sexta-feira, 19 de julho de 2013

O primeiro mito: contra a democracia racial dos anos 1960



O primeiro mito: contra a democracia racial dos anos 1960

O projeto sobre relações raciais no Brasil, que a UNESCO patrocinou entre 1952 e 1955, galvanizou o debate em torno da situação das relações raciais no Brasil 8 . Rapidamente a discussão se polarizou em torno da existência ou não do “preconceito racial”. Isso porque Bastide e Fernandes como que não aceitavam a conclusão de Wagley, segundo a qual, no Brasil, “em todo seu imenso território semi-continental a discriminação e o preconceito raciais estão sob controle, ao contrário do que acontece em muitos outros países” (Wagley 1952: 7). Ao contrário, Bastide e Fernandes tratavam a “democracia racial” a que se referia Charles Wagley, não como algo que existisse concretamente, mas apenas como um padrão ideal de comportamento.
Bastide escreve:
‘Nós brasileiros, dizia-nos um branco, temos preconceito de não ter preconceito. E esse simples fato basta para mostrar a que ponto [o preconceito racial] está arraigado no nosso meio social’. Muitas respostas negativas [que dizem não haver preconceito racial no Brasil] explicam-se por esse preconceito de ausência de preconceito, por esta fidelidade do Brasil ao seu ideal de democracia racial” (Bastide e Fernandes (1955: 123, grifos meus)
Ou seja, Bastide e Fernandes não vêem problemas em conciliar a realidade do “preconceito de cor” ao ideal da “democracia racial”, tratando-os, respectivamente, como prática e norma sociais, as quais podem ter existências contraditórias, concomitantes e não necessariamente excludentes. Em Bastide dos anos 1950, “democracia racial” significa um ideal de igualdades de direitos, e não apenas de expressão cultural, artística e popular, constituindo-se num alargamento da noção de “democracia social e étnica” de Gilberto Freyre.
Essa reintrepretação de Bastide e Fernandes já podia ser encontrada, de fato, na prática de intelectuais negros, como Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos, que justificavam seus objetivos de desmascaramento da discriminação racial e de desrecalque da “massa negra” em termos daquele ideal. Nota-se, assim, que o debate acerca da existência ou não do preconceito racial no Brasil ainda não punha em causa o consenso sobre a “democracia racial”, mesmo que polarizasse o seu significado.
De fato, a disseminação e aceitação política da expressão “democracia racial” pode surpreender os militantes de hoje, tendo sido de uso corrente no movimento negro dos anos 1940. Basta lembrar, por exemplo, que o jornal Quilombo, dirigido por Abdias do Nascimento, entre 1948 e 1950, tem uma coluna intitulada justamente “Democracia Racial”, em que assinam artigos intelectuais brasileiros e estrangeiros, aliados à luta antiracista de então: Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Roger Bastide, Murilo Mendes, Estanislau Fischlowitz, Ralph Bunche.
O engajamento dos militantes negros com a “democracia racial” fica meridianamente claro na fala inaugural de Abdias ao I Congresso do Negro Brasileiro, em agosto de 1950:
“Observamos que a larga miscigenação praticada como imperativo de nossa formação histórica, desde o início da colonização do Brasil, está se transformando, por inspiração e imposição das últimas conquistas da biologia, da antropologia, e da sociologia, numa bem delineada doutrina de democracia racial, a servir de lição e modelo para outros povos de formação étnica complexa conforme é o nosso caso” (1950a apud 1968:67).
Sem ter cunhado a expressão, e mesmo avesso a ela, posto que evocava uma contradição em seus termos, mas grandemente responsável pela legitimação científica da afirmação da inexistência de preconceitos e discriminações raciais no Brasil, Freyre manteve-se relativamente quieto enquanto a idéia de “democracia racial” permaneceu consensual, seja como tendência da sociedade brasileira, seja como padrão ideal de relação entre as raças. Isto é, enquanto a luta anti-fascista e a luta anti-racista o aproximou da esquerda e dos escritores e políticos progressistas brasileiros. Quando, entretanto, no decorrer dos 1960, a situação polarizou-se na África, com as guerras de libertação, e no Brasil, com o avanço ideológico da “negritude” e do movimento pelas “reformas de base”, Freyre voltou a brandir a “democracia racial” ou “étnica”, desta vez para contrapor-se aos ideais igualitários das esquerdas, e em defesa do que considerava uma cultura não apenas luso-brasileira, mas luso-tropical.
Ironicamente, tratará a “negritude” como um mito racial (ou mística):
“Palavras que ferindo o que Angola tem de mais democrático - a sua democracia social através daquela mestiçagem que vem sendo praticada por numerosos luso-angolanos, ao modo brasileiro - fere o Brasil; e torna ridícula - supremamente ridícula - a solidariedade que certos diplomatas, certos políticos e certos jornalistas do Brasil de hoje pretendem, alguns do alto de responsabilidades oficiais, que parta de uma população em grande parte mestiça, como a brasileira, a favor de afroracistas. Que afinidade com esses afroracistas, cruamente hostis ao mais precioso valor democrático que vem sendo desenvolvido pela gente brasileira - a democracia racial - pode haver da parte do Brasil? Tais diplomatas, políticos e jornalistas, assim procedendo, ou estão sendo mistificados quanto ao afroracismo, fantasiado de movimento democrático e de causa liberal, ou estão sendo eles próprios mistificadores dos demais brasileiros. Nós, brasileiros, não podemos ser, como brasileiros, senão um povo por excelência anti-segregacionista: quer o segregacionismo siga a mística da "branquitude", quer siga o mito da "negritude". Ou o da "amarelitude".” (Freyre 1962)
Os acontecimentos políticos posteriores, principalmente a vitória das forças conservadoras, em 1964, farão prevalecer, nos círculos do poder, a idéia freyreana de “democracia racial” enquanto padrão cultural de interação interracial e não a consigna negra de luta pela igualdade social entre brancos e negros. Prevalecerá o lado hierárquico e não o lado igualitário da fábula das três raças (Da Matta 1981). Para as esquerdas, a partir de 1964, no contexto do rompimento da democracia brasileira, estava finalmente madura a idéia de que a “democracia racial” mais que um ideal era um mito; um mito racial, para usarmos as palavras de Freyre. O autor dessa nova fórmula política (“o mito da democracia racial”) foi justamente alguém que já dialogava criticamente com a obra e as idéias de Freyre desde o início de sua formação acadêmica: Florestan Fernandes.
Utilizando-se do mesmo contraste entre “aristocracia” e “democracia” e do mesmo conceito de “mito” usado por Freyre, o diálogo com este não poderia ser mais explícito:
"Portanto, as circunstâncias histórico-sociais apontadas fizeram com que o mito da 'democracia racial' surgisse e fosse manipulado como conexão dinâmica dos mecanismos societários de defesa dissimulada de atitudes, comportamentos e ideais 'aristocráticos' da 'raça dominante'. Para que sucedesse o inverso, seria preciso que ele caisse nas mãos dos negros e dos mulatos; e que estes desfrutassem de autonomia social equivalente para explorá-lo na direção contrária, em vista de seus próprios fins, como um fator de democratização da riqueza, da cultura e do poder".(Fernandes 1965: 205)
O rompimento do pacto democrático que vigeu entre 1945 e 1964 e que incluiu os negros, seja como movimento organizado, seja simbolicamente como elemento fundador da nação, parece ter decretado também a morte da “democracia racial” enquanto compromisso social e político. Doravante, ainda que aos poucos, os intelectuais e ativistas negros referirão tanto as relações entre brancos e negros, quanto o padrão ideal destas relações como o “mito da democracia racial”. O objetivo era claro: opor-se à ideologia oficial patrocinada pelos militares e propalada pelo luso-tropicalismo.
Abdias do Nascimento, em 1968, a poucos dias de partir para o exílio, já fala em “logro”:
“O status de raça, manipulado pelos brancos, impede que o negro tome consciência do logro que no Brasil chamam de democracia racial e de cor”. (Nascimento 1968: 22)
Ainda em 1968, em depoimento em evento organizado pelos Cadernos Brasileiros (1968, n. 47, p. 23), ficam claras as tensões entre Abdias do Nascimento e a esquerda nacionalista, sinalizando o fim da “democracia racial” enquanto compromisso político.
Ali, já aparece o uso da “negritude” em sentido multiculturalista e em sua pretensão ecumênica:
“Entendo que o negro e o mulato – os homens de cor – precisam, devem ter uma contra-ideologia racial e uma contra-posição em matéria econômico-social. O brasileiro de cor tem de se bater simultaneamente por uma dupla mudança: a) a mudança econômico-social do país; b) a mudança nas relações de raça e cor. Aqui entra a Negritude como conceito e ação revolucionários. Afirmando os valores da cultura negro-africana contida em nossa civilização, a Negritude está afirmando sua condição ecumênica e seu destino humanístico. Enfrenta o reacionário contido na configuração de simples luta de classe do seu complexo econômico-social, pois tal simplificação é uma forma de impedir ou retardar sua conscientização de espoliado por causa da cor e da classe pobre a que pertence”.
Em 1977, retornando do exílio, Abdias escreve e publica, em Lagos, The Racial Democracy” in Brazil: myth or reality ?, republicado em 1978, no Brasil, como O Genocídio do Negro Brasileiro.
No prefácio, Florestan escreve:
“[Abdias] não fala mais em uma “Segunda Abolição” e situa os segmentos negros e mulatos da população brasileira como estoques africanos com tradições culturais e um destino histórico peculiares. Em suma, pela primeira vez surge a idéia do que deve ser uma sociedade pluri-racial como democracia: ou ela é democrática para todas as raças e lhes confere igualdade econômica, social e cultural, ou não existe uma sociedade pluri-racial democrática.” (Nascimento 1968: 20)

O segundo mito: contra a política de identidade racial

Como é sabido, os movimentos políticos negros no Brasil, depois de 1978, ressurgem a partir da reelaboração da tradição de resistência negra inscrita internacionalmente no pan-africanismo de DuBois, no afro-centrismo de Diop, no anticolonialismo de Fanon e no quilombismo de Abdias do Nascimento. Durante toda a década de 1980, o “mito da democracia racial” será denunciado sistematicamente como um dogma da “supremacia branca” no Brasil.
O incômodo da academia brasileira frente ao avanço do que ela considerava “dogmatismo”, nos anos 1990, teve alguns pivôs importantes: primeiro um certo exagero do discurso militante, que transparece no emprego de termos como “genocídio” para referir-se ao comportamento da sociedade brasileira em relação aos negros, e a vontade de fazer crer que a opressão dos negros no Brasil era pior do que a situação norte-americana ou sul-africana. Ou seja, a propaganda do movimento queria transformar a imagem do Brasil de paraíso em inferno racial (Sansone 1996). Segundo, a pretensão do movimento em politizar a classificação racial brasileira, redefinindo identidades como “preto”, “pardo” ou “moreno” em “negro”, sem no entanto consegui-lo, pois a massa da população, na melhor das hipóteses, só muito lentamente poderia seguir tal redefinição (Harris et al. 1993; Maggie 1996). Terceiro, um evidente descompasso entre o discurso político da militância e o comportamento eleitoral das massas, as quais se revelavam muito mais permeáveis ao populismo trabalhista que aos apelos afro-cêntricos do MNU (Souza 1971; Santos 1985; Agier 2000; Guimarães 2001).
Do ponto de vista teórico, a reação acadêmica começa com o esforço de reintrepretação do Brasil empreendido por DaMatta (1979), em termos da dicotomia entre “individuo” e “pessoa”, tomada de empréstimo a Louis Dumont (1966), e que culmina com a sugestão de que as relações raciais no Brasil sejam regidas por uma “fábula das três raças” (DaMatta 1981).
Mais tarde, reagindo à analise de Michael Hanchard (1996), que via na denúncia pública de racismo na sociedade brasileira o fim do mito da democracia racial, Peter Fry escreve:
“... nem por isso precisamos descartar a ‘democracia racial’ como ideologia falsa. Como mito, no sentido em que os antropólogos empregam o termo, é um conjunto de idéias e valores poderosos que fazem com que o Brasil seja o Brasil, para aproveitar a expressão de Roberto DaMatta.” (Fry 1995-1996: 134).
Lília Schwarcz (1999a: 309) sintetiza tal posição do seguinte modo:
“Dessa maneira, tomando os termos de Lévi-Strauss, poderíamos dizer que o mito se ‘extenua sem por isso desaparecer’ (1975). Ou seja, a oportunidade do mito se mantém, para além de sua desconstrução racional, o que faz com que, mesmo reconhecendo a existência do preconceito, no Brasil, a idéia de harmonia racial se imponha aos dados e à própria consciência da discriminação.”
Ou seja, ao que parece, a denúncia do “mito da democracia racial”, forjada por Florestan em 1964, que respaldou toda a mobilização e protestos negros nas décadas seguintes, sintetizando a distância entre o discurso e a prática dos preconceitos, da discriminação e das desigualdades entre brancos e negros no Brasil, finalmente se esgota enquanto discurso acadêmico, ainda que como discurso político sobreviva com alguma eficiência.
Na academia brasileira, o “mito” passa agora a ser pensado como “chave” para o entendimento da formação nacional, enquanto as contradições entre discursos e práticas do preconceito racial passam a ser estudadas sob o rótulo mais adequado (ainda que altamente valorativo) de “racismo”. Ou seja, no mesmo terreno em que o movimento negro o pôs. Foi o próprio DaMatta, inspirador da nova leva de estudos (Guimarães 1995; Hasenbalg 1996) que visam definir a especificidade do racismo no Brasil, quem cunhou a expressão “racismo à brasileira” (DaMatta 1981, 1997; Pereira 1996), depois substituída, no senso comum, por outra - “racismo cordial” (Folha de S. Paulo/DataFolha 1995) – forjada pela mídia. Ou seja, não é mais a democracia que será adjetivada para explicar a especificidade brasileira, mas o racismo.
O que continua em jogo, entretanto, é a distância entre discursos e práticas das relações raciais no Brasil, tal como Florestan e Bastide colocavam nos idos anos 1950. Ainda que, certamente, para as ciências sociais, o mito não possa ser pensado da maneira maniqueísta como Freyre e Florestan pensaram, transpondo-o diretamente para a política, permanecem os fatos das desigualdades entre brancos e negros no Brasil, apesar do modo como se classifiquem as pessoas. Mais que isto: as diferenças raciais se impõem à consciência individual e social, contra o conhecimento científico que nega as raças (são como bruxas que teimam em atemorizar, ou como o sol que, sem saber de Copérnico, continua a nascer e a se pôr?). Novos estudos sobre as desigualdades raciais no Brasil, elaborados inicialmente no âmbito da Sociologia e da Demografia, ganham outras disciplinas sociais, como a Economia (Barros e Henriques 2000; Soares 2000), enquanto saem das universidades e se aninham nos órgãos de planejamento estatal, a respaldar as reivindicações do protesto negro.

Conclusões

Entre 1930 e 1964, vigeu no Brasil o que os cientistas políticos chamam de “pacto populista” ou “pacto nacional-desenvolvimentista”. Neste pacto, os negros brasileiros foram inteiramente integrados à nação brasileira, em termos simbólicos, através da adoção de uma cultura nacional mestiça ou sincrética, e em termos materiais, pelo menos parcialmente, através da regulamentação do mercado de trabalho e da seguridade social urbanos, revertendo o quadro de exclusão e descompromisso patrocinado pela Primeira República. Nesse período, o movimento negro organizado concentrou-se na luta contra o preconceito racial, através de uma política eminentemente universalista de integração social do negro à sociedade moderna, que tinha a “democracia racial” brasileira como um ideal a ser atingido.
O golpe militar de 1964, que destrói o pacto populista, estremece também os elos do protesto negro com o sistema político, que se teciam principalmente através do nacionalismo de esquerda. De fato, no começo dos 1960, a política externa brasileira já se encontrava estressada quanto à posição que o Brasil deveria tomar frente aos movimentos de libertação das colônias portuguesas na África. O movimento negro brasileiro, influenciado, internacionalmente, pela négritude, enfatizava as suas raízes africanas, o que gerava a reação de intelectuais como Gilberto Freyre (1961, 1962), em sua cruzada em prol dos valores da mestiçagem e do luso-tropicalismo. A discussão sobre o caráter da “democracia racial” no Brasil - ou seja, se se tratava de realidade cultural (como queriam Freyre e o establishment conservador) ou de ideal político (como queriam os progressistas e o movimento negro) - acaba levando à radicalização das duas posições.
A acusação de que “democracia racial” brasileira não passava de “mistificação”, “logro” e “mito” toma então conta do movimento, à medida que a participação política se torna cada vez mais restrita, excluindo a esquerda e os dissidentes culturais. A partir de 1968, os principais líderes negros brasileiros vão para o exílio.
Com a redemocratização do país, a impossibilidade de se conter as reivindicações sociais dos negros brasileiros nos estreitos parâmetros da idéia freyriana de “democracia social” fica de todo evidente. A nação brasileira, constituída como mestiça e sincrética, já não precisava reivindicar uma origem “não tipicamente ocidental”. Ao contrário, as classes e grupos sociais farão dos direitos civis, individuais e universais o principal objetivo das lutas sociais.
A reconstrução da democracia no Brasil, a partir de 1978, ocorre pari passu ao renascimento da “cultura” e do protesto negro. Mais que isto: dá-se num mundo em que a idéia de multiculturalismo, ou seja de tolerância e respeito a diferenças culturais que se querem íntegras, autênticas e não-sincréticas, ao contrário do ideal nacionalista (universalista) do pós-guerra, é dominante. O fato é que a conquista de direitos econômicos e sociais e de representação política da massa de “excluídos” (sub-proletários, diria Marx) e das classes médias negras, face ao recuo da sociedade de classes, talvez exija, ao menos temporariamente, uma política de identidade bem demarcada. Em todo caso, nesse ambiente, todo o trabalho de reconstrução de um pacto racial democrático, no que pese o esforço de incorporação simbólica e material do estado brasileiro, está fadado a um (in)sucesso limitado.
Seria errôneo atribuir o recrudescimento da “consciência negra” e do cultivo da identidade racial, no Brasil dos anos 1970, à influência estrangeira, especialmente norteamericana. Ao contrário, o renascimento cultural negro deu-se nestes anos sob a proteção do estado autoritário e de seus interesses de política exterior (Santos 2000; Agier 2000). Ademais, a guinada do movimento negro brasileiro em direção à negritude e às origens africanas data dos anos 1960 e foi, ela mesma, responsável pela geração das tensões políticas surgidas em torno do ideal de democracia racial. Do mesmo modo, as idéias e o nome de “democracia racial”, longe de serem o logro forjado pelas classes dominantes brancas, como querem hoje alguns ativistas e sociólogos, foi durante muito tempo uma forma de integração pactuada da militância negra.
Em resumo, “democracia racial” foi, o modo como Arthur Ramos, Bastide e outros, traduziram as idéias expressas por Freyre em suas conferências na Europa, em 1937, na Universidade da Bahia e de Indiana, em 1943 e 1944, respectivamente. Idéias essas caudatárias, elas próprias, das reflexões de Freyre sobre a formação patriarcal da sociedade brasileira. Nessa “tradução”, Bastide e Ramos omitem o caráter “ibérico”, restritivo, que Freyre atribuía, no mais das vezes, ao termo; pelo contrário, alargam-no, realçam-lhe o caráter propriamente universalista de “contribuição brasileira à humanidade” (também reivindicado por Freyre), mais apropriado à coalizão anti-fascista e anti-racista da época. Assim transposta para o universo individualista ocidental, a “democracia racial” ganhou um conteúdo político, distante do caráter puramente “social” que prevalece em Freyre, fazendo com que, com o tempo, a expressão ganhasse a conotação de ideal de igualdade de oportunidades de vida e de respeito aos direitos civis e políticos que teve nos anos 1950. Mais tarde, em meados dos 1960, “democracia racial” voltou a ter o significado original freyriano de mestiçagem e mistura étnico-cultural tout court. Tornou-se, assim, para a militância negra e para intelectuais como Florestan, a senha do racismo à brasileira, um mito racial.
Finalmente, para alguns intelectuais contemporâneos, o mito transforma-se em chave interpretativa da cultura brasileira. Mas é preciso que se lembre sempre de que o mito, no sentido antropológico, transforma-se facilmente em falsa ideologia, quando ganha a arena política, perdendo seus referentes históricos e sociais, obscurecendo o jogo de interesses e de poder que lhe dá sentido em cada época. Ou seja, quando é tomado como valor atemporal e a-histórico. Ora, é isso justamente que fez Gilberto Freyre a partir dos 1930. Em Gilberto, a “democracia social e étnica” brasileira é característica imanente e perene à cultura luso-brasileira. Mas, sabemos hoje que todos os sentidos culturais são construídos e reconstruídos a cada momento.
Morta a democracia racial, ela continua viva enquanto mito, seja no sentido de falsa ideologia, seja no sentido de ideal que orienta a ação concreta dos atores sociais, seja como chave interpretativa da cultura, seja como fato histórico. Enquanto mito continuará viva ainda por muito tempo como representação do que, no Brasil, são as relações entre negros e brancos, ou melhor, entre as raças sociais (Wagley 1952) – as cores – que compõem a nação.
Noção criada (1937) e expandida (1943-1944) durante as duas ditaduras varguistas para nos incluir no mundo dos valores políticos universais, a “democracia racial” precisaria hoje ser apenas democracia, que inclui a todos sem menção a raças. Estas, que não existem, faríamos melhor se não as mencionássemos em nosso ideal de nação, reservando o seu emprego para denunciar o racismo.

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