os descaminhos de várias experiências de importação de modelos, como as reformas estruturais conduzidas pela "genialidade liberal", os planos de reestruturação conduzidos pelos economistas do Ocidente ou mesmo a cópia em papel carbono do socialismo real e do modelo do partido único de matriz stalinista. Passarão em revista os 53 Estados nacionais da África, de forma crítica, nos próximos anos, a evolução mais recente das cinco décadas de autonomia jurídica, ainda que na política apenas de forma relativa, pois necessitam preparar suas casas para uma inserção mais altaneira na ordem internacional do século XXI.
O renascimento africano coloca aquele continente na berlinda da cena internacional contemporânea. Afinal, está-se a falar de quase um quarto da superfície do planeta (22,5% das terras do globo), com 30 milhões de quilômetros quadrados, com 10% da população do mundo, mas que deverá dobrar até 2050.
Senhora de recursos minerais globais, a África é fonte de cobiça por cerca de 66% do diamante do mundo, 58% do ouro, 45% do cobalto, 17% do manganês, 15% da bauxita, 15% do zinco e 10% a 15% do petróleo. São aproximadamente 30 os recursos minerais do mundo que a África guarda em seu subsolo. Mas só participa de 2% do comércio mundial e possui apenas 1% da produção industrial global. Há, portanto, um enorme desafio de elevação desses itens.
Em outras palavras: cultura, poder e economia começam a caminhar juntas e de forma mais organizada para os africanos que estão na África do século XXI, mais do que para aqueles outros que, em nome de uma África onde jamais pisaram ou estudaram, querem guardar, fora da África, nos seus países, uma África imaginária ou politizada por razões de demandas internas e sociais de ascenso social. A África não se interessa tanto por isso. Os africanos não querem que seu continente do século XXI seja lido como fonte da imaginação política dos outros, mesmo de seus descendentes nas Américas, apenas como um lugar sagrado do passado, de dívidas históricas espalhadas por todo o mundo e do diálogo global dos afro-descendentes informado da noção da diáspora. Embora tais temas sejam relevantes, não são as prioridades do momento vivido pelas sociedades africanas no novo século.
Em meados da primeira década do novo século, as amarras da velha colonização cedem lugar às iniciativas das lideranças africanas. Há uma percepção que se generaliza de crescente responsabilidade das elites domésticas com o encaminhar do futuro. O discurso da vitimização da história continental é substituído por raciocínios mais pragmáticos. A idéia do aproveitamento de oportunidades inéditas abertas pela quadra histórica da primeira década do século XXI permeia o novo discurso interno da inteligência africana.
Por outro lado, seria inocência intelectual e irresponsabilidade política imaginar que o destino africano pertence, de forma exclusiva, à esfera da autonomia decisória de seus líderes nacionais. Há um novo mapa africano, não aquele desenhado pelos colonizadores de antes, mas não menos inquietante ante a força incontestável de seus desenhistas. Desfilam em Abuja, Adis Abeba. Lagos, Luanda, Cartum, Pretória, Cairo ou Maputo autoridades chinesas, norte-americanas, brasileiras, agentes de empresas multinacionais e organizações não-governamentais.
Atores internacionais de toda ordem, cada vez menos as organizações não-governamentais humanitárias dos países ricos e cada vez mais atores econômicos e estratégicos globais, querem dividir, com os africanos, balanços e projeções que já se preparam, no seio dos institutos africanos e mundiais, acerca da última fronteira territorial da internacionalização econômica do capitalismo.
Há, portanto, uma relação biunívoca, mas também dialética, entre o interno e o externo. Se por um lado é desejável que a África supere o drama histórico do colonialismo e do atraso (lugar do discurso do renascimento africano das primeiras décadas das independências), há, por outro, a preocupação de que novos arranjos entre as elites locais e internacionais não tragam a autonomia decisória nem o desenvolvimento sustentável ao continente (lócus do discurso do novo renascimento africano). É do nigeriano Claude Ake, em seu ensaioDemocracy and Development in África a seguinte preocupação:
The problem in not so much that development has failed, as that it was never really on the agenda in the first place.
Há o temor, por trás da internacionalização crescente do continente africano, de que o "caráter exógeno" do Estado africano pós-colonial, como gosta de definir Carlos Lopes, o sociólogo onusiano nascido na África de língua portuguesa – se perpetue com novas máscaras. A preocupação legítima do ilustre africano vai ao ponto focal: como diminuir a distância mental e real, produzida pelos próprios governantes de grande parte dos Estados africanos modernos, entre os abismos sociais e políticos que separam ricos de pobres, elite de povo, na África das próximas décadas do século XXI?
Nota-se desde já até mesmo reações de agentes econômicos, políticos e intelectuais africanos contra a lógica de sua reinternacionalização, sob o manto de uma nova partilha africana, um novo Congresso de Berlim em curso, mantendo as formas de dominação e estratificação social e concentração de poder dos Estados pós-coloniais na África. Esse sobressalto veio à tona recentemente por meio de várias vozes importantes da inteligência africana como o filósofo senegalês Yoro Fall. Também chamou a atenção Ali Mazrui, um dos mais prestigiados politólogos africanos contemporâneos, que a África está à busca de sua própria Doutrina Monroe, da África para os africanos.
Para Mazrui, até a redução de conflitos armados internos ou que envolvem relações internacionais na África não podem ser resolvidos por soluções puramente exógenas, necessitam soluções domésticas e dirigidas por novo consenso entre povo e elites locais. Provoca-nos abertamente o velho mestre da arte política africana:
The pursuit of Africa's peace by African themselves, however, is not just an extension of international peecekeeping, but rather is a process of Pax Africana
 
A África entre teleologia, deontologia e escatologia. A saída para um lugar alvissareiro no seio da ordem internacional do século XXI
Á África é uma das regiões do mundo que, historicamente, mais esteve próxima às tentações de interpretações apaixonadas acerca das relações entre passado e futuro. Escrutinada sob as óticas da teleologia, da deontologia e da escatologia, às vezes simultaneamente, a África segue sendo um lugar para o teste da razão crítica contra o monumento de preconceitos que foram erigidos pela fraca ciência e pela opinião desinformada.
O nível teleológico de análise, ao animar a avaliação das ações por meio de suas conseqüências, condenou o agir da África a um eterno desterro e o passado africano à mera preparação da obra civilizatória inconclusa do Ocidente. A conseqüência dessa lógica no seio da historiografia e da sociologia nacionalista africana foi óbvia: todos os males de hoje adviriam, então, de um pecado original, o do colonialismo e suas conseqüências. É esse o raciocínio que amarra a reconstrução do passado a um presente infértil, plasmado por "afro-pessimismo" que vigorou até pouco e que ainda persegue mentes cultas e especializadas nos assuntos africanos em vários centros de estudos estratégicos no mundo, mesmo no Brasil de poucos estudos.
O nível deontológico, ao julgar ações conforme regras formais em função da distinção entre o bem e o mal, encapsulou a África no plano do mal, reduzindo-a à incapacidade histórica das elites e do povo de constituir lá sociedades burguesas civilizadas e integradas aos fluxos da economia política global. Há uma velha marcha hegeliana, amplamente cantada pela literatura especializada, que empurrou a África para o campo dos povos sem história, de um "passado inenarrável", o qual Farias recentemente reviu.A maldição da África, para os céticos, seria a impossibilidade de narrar o passado e, portanto, construir o futuro, reduzindo-a à eterna infância. Até o Dr. Watson, prêmio Nobel de medicina do início dos anos 60 com o tema do DNA, em pleno início século XXI, na terceira semana do mês de outubro de 2007, acaba de pronunciar, para depois desdizer, que "Africans are not so intelligent such as Westerns".
A sucessão de ilogicidades, de ausência de razão crítica, herdeiras elas do discurso hegeliano, empurrou bastante a ciência e a opinião pública, nas últimas décadas, ao discurso da inviabilidade da África. É o plano escatológico, plasmado por imagens, autores e meios da corrente afro-pessimista dos anos 1990.
Teses vêm sendo utilizadas, nessas bases esquemáticas, e em várias partes do mundo, na lógica da "marginalidade" africana e de sua desimportância para o quadro geral da ação externa dos Estados e das relações internacionais do século XXI.
Ledo engano. A África jamais foi marginal, no passado nem no presente. O conceito da marginalidade africana é insustentável, teórica e empiricamente. Não são apenas os africanos que se insurgem contra essa escatologia, mas a massa de literatura atualizada acerca dos desafios africanos no xadrez da política internacional. É Jean-François Bayart, como também depois Ian Taylor e Paul Williams, no importantíssimo livro intitulado Africa in Iternational Politics: Extermal Involvment on the Continent, quem abre a crítica à escatologia anti-africana nos temas da política internacional para o início do século XXI:
More than ever, the discourse of on Africa's marginality is a non sense discourse.
O mundo está atento à África como sempre estiveram as grandes potências e as ex-metrópoles. O peso da África na Guerra Fria não se circunscreveu a ser margem do sistema internacional. São os dois autores anteriores que nos lembram:
Africa has never existed apart from world politics but has been unavoidably entangled in the ebb and flow of events and changing configurations of power.  In practice, Africa cannot enjoy 'a relationship" with world politics because Africa is in no sense extraneous to the world. The continent has in fact been dialectically linked, both shaping and being shaped by international processes and structures.
O mundo está, portanto, acompanhando com a máxima atenção a reinserção africana na política internacional.Records e outlooks vêm sendo lançados com profecias otimistas acerca das escolhas políticas e do novo perfil de desenvolvimento social que a África requer. Vê-se essa tendência desde as avaliações produzidos pelos Royal African Society do Reino Unido.
O mais recente desses documentos é o interessantíssimo trabalho, com fins estratégicos, organizado pelos colegas professores Samantha Power (da Universidade de Harvard) e Anthony Lake (da Georgetown University), em fins de 2006, ladeando o ex-secretário de Estado assistente para África dos Estados Unidos, Chester Crocker. Lançado em 2007 pelo afamado Council of Foreign Relations, dos Estados Unidos, nota-se perfeitamente a retomada da prioridade africana na política externa norte-americana.
More than Humanitarianism, o título da estratégia norte-americana fala por si, ao lançar as bases conceituais para a ação dos norte-americanos para a África nas próximas décadas. Pragmatismo mais do que humanitarismo, disputa por recursos minerais, ampliação da diversificação no campo da energia, cooperação com os governos democráticos e ocupação de espaços na luta contra o terrorismo são as linhas gerais de trabalho para os próximos 20 anos dos Estadus Unidos na África. Querem disputar a partilha com as ex-metrópoles, particularmente Inglaterra e França, mas sobretudo querem enfrentar a potência do dragão oriental.
Nenhuma polaridade estatal foi tão hábil na elaboração estratégica para a África quanto a China do primeiro ministro Li Peng, já nos fins da década de 1980 e início dos anos 90. O marco é o dia 4 de junho de 1989, o drama da Praça da Paz Celestial e o isolamento imposto pelo Ocidente ao regime político de Pequim. Começava a conexão África-China, que tem todas as condições de ser a mais duradoura sobre todos os demais intentos de qualquer unidade estatal, mesmo dos Estados Unidos, de estabelecer bases de cooperação ativa como o renascimento africano.
A estratégia chinesa é explícita: a) exportação para a África do modelo chinês de tratamento dos temas da agenda internacional, apresentando-se como uma representante natural dos países em desenvolvimento; b) exportação de bens industriais e armas e importação de produtos primários; c) exploração de todas as fontes possíveis e necessárias de recursos minerais, estratégicos e de energia que garanta a sustentabilidade do crescimento econômico chinês. O método tático para a consecução dos objetivos é múltiplo: varia dos investimentos, empréstimos e doações à cooperação técnica e tecnológica, além de exercício de cooptação política das elites africanas. O ambiente político da cooperação abraça o econômico como parte da grande engenharia estratégica que foi elaborada, empiricamente, na base do isolamento político do regime chinês depois do evento de 4 de junho de 1989 e a solidariedade conferida por grande maioria dos governos na África, depois de serem cortejados com recursos chineses.
Foi o primeiro-ministro Li Peng quem coordenou toda a operação de aproximação com uma das poucas regiões do mundo que não se movera contra o massacre de jovens na China: os governos africanos. Para exemplificar, a China oferecia, em 1988, apenas US$ 60 milhões de ajuda direta a 30 países da África, mas em 1990, depois do apoio dos governos africanos ao regime de Pequim, receberam tais países a soma de US$ 374, para chegar aos volumes bilionários dos chineses hoje na África. Embora predominantemente econômica, a presença chinesa na África origina-se da política e seguirá tendo uma forte conotação política e estratégica. Vejam as palavras de Li Peng, em 12 de março de 1990, na chegada a Pequim de imensa delegação de chefes de Estados africanos:
A nova ordem política internacional significa que todos os países são iguais, e devem respeitar os outros com relação a suas diferenças no sistema político e na ideologia. Eles (os países capitalistas do centro e as democracias ocidentais) não podem interferir os assuntos domésticos dos países em desenvolvimento, especialmente avançar poder político em nome de "direitos humanos, liberdade e democracia".
Livros lançados recentemente dão conta da preocupação da grande parceira comercial e política da África na Europa, que é a França, além de ser a maior investidora individual no conjunto da economia africana. Tanto há preocupações na área comercial quanto na área da cooperação direta da China com regimes políticos na África que desrespeitam o capítulo dos direitos humanos. Daniela Kroslak estudou essa matéria de forma mais detalhada, com ênfase ao tema do envolvimento militar da França naquele continente.
O fato objetivo é que, desde 1990, renovando-se em 2000 com a criação do Fórum de Cooperação África-China, no qual 80 ministros de Estado africanos foram levados de Pequim à área industrial de Guandong em avião para verem o colosso do crescimento industrial chinês, passando pela segunda edição, em novembro de 2006, do Fórum de Cooperação, além da terceira visita do presidente Hu Jintao à África em fevereiro de 2007, a China desembarcou na África de forma estrutural. É difícil andar em qualquer rua comercial de qualquer país africano que não esteja inundada por produtos chineses. Não há capital na África sem uma obra pública imponente feita com recursos chineses. Não há infra-estrutura importante de aeroportos e estradas que não tenha uma mão chinesa.
Como à época do desenvolvimentismo, fase na qual o Brasil praticava uma diplomacia cooperativa e não-confrontacionista, a China dos últimos anos buscou a África sem truculência, violência ou presunção de superioridade, traços da diplomacia européia e norte-americana. O Brasil mesmo está tentando voltar, na nova quadra histórica do início do século XXI, como demonstram as prioridades da diplomacia de Amorim.
Em síntese, há uma África em crescente internacionalização e nada marginal. Ela está no centro de uma concorrência fortíssima de interesses e interessados de todas partes do globo. Se os investimentos externos diretos crescem de forma consistente, oriundos tanto das grandes empresas financeiras e produtivas, é também verdade que esses investimentos estão dirigidos por certa lógica de ocupação territorial e estratégica da África por grandes potências, instituições multilaterais e influentes grupos econômicos globais ancorados em bases estatais. Nesse aspecto, o futuro estratégico do continente africano está sendo traçado de fora para dentro.
 
O experimento de modernização, democratização e inserção internacional na África de língua oficial portuguesa: o caso de Moçambique
 
Os países de língua portuguesa na África são casos interessantes para se notar o quanto o argumento central deste artigo se comprova no campo experimental. Angola cresce seu PIB anual em torno de quase 20%, um dos maiores do mundo. Cabo Verde assiste a sua internacionalização crescente, mesmo nas condições difíceis do arquipélago. São Tomé e Príncipe normalizam sua vida política e abre as portas para os investimentos na sua plataforma petrolífera. A Guiné Bissau, apesar dos problemas que passou na última década da história, assiste sopro de esperança de normalização política.
Moçambique, mais até que os acima citados, é caso modelar de inserção internacional altaneira na ordem internacional do início do século XXI. O país foi vistoriado de forma alvissareira nos relatórios de agências internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial em fins de 2006. Apontam tais documentos potencialidades econômicas únicas na quadra histórica atual do continente africano. Rejubilam-se investidores externos e nacionais pelo bom desempenho político e pelo equilíbrio macroeconômico daquela nação africana. As razões para o otimismo derivam de fatos como a democratização em ritmo mais forte que muitos dos Estados africanos, reformas econômicas liberalizantes que criaram confiança nos mercados, crescimento do PIB na ordem de 7% nos últimos anos, inflação domada, diminuição da vulnerabilidade externa, reservas internacionais consideradas satisfatórias para uma economia modesta e acesso a financiamentos internacionais.
Mesmo quando não há comércio bilateral expressivo, Moçambique inclui-se crescentemente em périplos recentes de vários chefes de Estado, interessados em projeção internacional na África. A visita a Maputo, entre os dias 7 e 8 de fevereiro de 2007, por cerca de 24 horas, do presidente chinês Hu Jintao, é fato político com impacto na corrida já não mais tão secreta em favor de uma nova partilha africana.
Mas o que há com Moçambique, pobre economia africana, tão desigual na distribuição da renda e tão modesta estrategicamente, que a faz atrair tanta atenção? Que buscam os grandes naquele Estado de língua portuguesa, incrustado na porção índica da África, de costas para o Atlântico, diferentemente de todos os demais países que compõem, naquele continente e nas Américas, o legado complexo da expansão ultramar portuguesa?
Moçambique não é apenas um lugar da lusofonia do outro lado da África ou um dos Estados de recente independência formal, em processo tardio de consolidação de instituições e da democracia. Moçambique tampouco é apenas um país dependente economicamente e desdenhado pelas elites de Pretória, embora saibamos que muitos sul-africanos ainda consideram o vizinho apenas sua décima província.
Os vetores de poder agora são outros, bastante mais poderosos e pragmáticos. Envolta na sedução crescente da China, e também da Índia, ávidas por recursos minerais, estratégicos, energéticos, mas também de portos, de produtos agrícolas e mesmo de ocupação territorial via deslocamento de populações e até mesmo pelo turismo, Moçambique está na berlinda.
Maputo é uma das portas, com entrada facilitada na geografia moçambicana, ao "corredor turístico", como falou o presidente da China em sua recente visita ao país. Moçambique se insere, portanto, na ocupação de uma das últimas fronteiras do capitalismo mundial: o continente africano. Essa partilha não requererá um novo Congresso de Berlim. O mundo pós-Guerra Fria é mais sutil, mas não menos pragmático. Os chineses não vieram apenas para o controle de recursos energéticos, minerais e estratégicos na África. Vieram ampliar poder de barganha no cenário internacional.
Elites econômicas e políticas moçambicanas não iriam assistir, de binóculos, a novos arranjos da entente Angola-África do Sul sem ajustar os graus dos seus interesses na região. Foram à busca do seu lugar e da afirmação de seus interesses. Estão gradualmente pavimentando seu próprio caminho. E a Copa do Mundo de Futebol de 2010 na África do Sul provê à imaginação lacaniana das elites de Maputo a idéia de um renascimento moçambicano nos novos tempos da África.
O balanço da evolução democrática em Moçambique é satisfatório. Não variou em relação à grande maioria dos países africanos na sua dimensão pluriétnica, na preservação do Estado territorial herdado da colonização bem como na baixa densidade de participação da sociedade civil nas decisões e no acompanhamento das políticas encaminhadas pelo aparelho de Estado. De fracas a inconclusas ou deformadas, de todas as formas já foram metaforizadas as débeis democracias africanas. Mas o joio pode ser separado do trigo, como hoje reconhecem as próprias agências internacionais.
A tênue democracia moçambicana é diferente no que se refere à capacidade de chegar a uma estabilidade relativamente engenhosa. Soube adaptar a vida política nacional aos processos de internacionalização econômica que passaram a operar no continente na última década e no início do novo século sem perda de tempo. Moçambique buscou demonstrar ao mundo externo que é uma democracia moderna em formação e que combate os excessos gerados pela corrupção e pelo patrimonialismo.
A favor das elites moçambicanas – mas naturalmente estimuladas pela indução do governo de Pretoria – está o fato de que lograram reconstruir o Estado, sem fragmentações fratricidas, sem pressão das diferenças étnicas, sem separatismos regionais e banindo sublevações. O espraiar de uma certa idéia de Estado vem facilitando contatos internacionais e inibindo desestabilizações internas, o que já é muito para o histórico da formação do Estado no continente africano. É esse Estado moçambicano que vem permitindo o crescimento econômico continuado, o incremento dos investimentos estrangeiros e das exportações, além de certa constância nos níveis de ajuda internacional. Ganhou o status de "democracia eleitoral" e de país "parcialmente livre" nas classificações da Freedom House de 2005.
Essas avaliações, contudo, não inibem a articulação do Estado moçambicano com os novos agentes econômicos internacionais e com os investimentos diversos, de fontes múltiplas. O raciocínio que alimentou o processo decisório é claro: se a pobreza e a Aids demandam programas específicos de financiamento, eles foram criados de alguma maneira, com ou sem a cooperação internacional. Mas se os investimentos produtivos na economia em expansão podem ser feitos, devem ser feitos com os capitais de onde puderem vir. Visões pragmáticas dominaram essa dimensão do processo decisório do país.
Moçambique passou a ser apresentado, em alguns fóruns econômicos, como espécie de "tigre" africano, por lembrar o caso da Ásia nas décadas de 1980 e 1990. Em 1998 foi considerada a economia que mais crescia na África. O país ultrapassou, nos últimos anos, todas as metas estabelecidas pelas instituições financeiras internacionais. Chama a atenção, todavia, o padrão das relações econômicas externas moçambicanas. Segue o modelo da relação colonial, de exportador de produtos primários e importador de bens com alto valor agregado. Esse é um ponto de preocupação para setores sociais e políticos do país, embora nem sempre de sua elite governante.
Sem margem de dúvida, a situação moçambicana segue a das economias mais dinâmicas da África. A diversificação de parceiros internacionais, na raiz da modernização econômica, faz de Moçambique caso no qual investidores do Sul e do Norte praticamente dividem, meio a meio, o espaço africano. Ap se avaliarem os mais importantes investidores externos em Moçambique, é também elucidativo o movimento global empreendido pelo país e pelos capitais produtivos e financeiros internacionais. Há uma preferência, a manter certa capacidade operativa do Estado, de joint-ventures de empresas moçambicanas públicas com sul-africanas e européias, além das chinesas que estão aportando a Maputo e que ainda não puderam ser mensuradas inteiramente pelos dados relativos aos tempos mais recentes.
Registre-se o fato de que Moçambique está também submetido ao fenômeno da "reverse dependence", no qual as instituições internacionais necessitam mostrar resultados em um país africano para mostrar ao mundo. Com pouco para barganhar, Moçambique tem o trunfo de que tais agências, investidores e doadores necessitam de certa eficiência e eficácia nas políticas por eles sugeridas. Resultado diverso tornaria difícil a sobrevivência desses doadores e investidores em seus próprios países.
 
À guisa de conclusão: a África para os africanos
 
Mas não se traça o futuro da África apenas de fora para dentro. Os africanos estão reivindicando e construindo autonomia decisória. Buscam soluções nacionais para seus desafios na área social e da cidadania. O controle do Estado e sua orientação para o crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável são a boa novidade no continente.
Tornaram-se os líderes africanos refratários à noção de "fim do Estado" e de "governança global" vendidas para a África como solução mágica nos tempos de encantamento liberal generalizado, embora em menor grau do que se passou na América Latina nos anos 1990. Querem falar de transição de modelo para uma forma mais logística de construção do desenvolvimento, com democracia e mais inclusão social. Passaram a operar em novas bases conceituais no pós-Guerra Fria e ante a crise geral do internacionalismo liberal.
O encerramento do grande ciclo dos conflitos abertos e militarizados internos é exemplo dessa vontade política nova de renascer e orientar as energias para projetos mais produtivos. Engajaram-se nos programas voltados para as metas do milênio e querem modificar os indicadores sociais previstos para serem alcançados em 2015. Mas o querem fazer a partir de suas realidades e possibilidades, em parceria horizontal e não mais vertical, com os velhos e novos parceiros da África.
Administrar, de dentro para fora, as ambições internacionais geradas pela "nova partilha africana" posta em marcha pelos planos estratégicos chineses e norte-americanos, mas também em alguma medida do Brasil também, exigirá dos africanos uma noção de domesticação, pela via do fortalecimento do Estado democrático e da responsabilidade fiscal e macroeconômica mais ampla, das tendência malévolas que caminham juntas com a ambição política dos Estados fortes que se organizaram para a nova corrida para a África.
Há, nesse sentido, um ambiente mais positivo. A mais importante iniciativa nesse sentido, emblemática da autoconfiança que se espraia no seio da inteligência política do continente, foi o lançamento da Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano (Nepad), em 2001. Ao reivindicarem a capacidade de construção do seu futuro, as lideranças africanas estão atraindo para si a responsabilidade de superação do grau marginal de inserção ao qual o continente foi submetido na década de 1990. Buscar um lugar mais altivo, menos subsidiário na globalização assimétrica atual, é o argumento central do contorno do desenho estratégico que a Nepad significa.
A Nepad não foi feita de fora para dentro da África. Nem é onírico como o Plano de Lagos de 1980 ou limitado como o Programa Africano de Recuperação Econômica de 1986. A Nepad tem caráter inédito, abrangente, social e cidadão, como o Plano Marshall foi para a reedificação da Europa depois da guerra. A metáfora é útil pois Nepad significa "African leadership and African ownership".
O texto de lançamento fala por si, ao situar a plataforma conceitual no qual a Nepad poderá florescer:
A África pós-colonial herdou Estados fracos e economia disfuncionais que foram agravados ainda por uma liderança fraca, pela corrupção e má-governança em muitos países. Esses dois fatores, conjugados às divisões causadas pela Guerra Fria, minaram o desenvolvimento de governos responsáveis em todo o continente.
O reconhecimento de que o Estado tem um papel central no desempenho do crescimento, no desenvolvimento sustentável e na implantação de programas de redução de pobreza, anotados pelos chefes de Estado na África de 2001 é ainda um sonho. Mas a dimensão utópica das novas vontades expressadas pelos africanos move a vida deles para uma nova agenda política da qual a África não poderá mais se afastar.
O Brasil, que se lança novamente para a África, por meio dos movimentos dinâmicos de sua política exterior e de uma pauta comercial de produtos diversificados e que evolui percentualmente para já representar cerca de 6% das trocas internacionais do Brasil, tem possibilidades importantes de ocupar a brecha africana. Aproveitar a dinâmica do renascimento africano e da autoconfiança que emerge lá para propor diálogo de interesses mútuos e valores abrangentes para a nova geografia política internacional é agenda convidativa para a fronteira atlântica do Brasil. Otimismo cauteloso deve guiar o Brasil pois há sempre chance, aqui como na África, de reverter o ciclo de retração e desespero em favor do avanço cidadão e da esperança de uma África muito melhor ao final do século XXI.
 

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