quarta-feira, 17 de julho de 2013

Religião e identidade cultural negra: católicos,afrobrasileiros e neopentecostais

 
 

 

 
 
Religião e identidade cultural negra: católicos,
Afro brasileiro e neopentecostais
 
 
Estamos realizando há alguns anos uma
Pesquisa cujo objetivo é analisar os papeis que
As religiões afras brasileiras vêm desempenhando
No processo de construção das identidades
Culturais de origem negra no Brasil contemporâneo1.
Considerando, entretanto, que nas últimas
Décadas muitas denominações religiosas,
Além do afro brasileiro, têm se mobilizado em
Torno dos símbolos da herança negra no Brasil,
Gerando disputas e controvérsias, este artigo
Pretendem indicar de forma abreviada algumas
Possíveis linhas interpretativas deste processo2.
Para que possamos entender alguns aspectos
Deste processo começarei estabelecendo algumas
Definições básicas destas denominações,
Ou melhor, das articulações que estas mantêm
Entre si por aproximação ou distanciamento.
Numa definição curta, apenas para esta exposição,
As religiões afras brasileiras são basicamente
Religiões do transe, do sacrifício animal
E do contato direto com os deuses como meio
De comungar valores e estabelecer sociabilidades
Em comunidades relativamente pequenas.
Em termos dos deuses cultuados e considerando
Os dois modelos mais conhecidos destas religiões,
O candomblé e a umbanda podem
Dizer que no candomblé jeje-nagô cultuam-
-se basicamente entidades designadas pelos
Termos orixá e vodu, nomes genéricos dos
Deuses originariamente provenientes da África
Ocidental. No candomblé angola cultuam-se
As enquetes, deuses originários da África Central,
E caboclos, entidades que representam os
Espíritos da população indígena brasileira. A
Umbanda (religião que associou deuses africanos,
Santos católicos e espiritismo kardecista e
Esta difundida nacionalmente entre as camadas
Pobres (e médias da população brasileira) englobam
As entidades do candomblé e rede. ne a
Cosmologia num esquema evolucionário, como
Uma escada, com os santos e orixás ocupando
Os degraus mais altos. Estes são, por isso, tidos
Como espíritos de luz. Os caboclos e os pretos-
-velhos (espíritos dos africanos escravizados)
São considerados espíritos intermediários. Exus
E pomba gira é tida como o lado esquerdo
Ou “espíritos das trevas” e estão situados no degrau
Mais baixo desta escala, pois estão associados
Ao demônio pela influência do catolicismo.
Já o catolicismo cultua basicamente a santíssima
Trindade (formada pelasfiguras do
Deus-pai, (deus-filho e espírito santo) e muitos
Intermediários como Maria (mãe do deus-
Filho santo e anjos. O neopentecostalismo
(religião cristã que cresceu vertiginosamente
No Brasil das últimas três décadas entre as camadas
(Pobres) se coloca entre estes sistemas e
Os articula como se fosse uma espécie de porta
Que permite ou não a passagem de um sistema
Para outro. Certamente que o principal objetivo
Do neo-pentecostalismo é eliminar todos os
Intermediários dos outros sistemas pela promoção
Da guerra contra o mal entendida como a
Guerra de Jesus contra Exu que é visto como se
Fosse à manifestação do demônio. Brevemente
Podemos dizer que o candomblé pensa a si próprio
Como uma religião de origem africana na
Quais os orixás ocupam uma posição central e a
Umbanda como uma religião afra brasileira na
Quais caboclos e preto-velho são as principais
Entidades. Em termos gráficos, poderíamos
Descrever o continuum conforme acima.
O diálogo entre o terreiro e os espaços públicos
De culto na cidade historicamente garantiram
A reprodução do sistema religioso para
Além dos muros do terreiro. Exemplificarei
Com um conjunto de relações nesse nível. As
Praias do litoral brasileiro são espaços de culto
Fora dos terreiros. Nelas, Iemanjá, orixá feminino
Associado ao mar é homenageado. Estas
Homenagens são feitas geralmente nos dias 2
De fevereiro e oito de dezembro pela relação que
Tem com Nossa Senhora dos Navegantes e
Nossa Senhora da Conceição, respectivamente.
Nestas datas, são ofertados presentes a Iemanjá
Em grandes festivais. Mas, especialmente na
Noite de ano novo, milhares de pessoas, adeptas
Ou não das religiões afro brasileiras, enchem as
Praias brasileiras e oferecerem presentes a Iemanjá.
Esta prática, desvinculada do sistema
Propriamente religioso dos terreiros, mostra a
Apropriação de símbolos dos rituais afra brasileiros
Pela população, que percebe nela símbolos
Compartilháveis.
A presença da religiosidade afra brasileira em
Praias, rios e lagos já se tornaram tão legítima
Que em muitas existem monumentos a deuses
Associados a estes espaços. Estes espaços têm se
Tornado simultaneamente pontos de culto e de
Turismo. Há alguns anos, a prefeitura da cidade
De Salvador (Bahia) revitalizou a área do Dique
Do Tororó e colocou ali estátuas dos orixás
Numa homenagem ao local que é utilizado desde
O século XIX pelos adeptos do candomblé
Para louvar as divindades das águas.
Este fato foi duramente criticado pelos
Evangélicos que questionaram se um estado laico
Poderia patrocinar símbolos religiosos com
Dinheiro público. A resposta dada pelo prefeito
Foi de que os orixás não eram mais apenas símbolos
Religiosos, mas parte da herança cultural
Negra de Salvador e da cultura brasileira em geral
 Atualmente podemos encontrar no mapa
Turístico da cidade, ao lado dos endereços de
Museus e igrejas barrocas, a localização de muitos
Terreiros. Curioso é que os terreiros são indicados
No mapa com o oxê, machado bi facial
Usado por Xangô, o orixá da justiça.
De que forma então estas esferas (religião,
(Estado e movimentos políticos) tem se articulado
Em torno desta disputa pelos símbolos da
Herança negro-africana no Brasil? Gostaria de
Comentar algumas destas articulações.
A primeira é aquela ocorrida entre Igreja
Católica e a população negra e/ou movimento
Negro. A realização em 1980 do primeiro
Seminário de Teologia Negra e o Centenário
Da Abolição em 1988 impulsionaram o surgimento
De diversas associações católicas voltadas
Ao negro sendo a mais importante a Pastoral
Afro brasileiro com o apoio da Conferência Na-
Candomblé Jeje-nagô
Candomblé
Angola
Neopentecostalismo
Orixá/ Vodu
Erê
Inquice
Erê
Caboclo Preto-Velho
Exu
Pomba gira
Encosto
Demônio
Deus-Pai
Deus-Filho (Jesus)
Espírito Santo
Mãe de Deus (Maria)
Santos
(direita) “mais luz” Umbanda “menos luz” (esquerda) Catolicismo
Quimbanda
 
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Um grupo
De padres negros desde então tem investido
Num diálogo intenso com a tradição religiosa
Afrobrasileira5.
No diálogo entre catolicismo e candomblé,
A pastoral afra brasileira procura trazer elementos
Religiosos africanos para o interior da liturgia
Católica, num processo autodenominado
“inculturação da liturgia”, cuja apoteose é a
“missa afro”.
A reinterpretação da imagem de Nossa Senhora
Da Aparecida, a padroeira negra do Brasil,
Vista como “Senhora Quilombola” é um
Bom exemplo. A imagem desta santa é uma
Estátua de Nossa Senhora da Conceição que teria
Sido achada num rio com a cabeça separada
Do corpo, primeiro acharam o corpo e depois
A cabeça. As partes foram coladas e um rosário
Foi colocado em torno do pescoço para disfarçar
A emenda, aproximando-a da imagem de
Nossa Senhora do Rosário, devoção das populações
Negras. Temos aqui duas representações:
Conceição, padroeira do império português e
Rosário, padroeira do povo oprimido, como a
População negra. Como se a cabeça da santa
Fossem o Estado e seu corpo, os Povos. Desde então,
e pelo fato de a cor da estátua ter “entretecido”,
Resultado da ação da água do rio, a
Imagem tem sido vista por uma parte da população
Como a padroeira negra do Brasil, conforme
Vê-se nas imagens abaixo6.
E mais recentemente sob a influência da
Pastoral afro brasileira, Nossa Senhora Aparecida
Tem sido louvada nas missas como “Mãe
“Quilombola”.
Assim, a idéia de mãe negra bondosa e pacífica
, aos poucos perde espaço para o surgimento
De imagens de resistência como a de Anastácia,
Uma escrava de olhos azuis que teria resistido
Ao assedio sexual de seu senhor, portanto que
Recusou-se à condição de mãe de uma “mestiçagem
“Forçada”. Sua estátua é apenas uma cabeça
De uma mulher amordaçada. Curiosamente,
Parece indicar o caminho inverso em relação à
Cabeça colada de Nossa Senhora da Aparecida.
Nas missas afros tem sido invocada como santa,
Uma nova versão de mãe negra. Seu martírio
Associa-se ao de Jesus, pois ambos portam os
Instrumentos de tortura: a coroa de espinhos
Na cabeça ou a mordaça e o colar do cativeiro7.
Na liturgia “incultura da” da “missa afro” vemos
Também que as tradições afras e católicas
Dialogam. Na comunhão, além do pão e vinho
Que representam o corpo e sangue de Cristo, os
Alimentos tradicionalmente oferecidos aos orixás
São colocados ao pé do altar, há atabaques
E dança dos. eis, e até a presença de sacerdotes
Das religiões afras brasileiras.
No campo das políticas identitárias e reivindicatórias,
Grandes transformações ocorreram
Nos anos de 1970 e 1980. As ações do MNU,
Movimento Negro Unificado foi importante
No sentido de dar continuidade as discussões
Políticas como o “quilombismo”, uma
Ideologia de resistência em torno da imagem
Do líder escravo Zumbi dos Palmares. Com a
Celebração dos 100 anos da Abolição da escravidão,
A reivindicação do movimento negro
Tornou-se cada vez mais articulada. A marcha
Organizada por este movimento no centro do
Rio Janeiro, por exemplo, reivindicou maior
Participação do Estado brasileiro no combate
Ao racismo. A mudança da data da celebração
Da emancipação negra de 13 de maio para o
Dia 20 de novembro, dia tido como o da morte
De Zumbi, foi um ato simbólico e político
Importante.
Com a redemocratização do país iniciou-se
Uma nova etapa na relação da sociedade civil
Com o Estado. A Constituição de 1988 atendeu
Parcialmente as reivindicações do movimento
Negro. Foi criada a Fundação Palmares
(sob o Ministério da Cultura) e estabeleceu-se
O conceito de quilombos como o de áreas habitadas
Por remanescentes de afro descendentes
Com direito à posse da terra. Nos anos de
1990 o conceito de quilombo estendeu-se para
A área urbana abrangendo inclusive terreiros de
Candomblé. No governo de Fernando Henrique
Cardoso houve o reconhecimento oficial
Da existência do racismo no Brasil e no governo
Seguinte, de Luis Inácio Lula da Silva, foi
Criado um conjunto de ações direcionado para
A população negra como a SEPPIR (Secretaria
De Políticas de Promoção (da Igualdade Racial),
Ações afirmativas e a Lei 10.639 que tornou
Obrigatório o ensino de História e Cultura
Africana e Afra brasileira nas escolas.
Nesse período, o patrimônio cultural de
Origem africana começou a ser valorizado nas
Políticas públicas governamentais incluindo
O tombamento de terreiros8. Em São Paulo,
A demolição de um terreiro localizado numa
Área em que seria construído um acesso a uma
avenida foi interrompida com o pedido da
Comunidade para o tombamento do terreiro.
Menciono estes fatos, ainda que rapidamente,
Apenas para indicar que a relação entre etnicidade,
Política identitária e religião começam a se
Mostrar muito mais complexa com o fortalecimento
De agências negras e a pressão da sociedade
Civil sobre a questão da desigualdade
Étnica. Entretanto, religião, cor e ação política
Nem sempre caminham lado a lado.
Darei um exemplo. No Censo de 2000
Realizado pelo IBGE vemos que a maioria da
População brasileira continua se declarando
Católica, enquanto apenas 0,3 % se dizem
Pertencentes às religiões afras brasileiras. Certamente
Muitos adeptos destas religiões têm
Dupla pertença. Em relação à cor, as religiões
Afro-brasileiras continuam sendo as religiões
Que reúnem mais adeptos negros e pardos em
Termos proporcionais (48%). E entre estas religiões,
O candomblé continua sendo a religião
Mais negra do Brasil em termos proporcionais.
Mas em termos absolutos a maioria da população
Negra brasileira professa oficialmente a
Fé católica, o que explica a forca das tradições
Afro-brasileiras associadas ao catolicismo e as estratégias
Políticas de sacerdotes negros reivindicando
Uma identidade cristã e afra brasileira,
Enquanto lutam por igualdade racial. Ou seja,
Ver Nossa Senhora da Aparecida como “Mãe
“Quilombola” ou reverenciar o poder da escrava
Anastácia é potencialmente reveladora da força
Destes símbolos para a população negra e católica
Brasileira.
Por outro lado, o crescimento das religiões
Evangélicas, sobretudo as neopentecostais,
Mostra outro tipo de desta. O recém criado
MNE – Movimento Negro Evangélico, por
Exemplo representa uma ação de pastores negros
Que inspirado no modelo norte-americano
De ação política procura negar a necessidade de
Relacionar identidade negra com as religiões
Afro-brasileiras ou as tradições populares do catolicismo.
O nome sugestivo do livro de uma
Liderança desse movimento, pastor Davi (Oliveira,
(2004) - A religião mais negra do Brasil.
Por que mais de oito milhões de negros são pentecostais?
Indica os caminhos ainda recentes
Deste movimento. Em termos absolutos
Os números realmente indicam que há mais
Evangélicos negros do que praticantes das religiões
Afro-brasileiras e as religiões evangélicas
São as que mais crescem no Brasil das últimas
Décadas. Se para Edir Macedo (1996),
Famoso pastor da Igreja Universal do Reino de
Deus é preciso expulsar o “Exu tradição” que
Faz do Brasil um “vasto terreiro”, ele próprio
Deve o sucesso de sua igreja aos exus que constantemente
São expulsos (Silva, 2007).
De qualquer maneira, parece que o Brasil
De hoje vive um dilema entre convicções religiosas
E políticas de apelo étnico. Se uma ala
Da igreja católica quer abrir as portas para os
Orixás, alguns terreiros querem se separar dela,
Conseqüência em parte do discurso “desvalorizado”
Sobre o sincretismo e a mestiçagem
Existente em certos segmentos do candomblé
Reafricanizado e do movimento negro9. Se os
Evangélicos dizem que nem orixás, santos ou
Exus fornecem caminhos para o céu ou para a
Justiça social na terra, ao menos para muitos
Adeptos estes deuses continuam a atuar em suas
Vidas como heróis ou vilões responsáveis por
Alegrias ou tristezas do dia a dia.
Em se no plano da cultura nacional, os
Valor afro brasileiros tem um papel importante
No estabelecimento de uma identidade “mestiça”
(Brasil como “país das mulatas, do carnaval,
“Samba, futebol, macumba, (feijoada e sincretismo)
Os grupos que a teriam promovido, por
Ainda se encontrarem em situação de desvantagem
Social e econômica se questionam qual
Deve ser o melhor caminho a seguir nesta encruzilhada
De valores religiosos e ações políticas.
 
Esquematizando as conclusões
 
Sem pretender esgotar o tema, mas indicando
As diretrizes que parecem permear o debate
Contemporâneo, podemos dizer que nas religiões
Afro-brasileiras o papel da etnicidade, quando
Acionado, vincula-se primordialmente aos símbolos
Da herança africana, os quais obviamente
Estão associados à população negra, preferencialmente,
E mestiça. Nesse sentido, estas religiões
Tornam-se um campo legítimo de aplicação de
Políticas públicas do Estado voltadas a estas populações
E também um potencial campo de ação
Para os grupos ou movimentos negros interessados
Em aglutinar instituições de preservação de
Patrimônios culturais de origem negro-africana.
Nesse caso, verifica-se uma articulação entre
Símbolos religiosos (vistos como “culturais”
(Ou não), o Estado e os movimentos políticos
(negros ou de aliados). Um bom exemplo é a
Polêmica envolvendo as estátuas dos orixás no
Dique do Tororó, em Salvador.
Se pensarmos o “lugar” das religiões afro-brasileiras
No neopentecostalismo, vemos que
Os símbolos religiosos ou mesmo “culturais”
São tidos como resultantes da ação demoníaca.
Neste campo, professa-se a necessidade de
Se romper com a “tradição” do Brasil como
Um “vasto terreiro”, com o “mito do candomblé”
(Macedo, 1996). Do ponto de vista das
Políticas públicas envolvendo a etnicidade, algumas
Lideranças evangélicas afirmam que há
Mais negros (em termos absolutos) nas religiões
Evangélicas do que nas afro-brasileiras. Isso
Justificaria que as políticas públicas tivessem
Como parceiras preferencialmente estas igrejas.
O “pentecostalismo como opção para os pobres,
“Negros e excluídos” (Oliveira, 2004). Nesse
Sentido vislumbra-se agora um potencial
Campo de ação para os grupos ou movimentos
Negros interessados em difundir discursos e
Ações que rompam com certos valores (morais
(E de conduta pública) presentes nas religiões
Afro-brasileiras em favor de valores éticos tidos
Como mais “rígidos”.
Por. m, se pensarmos o “lugar” das religiões
Afro-brasileiras e da etnicidade no catolicismo
Da pastoral afro-brasileira, vemos que o sincretismo
Serviu como ponte entre a experiência
Cristã e as religiões de origem africana levando
O catolicismo para o interior dos terreiros. Agora,
Trata-se de trazer o terreiro para o interior da
Igreja fazendo com que a missão evangelizadora
Passe pela troca de “experiências litúrgicas”,
Mas também pela luta pela igualdade e justiça
Étnico-social.
Ou seja, as formas pelas quais essas teologias
E práticas se relacionam com esses novos agentes
Sociais e políticos parecem induzir a posicionamentos
Inusitados sobre o que é sincretismo,
Mestiçagem, herança africana, cultura brasileira,
Participação política, justiça social etc. Um
Campo de observação bastante interessante que
Merece pesquisas que associem religião, cultura
E esfera pública sob a perspectiva destes atores
Que expressam na forma de transes – de orixás,
Espírito santo e exus – concepções sobre o que
É ou deveria ser o Brasil.

 

 

 


 

 






 
 


 

 

 


 

 
 



 
 

 



 
 

 

 

 



 
 


 

 


 
 

 
 

 
 




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