sexta-feira, 19 de julho de 2013

Documentos africanos revelam segredos da história da escravidão


Na semana que o Brasil comemorou a libertação dos escravos, a reportagem do Domingo Espetacular fez descobertas surpreendentes. Na África, foram encontrados registros que mexem com a história da escravidão brasileira.
O continente africano é marcado por um triste passado, em que milhões de pessoas foram submetidas a formas degradantes de trabalho e de vida, por causa da cor da pele.
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Em Luanda, capital de Angola, há um museu sobre a escravatura, instalado em uma capela no século 18, que foi construída por um militar português. O local servia para evangelização dos escravos. Ao lado, barracões funcionavam como depósitos de seres humanos. Nem as crianças escapavam.
O museu guarda documentos e objetos da época, que mostram o sofrimento dos escravos e a detalhes da vida diária.
Os pesquisadores não têm dúvida: líderes do Vaticano apoiaram abertamente a escravidão. Em uma carta, antes do descobrimento do Brasil, o papa Nicolau 5º deu autorização ao rei de Portugal para subjugar pessoas à escravidão.

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Filme conta história real de sul-africana explorada como atração de circo.
Atuação da atriz cubana Yahima Torres é o destaque do longa-metragem.
Sem nenhuma pretensão a ser didático, "Vênus negra", o contundente novo drama do tunisiano radicado na França Abdellatif Kechiche ("O segredo do grão") atravessa uma série de temas — o colonialismo, o racismo e o machismo, os mais evidentes.
Que a história, apesar de ambientada no início do século 19, tenha tanta ressonância numa Europa que ergue barreiras crescentes aos imigrantes, não é mera coincidência.
Ao centro do filme, roteirizado pelo próprio Kechiche e Ghalia Lacroix, há uma personagem real cuja biografia é repleta de pontos obscuros. Pelas próprias características de sua vida curta e oprimida, nunca se saberá tudo sobre a sul-africana Saartje Baartman (a impressionante estreante cubana Yahima Torres).
Suas formas mais do que generosas, que lhe valeram o apelido de "Vênus hotentote", falaram mais alto do que ela. Saartje, que sonhava em ser artista na Europa, como foi na África, acabou refém de uma situação de virtual escravidão não só em relação ao patrão Hendrick Cezar (Andre Jacobs), como frente ao olhar com que uma mulher, africana, imigrante e despossuída foi encarada. Mesmo cientistas não foram menos voyeurs.
Show de horror
Ela parte da África para Londres em 1810 com Cezar, que promete fazê-la rica com apresentações de sua dança. Ao invés disso, ela é coagida a apresentar-se em shows de mau gosto, em que sai de uma jaula, simulando atacar o público, como se fosse uma selvagem. Nesses espetáculos, usa uma roupa colante que deixa em evidência a particularidade de seu corpo. Muitos espectadores gritam obscenidades e tentam tocá-la.
A exploração de Saartje chama a atenção de um tribunal, onde ela não denuncia o patrão, apesar de ter a oportunidade. Este é um dos mistérios da moça, que pouco fala e bebe muito. Uma nova viagem, desta vez a Paris, piora sua situação. Explorada por um empresário circense (Olivier Gourmet, de "O filho"), ela torna-se a principal atração de festas privadas em que os convidados tocam seu corpo.
Mesmo quando é alcançada por cientistas, como o anatomista Georges Cuvier (François Marthouret), nem assim consegue ser tratada como um ser humano.
Exposição
Saartje é objeto de uma curiosidade que desconsidera seus pudores e sua vontade. Os cientistas veem nela não mais do que um animal exótico, uma situação que persistirá mesmo após a sua morte, em 1815. Seu esqueleto e alguns de seus órgãos ficaram em exibição no Museu do Homem, em Paris, até 2002, quando o presidente sul-africano Nelson Mandela requereu formalmente que seus restos fossem enviados ao seu país natal para o sepultamento.
Fixando sua câmera em torno de sua formidável protagonista, o diretor Kechiche estende as sequências, inclusive as da insuportável exposição de Saartje. Nesse tempo alongado, procura, de algum modo, que o espectador compartilhe o calvário da personagem e tente entender o mistério de seu silêncio. E a história fica na carne e na memória de quem vê.




O canto dos escravos


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POR HUGO FANTON
Canto IX (ouça)
I
Hoje, em coisa de segundos, me lembrei de uma menina, vi tristeza no meu mundo e fui invadido pela África, em forma de vissungo.
Em 1982, Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Tia Doca se reuniram para dar nova vida a cantigas ancestrais de negros e negras benguelas, de São João da Chapada, MG. Entoados no cotidiano daquela gente, no trabalho nas minas, em rituais mágicos, festas ou mortes, os vissungos envolviam mundos distintos, terra daqui e de lá, o sobrenatural, a ancestralidade, os que ainda vivem perpassados em notas, por gente, as vozes do além, do lado de lá do mar ou da vida. Mundos sempre a se tocar, no sofrer.
Ei ê lambá,
quero me acabá no sumidô
quero me acabá no sumidô,
lamba de 20 dia
ei lambá, quero me cabá no sumidô —
Ei ererê.
O trabalho duro, lamba, motiva o negro pedir a morte. No vissungo, o sofrer vai daqui pra lá, de lá pra cá, e ouvindo o canto vou sentindo um dizer de Mia Couto: "Hoje eu sei, África rouba-nos o ser, e nos vaza de maneira inversa, enchendo-nos de alma".
O canto foi registrado em 1929 por Aires da Mata Machado Filho, filólogo que queria recolher vestígios de um dialeto banto. Mas da lingüística à alma, tem o longo caminho da poesia repousada na vida, vivida agora. E de lá pra cá, é lambá que me traz o caminho não vivido, sentido.
II
Neste momento, cantigas são entoadas por negros e negras no Rio de Janeiro. Também em São Paulo, e talvez por toda parte. Num lugar de pobreza reservada para negros, de repressão reservada para a pobreza, lambá tem cara, que não muda. O capitalismo se desenvolve, sistema político, organização de serviços e a expressão de deveres e direitos mudam, mas lambá não muda, é dos negros, como os cantos.
Numa entrevista que fiz em Heliópolis, um cantador negro me entoou letra que escrevera: "camelô também é trabalhador. Vende sua mercadoria, pra ganhar no dia-a-dia, no centro, bairros e vilas, na correria. Quando começa é mó sufoco: olha o rapa! Quem moscou, vacilou, teve suas coisas levadas, no rosto, vejo o desânimo, não levou nada pra casa. Infelizmente é assim, o caçador e a caça, na guerra de quem vive suando a camisa, é a batalha do pobre pelo pão da nossa família. Trabalhador, camelô, já acordou, cinco da matina, é o cotidiano".
É lambá. Aos olhos do Estado, crime. E novamente no canto, África vai nos enchendo de alma, enquanto é sufocada. No canto dos escravos, consumo sentimento e cantador definha. É canto negro, vivência negra que me invade. E caminho na hipocrisia, na tristeza de que o sofrer dele pouco muda minha alegria.
III
Hoje, em coisa de segundos, me lembrei de uma menina, vi tristeza no meu mundo e fui invadido pela África, em forma de vissungo.
A menina me veio por texto. Escreveu sobre a criação do mundo pelos Desana. Conta que Baaribo espalhou pelo pano de tururi a terra de nascer gente, a terra da gente abrir os olhos, a terra de formar gente e a terra de virar gente. Os Desana explicam as diferenças no mundo em formação: "quando os primeiros brancos chegaram na região, os nossos avôs já sabiam que eles vinham para fazer a guerra, porque Yebá-gõãmi havia dito para o ancestral deles ganhar a sua vida pela violência".
A menina que me apresentou os Desana é a mesma que me apresentou os vissungos. É menina que vive num mundo de brancos, negros e indígenas, e que entende do sofrer.
Nesses tempos de guerra e cantoria, mudou a racionalidade, mudaram as ações e as legitimidades. Bíblia muda pra lei, chicote muda pra algemas. Mas África continua a encher nossas almas, e Yebá-gõãmi continua explicando nosso mundo. –hugo fanton (cc)


Escravidão persiste no Brasil: 283 pessoas libertas somente em 2013

Entre 1995 e 2012, quase 45 mil trabalhadores foram resgatados de situações análogas à escravidão
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Embates como os que mobilizaram o Poder Legislativo brasileiro há 125 anos pelo fim da escravidão são travados até os dias de hoje. Tramita desde 1995 — quando a primeira versão do texto foi apresentada pelo deputado Paulo Rocha (PT-PA), sem que a tramitação avançasse — uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que fortalece os instrumentos de combate à exploração do trabalhador. O principal entrave para a aprovação da medida é o dispositivo que determina o confisco da terra onde for flagrada a prática de trabalho análogo à escravidão. Considerada uma segunda abolição, a proposta destina essas áreas à reforma agrária ou ao uso urbano.
A PEC já entrou e saiu da pauta do Congresso diversas vezes. Em 2004, a medida ganhou força, após grande comoção popular gerada pelo assassinato de três auditores fiscais e de um motorista do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que faziam uma fiscalização no noroeste de Minas Gerais. Os produtores rurais Antério e Norberto Mânica, acusados de serem os mandantes do crime — que ficou conhecido como Chacina de Unaí, em referência ao município onde os servidores foram assassinados — ainda não foram julgados.

No ano passado, a proposta foi aprovada pela Câmara, mas voltou ao Senado por causa de uma modificação no texto. Em abril deste ano, o relator da PEC na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), deu parecer favorável ao texto da Câmara, sem alterações. Na justificativa, o senador argumenta que, ao permitir o confisco do imóvel no qual for flagrado o trabalho análogo à escravidão, o país dará um sinal inequívoco de que está empenhado em acabar definitivamente com essa chaga, que fere não só as leis trabalhistas, mas, acima de tudo, a dignidade das pessoas. Atualmente, o trabalho escravo — descrito em linhas gerais como privação de liberdade imposta pelo patrão para dificultar o desligamento do explorado — é considerado grave violação dos direitos humanos, crime previsto no artigo 149 do Código Penal.

Flagrantes de exploração
Enquanto a discussão se arrasta no Congresso, o país continua flagrando trabalhadores sendo explorados em condições análogas à escravidão. Na última quinta-feira, oito pessoas foram libertadas de um sítio em Castelo dos Sonhos, Altamira (PA). O dono da fazenda, armado, obrigava os empregados a fazerem compras na própria fazenda, caracterizando a escravidão por dívida. Um litro de leite, por exemplo, era vendido por R$ 17.

Só nos quatro primeiros meses deste ano, segundo dados do MTE, mais 283 pessoas foram libertadas. Entre 1995 e 2012, o total de trabalhadores resgatados ultrapassou 44,2 mil (veja quadro). E a exploração do trabalho forçado e sem remuneração não está restrito ao setor rural. Nas cidades também há escravidão moderna, principalmente nos setores de confecção, da construção civil e do comércio, além de serviços domésticos.

Trabalhadores libertados desde 1995

1995 – 1999 1.787
2000 – 2004 12.216
2005 – 2009 22.549
2010 – 2013* 7.962

(até 29 de abril)


Parte dos negros não comemora o Dia da Abolição da Escravatura



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Brasília – A estudante de ciências políticas do 8º semestre da Universidade de Brasília (UnB) Vanessa Machado entrou na instituição pelo sistema de cotas raciais, mesmo com nota suficiente para ser aprovada sem o sistema. Vanessa está na contramão das estatísticas, estudou em escola particular e seus pais são formados, mas ainda assim engrossa a voz do movimento negro ao não comemorar o dia de assinatura da abolição da escravatura, em 13 de maio, há 125 anos.
"O 13 de Maio é um marco histórico legal, representa mais do que a assinatura da princesa Isabel. Representa o grito sufocado dos negros. Mas ainda há muitos desafios, estamos longe do ideal. Pobreza tem cor e não é por acaso", analisa a estudante.
O pensamento é compartilhado por frei David, presidente da Educafro, uma organização não governamental que tem a missão de promover a inclusão da população negra e pobre nas universidades públicas e particulares. Segundo ele, cerca de 40 mil estudantes passaram pelos cursinhos de pré-vestibular da rede e já concluíram o ensino superior. Além de também defender o sistema de cotas raciais, ele questiona a comemoração da data.
"Nenhuma sociedade do mundo deixou uma etnia quase 400 anos escravizada e resolveu [o assunto] apenas com a assinatura de um papel chamado de Lei Áurea. A desigualdade é o fruto da perversidade dos sucessivos partidos políticos que nada ou muito pouco fizeram para compensar o povo negro nestes quatro séculos de escravidão e exclusão. Daí a necessidade de políticas públicas de ação afirmativa [cotas] para negros nas universidades", avalia.
O presidente da Fundação Cultural Palmares, Hilton Cobra, também defende as políticas de ações afirmativas instituídas pelo governo e critica a falta de espaços para projetos culturais que tratem da temática afro-brasileira.
"Arte e cultura negra ainda não são inseridas no sistema. Há muita dificuldade na captação de recursos para esses projetos. Um dia não precisaremos mais de cotas, mas elas são necessárias atualmente e representam uma vitória, uma abertura de espaços", diz Hilton Cobra.
A data de assinatura da lei marca atualmente o Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo. No país, é considerada crime de racismo a conduta discriminatória dirigida a um determinado grupo ou coletividade. A pena é imprescritível e inafiançável. O Código Penal prevê também o crime de injúria racial, que consiste em ofender a honra de alguém com a utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem.
"Ser negro no Brasil é sofrer preconceito diariamente. É preciso ter esse debate, falar sobre o racismo. Quando não se fala, a questão se torna invisível. Essa linha que divide o que denigre a imagem de alguém e o que não denigre é muito tênue.




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