quarta-feira, 17 de julho de 2013

Diversidade Cultural e população negra



Entre os séculos  formou-se uma literatura etnográfica, construída pelos olhares de viajantes, missionários e administradores coloniais, que tinha por foco a diversidade cultural, resultante do contato com os povos "descobertos", especialmente nos continentes africano e americano. O século xx trouxe para essa literatura uma sistematização do conhecimento acumulado sobre o "outro" no formato de etnografias clássicas que procuravam dar conta da observação, descrição e análise dessa alteridade. Agora, no século  o tema da diversidade cultural continua atualíssimo como a demonstrar toda a dinâmica e complexidade com que se reveste, não só para



 


 



a agenda antropológica como para outras instâncias sociais, produtoras de discursos e práticas que emolduram o momento atual.

Foi pensando nessa trama de olhares sobre o tema, a qual envolve desde o contexto macro até o cotidiano, que proponho neste artigo trazer algumas questões etnográficas e teóricas que perpassam essa temática. Por essa via, tragos conjuntamente com o exame desses contextos o dialogam com as variadas interpretações e questionamentos suscitados por autores como Geertz (1999), especialmente em "Os Usos da Diversidade" e Marc Auge (1994) com a noção de "Não-lugares". Também insiro nesse diálogo a dimensão etnicorracial como uma das possibilidades de situar as discussões sobre diversidade cultural.

Esta é a perspectiva geral deste artigo, o qual se divide em três seções: na primeira apresento o debate sobre relações etnicorraciais no Brasil em diálogo com o tema da diversidade cultural. Em seguida me detenho num conjunto de notas etnográficas extraídas do cotidiano que procuram evidenciar a vivência da diversidade nos processos de interação social. Por fim, procuro analisar a interface entre políticas públicas, diversidade cultural e comunidades de quilombos, a partir da análise do caso da comunidade Quilombo da Anastácia.

Qual o lugar da diversidade cultural? A insólita pergunta me veio à mente quando refletia sobre algumas questões do cotidiano vistas pelo olhar antropológico. Essas questões mesclavam-se com outras maiores, ensejando que esses casos singulares levavam às configurações problemáticas mais amplas. Para começar, qual a idéia de "lugar" e "diversidade cultural" que estamos fazendo? Em relação ao primeiro termo, me apóio na idéia de "lugar antropológico", trazida por Marc Auge nas suas discussões sobre antropologia e modernidade (1994).

O autor nos leva a pensar neste como uma construção concreta e simbólica do espaço, caracterizado por dimensões históricas, relacionais e identitária. Sendo assim, a diversidade cultural, vista como as diferentes maneiras pelas quais os grupos humanos atribuem significados e sentidos às "coisas do mundo", conforme nos aponta Geertz (1989), projeta-se em inúmeras possibilidades de apreensão tanto quanto variam essas construções do concreto e do simbólico. ssas construçra em a, a partir de traços distintivos entre sociedades e grupos sociais.

Nesse sentido, talvez nos caiba, um pensar em termos de "lugares antropológicos", explorando assim uma forma diversa e múltipla de perceber o encontro entre antropologia e diversidade cultural. Por isso, antes de partir para a análise do "cotidiano", quero ir, um pouco além, emoldurando o cenário vislumbrado sobre a diversidade cultural. Por esse caminho, percebo que temas tão caros a antropologia, mas não de sua exclusividade, tais como "cultura", "diversidade", "etnicidade" e "identidade", estão em constante diálogo com outros campos do conhecimento humano, atores e instituições sociais.

Situando esse diálogo na contemporaneidade, não esquecendo obviamente que os "velhos debates" incorporam-se e ressignificam-se nos "novos", destacam-se os



 


 



usos da diversidade (Geertz, 1999). Esses usos implicam que já não se pode pensar em diversidade cultural, em termos do nativo de uma longínqua ilha do pacífico ou de alguma comunidade negra (quilombos) isolada geograficamente e sem contato com a "civilização".

Essa percepção de que o "outro" está na próxima esquina, na fila do restaurante universitário, ou ainda no assento ao nosso lado de algum ônibus ou avião, faz com que a diversidade cultural seja algo próximo, presente em cada um de nós e ainda assim fator de estranhamento, pois afinal ela comporta diferenças de gênero, classe e etnicorraciais. A visão Geertziana (1999: 33) demonstra que essa proximidade não leva, necessariamente, a comungar com pontos de vista do outro, nem elimina preconceitos e discriminações, mas pode ser um fator para entender o que está a nossa frente.

Mas, para entender o que está a nossa frente é preciso entender o que está atrás de nós. No caso, me refiro ao percurso desenhado pela configuração das relações etnicorraciais no Brasil, algo intrinsecamente ligado às idéias sobre diversidade cultural. Essa conectividade está expressa nos registros de viajantes europeus como Louiz Agassiz (1807-1873), Joseph Artur de Gobineau (1816-1882), Saint Hilaire (1779-1853) e Johann Moritz Rugendas (1802-1858), os quais percorreram o Brasil do século

 tecendo olhares sobre a população, flora e fauna.



A trama desses olhares fundamentou as teorias racialistas da época, as quais propunham a hierarquização social, a partir das diferenças fenotípicas. A correspondência entre o biológico e o social, fundamentado pelas teorias raciais européias, obedeceu ao deslocamento do campo de estudos dito "naturais", a exemplo da obra Origem das Espécies (1859) do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), para o emergente campo das ciências humanas (antropologia, sociologia) onde encontrou acolhida como interpretação legítima da vida social. Assim, torna-se viável explicar ou mesmo justificar, por exemplo, posições ideológicas de supremacia e/ou diferenças entre nações. Esse será o ponto nevrálgico no caso brasileiro, pois se conjugam o ideário local de ultrapassar a condição de país atrasado/mestiço/ para um país moderno/branco com a influência dessas teorias sobre o pensamento social da época.

A combinação política (ideário) e científica permite entrever a ampla dimensão que o debate sobre "raça" inaugurava para a sociedade brasileira naquele momento. Afinal, havia o legado negativo da formação social (povos indígenas e africanos) em contraponto a um projeto nacional de adequação ao modelo europeu de nação. Esse dilema será equacionado quando, a partir da transição para o século

xx, o debate sobre "raça" ganha novos contornos advindos da busca por uma "solução nacional". Nessa ocasião, pensadores como Arthur Ramos (1903-1949) e Gilberto Freyre (1900-1987), ressignificam positivamente as figuras do negro e do mestiço, bem como a própria identidade nacional.



Isso significa dizer que a miscigenação deixou de ser marca de degeneração para tornar-se prova de democracia e harmonia, até porque via o caldeamento da

 



população mestiça com o imigrante europeu haveria o branqueamento populacional. Já a mácula da escravidão deu lugar à singularidade com que essa teria permeado o tecido social, não sendo considerada tão nefasta, já que a combinação entre africanos, europeu (portugueses) e seus descendentes, teriam produzido um sistema social e uma cultura híbrida, flexível capaz de acomodar antagonismos diversos e transcender a linha demarcatória entre sociedades e culturas diferentes.

Essa releitura do Brasil vem acompanhada também de uma releitura das antigas teorias raciais do século

xix. Agora, há um distanciamento dos pressupostos evolucionistas de hierarquização dos grupos humanos em face de caracteres físicos e biológicos para uma aproximação com os estudos africanistas e culturalistas, ainda que permeados por exotismo e folclorização. Na primeira linha interpretativa o país configura-se como lócus preferencial para os estudos sobre traços da cultura africana nas Américas e, posteriormente como exemplo de processo civilizatório bem sucedido através da especificidade cultural. Portanto, a cultura seria o pano de fundo da coesão social e inibidora de tensões raciais no plano das relações interpessoais.



Essa idéia foi vista sob ângulos diferentes pelas principais organizações negras fundadas na primeira metade do século

xx: a FNB —Frente Negra Brasileira— e o TEM —Teatro Experimental do Negro—, ambas surgidas na cidade de São Paulo. A primeira recrutou mais de duzentos mil membros com base na "cor" e "raça", mas não na "cultura" ou "tradições", pois buscava afirmar o negro como "brasileiro" em detrimento da origem africana, visto como um estigma e impedimento para inserção plena do negro na sociedade. Já o TEN não se propunha a arregimentar massas, mas organizar ações com significação cultural, valor artístico e função social. Essa perspectiva orientava tanto o grupo de teatro, os cursos de alfabetização, a uma imprensa negra através do Jornal Quilombo, além do engajamento com outras instituições, tal como a Associação das Empregadas Domésticas.



Porém, enquanto a FNB conserva um caráter de luta integracionista que buscava o lugar do negro na sociedade brasileira, o TEN promove um discurso de apelo à identidade cultural do negro através do reconhecimento do valor civilizatório da herança africana e de uma afro-brasilidade. Apesar disso, ambas partilhavam a ótica do enfrentamento ao racismo, através da denúncia da existência do preconceito de cor. Um importante veículo de denúncia, mas não só disso, foi o jornal Quilombo, o qual também revela sua importância pelo sentido resistência cultural que apresenta ao identificar-se com a experiência histórica dos quilombos. O conteúdo jornalístico enfatizava a sociabilidade e o discurso anti-racista, além de agregar, segundo Guimarães (2003), a inserção da intelligentsia negra brasileira no cenário nacional, tornando-se responsável pela formação de uma negritude brasileira e nacionalista calcada em uma identidade racial e cultura singular.

Na metade do século

xx, despontam novas organizações negras gestadas no período histórico dos movimentos de independência dos países africanos, das reivindicações pelos direitos civis nos EUA, e localmente pelas lutas sociais populares .



em prol da democracia. Na confluência desses acontecimentos, o movimento negro brasileiro incorpora ao cenário político os debates sobre discriminação e identidade racial. Essa é a base discursiva do Grupo Palmares (Rio Grande do Sul, 1971), Sociedade Cultural Bloco Afro Ilê Aiyê (Bahia, 1974) e MNUCDR —Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial—, posteriormente renomeado como MNU —Movimento Negro Unificado— (São Paulo, 1978).

Essas organizações refletem a intersecção estratégica entre um contexto local de repressão e um contexto transnacional emancipatório, que ao dialeticamente se oporem criaram condições favoráveis, não só para ampliar o campo de debates, mas também exercitar uma ação política identificada com uma idéia de resistência à brasileira (quilombos) e uma resistência negro-africana (EUA/África) capazes de dar sustentação ideológica e identitária. No entanto, não se trata da importação de uma lógica estrangeira, como querem alguns opositores das ações afirmativas em curso no Brasil, mas de um processo sociopolítico construído na dinâmica da diáspora.

Entre as décadas finais do século

xx e iniciais do século xxi, o movimento negro ultrapassa a fronteira da denúncia do racismo para se tornar propositor de medidas de combate ao mesmo, via adoção de políticas públicas de promoção da igualdade racial. Essa transição de perfil resulta do acúmulo político das décadas anteriores, bem como da conjuntura sociopolítica contemporânea. Para melhor compreensão conjuntural trago alguns marcos temporais relevantes:



Constituição Federal



(1988). Conhecida como a "Constituição Cidadã" por abrigar o reconhecimento de novos direitos, especialmente os artigos 68, 215 e 216 que tratam dos direitos territoriais e culturais das comunidades remanescentes de quilombos.



Centenário da Abolição da Escravatura



(1988). O conteúdo simbólico do centenário assentado na celebração da "liberdade concedida" e "democracia racial" proposto pelo governo é repudiado por organizações do movimento negro. Em resposta a "Marcha contra a Farsa da Abolição", realizada no Rio de Janeiro em maio de 1988. Além dessa mobilização visível, aconteceram outras articulações não tão visíveis, mas que impulsionaram ações em todo o país. No caso, foi a presença de militantes nos núcleos de partidos políticos, sindicatos, bem como nas coordenadorias, programas e conselhos da população negra que começavam a ser criados nesse momento, em âmbito municipal, estadual, federal; Fundação Cultural Palmares (1988): Como resultado da pressão exercida anteriormente, foi criada a Fundação Cultural Palmares —FCP—, a qual nascia como a primeira instância responsável por formular e implantar políticas públicas para a população negra. Para alguns isso representou um avanço na concretização de uma pauta política, porém para outros, o caráter cultural da Fundação revela o lugar em que, preferencialmente, a problemática racial é definida e tratada.



Tricentenário da Morte de Zumbi dos Palmares



(1995). As celebrações em torno do herói mítico dos quilombos tornam-se o palco para a Marcha Zumbi dos Palmares pela Cidadania e pela Vida, Brasília, Brasília. A Marcha resulta no Diversidade



documento intitulado "Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade", o qual foi um conjunto de reivindicações cujo ponto central era a ênfase nas políticas públicas para a população negra, tais como inclusão do quesito cor nos sistemas de dados governamentais e desenvolvimento de ações afirmativas no acesso à educação básica ao nível superior. A resposta governamental veio com a criação de um grupo de trabalho interministerial, composto por membros dos movimentos negros e do próprio governo. O GTI, como ficou conhecido, sinalizou em seus objetivos para o atendimento da demanda por políticas públicas.



Sistema de Cotas Raciais na Educação Superior



(2001). Nesse ano foi adotado pela primeira vez o sistema de cotas, ou seja, reserva de vagas para estudantes negros nas universidades brasileiras. Atualmente, aproximadamente 130 universidades públicas adotam tal política baseada na auto-identificação como negro e indígena, bem como para egressos do ensino público. Esse é uma das bandeiras das organizações negras e tem se constituído em um duro enfrentamento político e judicial frente aos interesses contrários manifestados por setores da sociedade civil; SEPPIR —Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial— (2003). A SEPPIR trouxe entre seus objetivos: "Acompanhar e coordenar políticas de diferentes ministérios e outros órgãos do Governo Brasileiro para a promoção da igualdade racial". Apesar do status ministerial há limitações e impasses no atendimento aos objetivos propostos. É nesse contexto que é cobrado o cumprimento do Programa de Superação do Racismo e Desigualdade Racial e, também as propostas de políticas públicas aprovadas na conferência de Durban em 2001.



Nessa conjuntura atuam inúmeras organizações negras, algumas surgidas nesse período, como por exemplo: Geledés —Instituto da Mulher Negra— (São Paulo, 1988), Unegro —União de Negros pela Igualdade— (Bahia, 1988), Crioula (Rio de Janeiro, 1992) e Educafro - Rede de Pré-vestibulares Comunitários e Educação para Afrodescendentes e Carentes (Rio de Janeiro, 1993). Na diversidade de pautas, objetivos e propostas essas e outras organizações tem construído a história do movimento negro no Brasil.

Em paralelo constroem-se a dinâmica das relações etnicorraciais, razão pela qual para além da celebração da diversidade cultural, impõe-se especialmente, para a antropologia, perceber também a lógica desse idioma eticorracial que está engendrando no cotidiano a construção desse mosaico. Afinal, como estamos produzindo e reconhecendo concreta e simbolicamente a idéia de um outro diverso ou de uma diversidade batendo à porta, qual o lugar desse processo no cotidiano vivido? É para vasculhar esse cotidiano que relato, a seguir, alguns fatos que inspiram essa reflexão e a escrita desse artigo.

O pente fora do lugar. Encontra-se na leitura de Auge (1994: 73-74) a idéia de não-lugar como a negação de espaços identitários, relacionais e históricos. Essa produção fruto do que o autor chama de "supermodernidade", caracteriza-se pelo fluxo intenso de indivíduos e informações em caráter circunstancial e provisório.

 



São assim, os aeroportos, acampamentos de refugiados, favelas, hotéis e clubes de lazer, apenas para citar alguns exemplos trazidos pelo autor. Nessa perspectiva, configura-se um mundo prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero.

Vê-se bem por "não-lugar" designamos duas realidades complementares, porém, distintas: espaços constituídos em relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços. Se as duas relações se correspondem de maneira bastante ampla e, em todo caso, oficialmente (os indivíduos viajam, compram, repousam), não se confundem, mesmo assim, pois os não-lugares medeiam todo um conjunto de relações consigo e com os outros que só diz respeito indiretamente a seus fins: assim como os lugares antropológicos criam um social orgânico, os não-lugares criam tensão solitária (Auge, 1994: 87).

Essa construção teórica trazida pelo autor jogou algumas luzes sobre aquilo que eu buscava entender nos fatos que se passaram, em um destes espaços tido como um não-lugar. O primeiro fato ocorreu, alguns anos atrás, em um aeroporto brasileiro, um destes lugares de trânsito e deslocamento contínuo no tempo e no espaço geográfico, mediado por objetos que refletem essa modernidade simbólica: cartões de crédito, bilhetes de embarque e documentos identificatórios do passageiro.

Lá estou, tentando embarcar para a capital do país, portando todos esses objetos e documentos de identificação, ou como cita Auge (1994: 93) sozinho, mas semelhante aos outros usuários do não-lugar em relação contratual. Levo bagagem com a etiqueta da companhia aérea, celular cuidadosamente desligado e carteira de identidade. Tudo no lugar, de acordo com essa idéia de um contrato que norteia a relação usuário-não lugar, assim eu acreditava. Exceto, por algo que eu viria a descobrir, ao passar pelo crivo do raios-

x no portão de embarque.



O meu pente de cabelo atraiu o olhar curioso do atendente, que assim perguntou: "O que é isso senhora?" Devolvi-lhe o olhar curioso e uma resposta simples: "È o meu pente." Os olhos claros do funcionário, voltaram-se para mim, assim como dos demais passageiros na fila , e outra pergunta veio: "Poderia dar uma olhada!?" E olhou atentamente para o pente com cabo de madeira e hastes de arame com pontas arredondadas: Um típico pente dos anos 70, dos não menos típicos cabelos "Black Power", hoje adjetivados de cabelos "afros" ou "rebeldes".

A despeito, de o meu pente estar um tanto fora de moda, e ainda poder ser confundido com uma arma letal ou "branca", fiquei a pensar, depois que eu e meu pente fomos liberados para embarcar, no quanto nenhum dos dois estava em seu lugar. Isto por que pessoas negras, ainda parecem ser indivíduos incomuns em aeroportos e, em plena era de cabelos crespos alisados ou relaxados, o meu pente deveria estar guardado juntamente com outro objeto de uso pessoal, nada moderno: um outro pente, também com cabo de madeira, mas com hastes de ferro, o qual alisou por gerações os cabelos das mulheres da família. Aquele pente, não se enquadrava como um objeto simbólico capaz de construir laços de reconhecimento identitário,

 



e ainda era destoante do universo de outros objetos (cartões, celulares, etc.;) usados por uma ampla maioria em sintonia contratual com os não-lugares da modernidade.

Por essa via, a diversidade cultural tomada no plano dos códigos que acionamos na interação cotidiana, encadeia-se na perspectiva de uma esperada homogeneização de comportamentos, estética e papéis sociais que nos definem perante o outro. Estar em descompasso com essa perspectiva, ainda que em alguns momentos, indica a possibilidade de cair-se no exotismo do inesperado. A acolhida a diversidade, precisaria assim estar normatizada e mediada por códigos comuns, para atender as expectativas dos encontros e desencontros entre os indivíduos.

Obviamente, que a realidade social não opera de forma tão esquemática e absoluta. Há margens de manobra, rupturas e continuidades que desafiam nossos olhares. Pois, se antes da descoberta do pente eu estava anônima, difusa na multidão, era porque estava compartilhando dos mesmos códigos que os demais usuários. Só deixei de fazê-lo quando o pente ou diria "etnopente", forçando um neologismo, revelou certa singularidade despercebida até então.

Só para constar, não me desfiz do pente no retorno da viagem. Ele continua à espera do próximo olhar atento em algum aeroporto. Também para constar, ou melhor, para expressar outras possibilidades de olhares, quando no percurso da volta enfrentei o raios-

x do portão de embarque do aeroporto de Brasília, nada aconteceu. Até o momento, não sei se por falta de um olhar disciplinado do funcionário ou se porque o seu cabelo crespo, algum dia já não usou um pente desses.



Identidade flutuante. Mais recentemente, em 2009, outra experiência cotidiana com a diversidade me fez retomar essas reflexões. Novamente, tudo começa em um aeroporto no Brasil. Se em meu país, sou negra, afro-brasileira, afrodescendente (apenas para pensar algumas terminologias) como essa identidade pode ser percebida em outros contextos latino-americanos?! Pois bem, durante uma viagem entre Brasil, Peru e Colômbia, foi possível, observar um câmbio identitário, um tanto flutuante, que mesclava marcadores da diferença como língua, nacionalidade e raça/cor.

Por conta disso, creio eu, fui percebida como afroamericana (no sentido estadunidense de pertencimento) por jovens aparentemente africanos –aqui os estou englobando na categoria "africanos" na ausência de identificação do país de procedência— na sala de embarque do aeroporto de São Paulo/Brasil, os quais me disseram "Do you speak english?" Já no aeroporto de Lima/Peru, ocorreu algo similar no tratamento lingüístico dispensado pela funcionária da companhia aérea, a qual solícita, me dirigiu um "Can I help you?".

Aqueles que mais se aproximaram da minha identidade à brasileira foram o pedinte negro que numa Rua de Bogotá dirigiu-me um "Por favor, negrita."; e um outro pedinte, esse um jovem branco, que ao ouvir de minha acompanhante Bogotana que eu não falava um espanhol fluente, disse-me em tom irritado um "Tchau Afro!".

E assim continuei trafegando por entre espaços públicos e privados, por entre olhares de reconhecimento e estranhamento. Durante minha participação em um

 



congresso convivi com outros viajantes, latino-americanos ou não, assim colecionei outros olhares sobre a minha identidade. Para uma socióloga boliviana foi uma surpresa saber que eu não era norte-americana; para um professor jamaicano, tanto eu quanto ele, somos bodies and minds in contemporany Caribbean and African diasporic spaces. Na continuidade dessa trajetória hable, por vezes um mal disfarçado portunhol por outras um elogiado espanhol para alguém que vem do único país latino-americano não hispano-falante. Descobri-me speaking english com receio e uma quase segurança quando percebia estar sendo entendida pelo meu interlocutor. Ao fim da viagem, considerei todo esse exercício lingüístico e/ou de diversidade como fontes primárias valiosas para pensar os processos cotidianos da interação social que deslocam sujeitos e códigos identitários na dinâmica das relações sociais.

O jogador de futebol brasileiro e a modelo alemã. Outra história de aeroporto —esse não-lugar ou talvez um entre lugares representativo das fronteiras reais ou simbólicas— que provoca um pensar sobre a diversidade cultural, especialmente como esta se processa em relação a identidades nacionais. Ao retornar de outra viagem, à semelhança das descrições de percursos de passageiros trazidas por Auge (1994), folheio de forma um tanto desinteressada, o jornal oferecido pela companhia aérea. Detenho-me em uma matéria jornalística sobre a última Copa do Mundo (2006).

No centro da página uma imagem de um sorridente Pelé com uma não menos sorridente, Claúdia Schiffer. Ambos saúdam seus fãs, enquanto erguem a taça símbolo do evento. Mas o que atrai mesmo minha atenção é a legenda da fotografia: "Tradição e Modernidade". Reflito sobre a construção midiática que associa as imagens dos indivíduos em questão com uma noção de tradição versus modernidade. Em que medida essa associação é ou não representativa de uma visão das identidades nacionais, brasileira e alemã, que eles representam? Em caso positivo, essa seria uma tradição inventada a La Hobsbawn, (1984) no sentido de estanque e invariável ou a La Giddens (2000) que afirma serem todas as tradições inventadas, além do próprio conceito de tradição como uma invenção recente da modernidade.

A idéia de tradição, portanto, é ela própria uma criação da modernidade. Isso não significa que não a deveríamos usar em relação a sociedades pré-modernas ou não ocidentais, mas implica que deveríamos abordar sua discussão com algum cuidado. Os pensadores do Iluminismo tentaram justificar seu interesse exclusivo pelo novo identificando a tradição com dogma e ignorância (Giddens, 2000).

Em busca de respostas observei trechos da reportagem. Encontrei informações que diziam que o evento não tinha um caráter político, mas festivo apenas. Além disso, haveria uma diversidade de apresentações culturais de vários países, culminando com o hino alemão e a apresentação de duas cantoras africanas do Mali. Ora, essa celebração da diversidade, pareceu-me resguardada pelos papéis pertinentes a cada

 



um dos atores, por uma velha fórmula de oposição binária: Pelé/cantoras do Mali = tradição / Claúdia Schiffer/hino alemão = modernidade.

Se a tradição, em última instância, é a reificação do passado e a modernidade o triunfo da razão sobre esse passado, então qual o lugar reservado ao Brasil, aos continentes africano, americano e europeu nesse processo da diversidade cultural? Seriam os quatro "T" que, segundo Pereira (1978) referendam o imaginário sobre o continente Africano: terreiro, tambor, tribo e Tarzan! E o Brasil? Talvez nos caiba não uma única letra inicial, mas algumas iniciais que descortinam nossa pseudo-diversidade: samba, futebol, praias e mulatas!

No cruzamento entre tradição e modernidade no que se refere ao legado histórico e cultural africano, talvez nos seja útil atentar para o que este mesmo autor indica como uma visão de mundo que sofre de um astigmatismo cultural, oriunda do colonialismo cultural que têm seu modus operante no europocentrismo das ciências humanas e nas distorções difundidas pelos meios de comunicação de massa. As imagens produzidas sobre a África e o Brasil, traficadas em tempos longínquos e exportadas em nossos dias, traduzem o limiar de uma tensão entre incorporar novas nuances e manter uma idéia de diversidade estereotipada.
Políticas Públicas e Quilombos


No inicio desse artigo me referi à dinâmica das relações etnicorraciais e do movimento negro, como parte da intrincada trama da diversidade cultural. Retomo agora esse ponto para ilustrar como isso pode ocorre em relação às comunidades negras no Brasil, nominadas como quilombos. Em 1988, a Constituição Federal, reconhece os direitos territoriais das comunidades negras brasileiras: "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos" (artigo 68, Constituição Federal, 1988).

Assim, se instaura o debate e embate entre legisladores, constituintes, antropólogos, historiadores e militantes sobre as controvérsias em torno da categoria quilombo como algo novo, surgido da efervescência do momento vivido no país. Momento este de pós-democratização com a retomada dos movimentos sociais na arena política, acirramento das demandas por cidadania e surgimento de novos sujeitos de direitos, no caso, as comunidades quilombolas, na legislação brasileira.

Nesse contexto desenvolvem-se os questionamentos teóricos e políticos sobre "O que são quilombos?" ou "Quem são os quilombolas?" No primeiro momento, houve uma tendência interpretativa associada a visão colonial Portuguesa do século

xviii, a qual entendia quilombos como toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles.106 / Boletín de



Essa visão remete-se ao contexto de oposição ao sistema escravocrata, pois entre os séculos

xvii e xix organizam-se em diferentes regiões do país, focos de resistência que reuniam populações escravas organizadas socialmente, sendo o Quilombo dos Palmares e seu líder Zumbi dos Palmares, uma marca histórica desse período. Também historicamente, articularam-se diversas noções construídas por olhares diversos, os quais podem ser analisados, segundo autores como Arruti (2003) e Gomes (1996) como dispostos em duas vertentes analíticas: A primeira de cunho "culturalista" tem presente à idéia de quilombos como "persistência da cultura africana", "recriação de Estados Africanos" e "reafirmação da cultura e do estilo de vida africanos" no Brasil.



A segunda vertente, de inspiração "materialista" enfatiza a resistência produzida na fuga e resistência ao trabalho escravo. Nessa linha materialista, conforme um dos representantes máximos, o historiador Clóvis Moura (1925-2003) a pretensão é "restaurar a verdade histórica e social desfigurada por inúmeros estudiosos". Permeando essa interpretação, além da idéia da resistência, está o aquilombamento como representativo da não passividade diante do sistema escravista. Esses pressupostos da resistência estarão na análise de Arruti (2003: 12-13) que, também, enfatiza a dimensão da cultura, enquanto uma possibilidade de "continuidade com a África" e da política, expressa pelo foco nas "relações de poder" e "difusão do arcabouço marxista na historiografia e nas ciências sociais", acrescentando ainda a dimensão da resistência racial, trazida pelo movimento social negro.

Inicialmente, tanto os campos políticos quanto acadêmicos dialogam com os desdobramentos dessas vertentes interpretativas. No entanto, a inconsistência e limites contidos nessas apreensões do social levam a ressignificação e ampliação do conceito. A inconsistência e limites surgem quando, na contemporaneidade, estudos sócio-antropológicos derivados do diálogo entre Academia, Estado, Movimento Social Negro e Comunidades Quilombolas vão revelar formas variadas de organizações desses territórios negros, as quais não se restringem a fuga de escravos como principio motivador da organização desses grupos sociais.

Verifica-se que para além da fuga, ocorreram doações de terras feitas por senhores de escravos, ocupação de terras por famílias de ex-escravos e mesmo situações de compra da terra, viabilizadas via pagamento com o trabalho braçal, serviço militar em guerras ou obtenção de recursos via associações de ajuda mútua, conhecidas como Irmandades de caráter religioso e político.

Outro dado são as denominações e abrangências dadas a esses territórios, as quais nem sempre vão se utilizar da denominação de Quilombo. Assim teremos "terras de preto", "terreiros de santo", "lugar de negros fugidos" e outras formas variadas evocadas por seus membros. A realidade social, também trará outras implicações relativas ao contexto de "surgimento" dos quilombos, pensados inicialmente como restritos ao meio rural, mas também presentes no meio urbano. Atrelada a essa lógica do rural, também está a dimensão quantitativa de comunidades quilombolas existente

 



no país. Inicialmente as projeções oficiais apontavam para não mais do que uma centena de comunidades em todo o território nacional, atualmente há indicativos de mais de três mil comunidades espalhadas no Brasil.

 



Esses elementos, contrários a uma lógica reducionista de quilombo, fazem-se presentes na análise proposta por Arruti (1997) de trazer para a centralidade da categoria quilombos uma visão de "criações sociais de campos diversos do conhecimento humano, especialmente a sociologia e o direito, bem como a vontade política e desejos dos agentes envolvidos", enfatizando assim a lógica processual, bem como o protagonismo dos sujeitos no processo de interação (Arruti, 1997: 7).

Essa centralidade no protagonismo e ênfase na lógica processual pontuam texto elucidativo proposto pela ABA – Associação Brasileira de Antropologia, a qual em 1994, assim entende a questão quilombola: "Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar" (Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais).

Passados dezesseis anos dessa interpretação, entende-se que a identidade das comunidades quilombolas oscila entre uma interpretação exótica, povoada pelo imaginário do senso comum e outra interpretação, a partir da ótica da cidadania, em que como nos diz Leite (1996: 10), ressalta "a identidade política inserida no conjunto dos anseios por mudanças de parte da sociedade brasileira". Essa dimensão da cidadania é a base para entendermos o porquê da relevância dos pleitos demandados pelas comunidades quilombolas na busca pelo acesso às políticas públicas de promoção da igualdade racial. A seguir, trago o caso do Quilombo da Anastácia e sua inserção na ótica de uma política pública pautada pela diversidade cultural.
Quilombo da Anastácia


Entre os anos de 2001 e 2005 realizei pesquisa de campo com uma comunidade negra rural, denominada "Quilombo da Anastácia", no sul do Brasil. Meu objetivo inicial de pesquisa foram as conexões entre pertencimento etnicorracial e condições sociais de vulnerabilidade. Para isso, me detive na historicidade desse grupo familiar, enquanto trabalhadores rurais negros.

Porém, aos poucos foi se revelando outra questão: a territorialidade. Através dos dados coletados em campo, emerge uma trajetória de luta por direitos territoriais, ou





como eles diziam "a luta pelas terras perdidas", Rodrigues (2006). Essa luta tem inicio em 1919 quando Anastácia (1896-1983), filha e neta de escravos, recebem por herança familiar, um "pedaço de campo e uma casa de moradia encravada nessas terras, conforme consta em registro cartorial da época. Nesse pedaço de chão Anastácia se casa, em 1928, dando origem aos oito filhos do casal. A família sobrevive da criação de gado, agricultura e como trabalhadores nas fazendas de arroz, bastante comuns na região. Na década de cinqüenta, Anastácia fica viúva e as terras tornam-se objeto de conflito com patrões e também vizinhos, os chamados "gringos" (denominação nativa para os descendentes de alemães e portugueses) da região.




Esses conflitos forma motivados pela recusa em vender as terras. Mas, isso não impediu a perda gradativa, decorrente de situações diversas. Por exemplo, uso da terra como pagamento de dívidas; avanço indevido dos vizinhos dentro dos limites territoriais da família, ações judiciais não resolvidas; além de ocupação e construção de casas no local por pessoas não pertencentes ao grupo familiar. Ao longo dos anos a situação agrava-se com a saída dos mais jovens, em busca de melhores condições de vida e trabalho nas cidades vizinhas. Ficam apenas os "troncos velhos", os filhos primogênitos de Anastácia.

Quando os conheci formavam um grupo de seis idosos, acima de sessenta anos, moradores do local. No entanto, a mobilização pela recuperação das "terras perdidas" partiu dos netos e bisnetos de Anastácia, já não residentes no local, mas que manifestavam desejos de retorno ao território. Assim, teve inicio uma articulação entre a memória familiar, centrada em Anastácia, e a luta quilombola contemporânea. O grupo iniciou um processo de apropriação da legislação vigente para o reconhecimento de direitos territoriais e culturais para quilombos no Brasil. Um desses instrumentos foi o artigo 215 da Constituição Federal sobre diversidade e patrimônio cultural:
 



A norma legal trouxe para o órgão responsável pelo tombamento histórico, no caso o IPHAN —Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional—, a necessidade de re-avaliar o método de trabalho, pois até então no processo de tombamento cabia-lhe, apesar de trabalhar com os valores imateriais, tombar os chamados bens materiais. Além disso, era da competência do órgão definir se os bens encontrados eram ou não representativos para a memória nacional.

No caso dos quilombos o IPHAN já havia tombado o secular Quilombo dos Palmares na Serra da Barriga em 1986, mas com a constituição de 1988, tornou-se

 



necessário aplicar esse dispositivo em uma ressignificação da idéia de quilombo, a qual já não se limita a uma visão clássica ou período cronológico determinado. Trata-se agora de transcender a noção de "bens materiais" (documentos e sítios) para "bens imateriais" (as comunidades, a memória), além de outras implicações de cunho conceitual, político e normativo, tal como nos coloca Castro (2006).

Em tese, não há mais a opção de escolha do que tombar e como tombar, há apenas o trabalho de reconhecimento da característica de ser ou não quilombo. Considerando que muitas das comunidades quilombolas —onde pode haver vestígios materiais dos antigos quilombos— são carentes de recursos, vivendo em condições precárias, como conciliar a responsabilidade criada pela lei de tombamento, da preservação das coisas tal como elas são com a melhoria da qualidade de vida dessas mesmas comunidades? Como fica a questão da propriedade da terra pública tombada, inalienável nos termos do Decreto-Lei 25/37, tendo em vista a obrigação constitucional de se dar a posse da terra às comunidades remanescentes de quilombos? Como tratar a questão das comunidades —entidades vivas, móveis, que estão permanentemente produzindo objetos e outros elementos da cultura material—, levando em conta as limitações da lei, que trabalha apenas com a preservação de um dado momento, o da inscrição do bem nos livros do tombo?

Pois bem, se a idéia de tombamento traz inúmeras interpretações e implicações para quem vai aplicar imaginem para quem será alvo dessa ação. Esse foi o caso do Quilombo da Anastácia, uma comunidade que vivenciou a luta política pelo reconhecimento, bem como os dilemas que se interpõem na apropriação e ressignificação dos signos que demarcam suas fronteiras étnicas e culturais.

Um destes símbolos é a casa onde viveu a ancestral-fundadora do grupo, Anastácia, e onde as gerações de seus filhos (as), netos (as) e bisnetos (as) nasceram e foram criados. A velha casa que segundo depoimentos dos familiares seria do "tempo dos escravos", é uma construção antiga de tijolos maciços e barro, com sua estrutura parcialmente comprometida pela ação do tempo e ocupação pelos "de fora", pessoas não pertencentes à família, mas que via laços de amizade e ajuda material, convivem naquele território com utilização da casa da Anastácia para fins de acampamento e guarda de materiais de caça e pesca.

Enquanto uma referência material da trajetória do grupo familiar naquele território, a casa também guardava uma referência imaterial, que se refletia na memória do grupo em relação aos acontecimentos fundantes das relações de parentesco e alianças que tiveram aquela casa como o seu lugar de referência, um lugar identitário, relacional e histórico nas palavras de Auge (1994: 74) em que se dá o jogo embaralhado da identidade e da relação.

Ali ocorreram a maioria dos nascimentos das crianças da família, muitos deles tendo a própria Anastácia como parteira. Dentro da casa, cortaram-se umbigos que permanecem sob a guarda daqueles que os parentes mais jovens chamam de troncos velhos, a geração dos filhos da Anastácia. Também, naquela casa realizavam-se os

 



bailes de preto, os quais constituíam um espaço de sociabilidade endógeno partilhado com outros grupos familiares negros. Naquele tempo era baile de nego não de branco. Branco não! Branco só tocador [músico]. Aquela época não entrava nego no baile do branco, nem branco no baile de nego (Dª Cida, 69 anos).

Nesse espaço, compreendido na percepção de D’Adesky (2001: 54) como uma rede relacional com representações coletivas que o caracterizam e atribuem-lhe significados e reconhecimento, construíram-se características próprias orientadas pelo pertencimento identitário e singular. Esse é o quadro situacional que se apresenta no momento em que se questiona como preservar a casa da vó Anastácia.

O ponto de tensionamento é que enquanto os parentes, a geração mais nova, entendia que o uso indiscriminado era responsável pela situação precária —paredes queimadas pela ação do uso de fogão e parcial desabamento do teto— os troncos velhos entendiam que se não fosse as reformas promovidas pelos "de fora" a casa já teria desaparecido.

A solução primeira foi de tentar chamar o que estava sendo entendido como as "autoridades competentes" sobre o patrimônio, mas discussões apontavam para que o próprio grupo encontrasse a melhor solução, diante das alternativas possíveis. A primeira alternativa surgida foi encaminhar um pedido de tombamento da casa ao IPHAN, porém isso gerou um novo impasse. A noção de "tombar" foi associada ao ato de derrubar, gerando uma confusão entre os termos e na demora com as explicações. Além disso, questionava-se sobre quem seria o dono da casa, a família ou o governo?

Pode-se pensar que essa casa deixaria de ser o lugar da memora social do grupo, da sua identidade para converter-se em um não-lugar, ocupado por uma entidade abstrata: o governo. Percebe-se ainda, nas falas nativas sobre Anastácia e aquela casa, que há uma ligação intrínseca expressa na vontade que o prédio que irá abrigar a futura sede da associação comunitária

 seja construído próximo à "casa da vó" ou então que ali é como "uma capelinha".3 Assim, mesclam-se noções da organização social com o sagrado, evidenciando o caráter diverso que engendra uma configuração de valor material/imaterial, diversidade cultural e simbolismo político.



Infelizmente, partes da casa desabaram e o impasse da definição do modo de preservação não foi superado. Buscou-se sem sucesso, alternativa que não fosse o tombamento formal via ação estatal, através da obtenção de recursos materiais e humanos oriundos de parceria com o poder público ou a iniciativa privada, que lhes garantisse a autonomia e ingerência sobre a casa da vó Anastácia. O caso exemplifica como um objeto simbólico, com tantos sentidos, acaba no centro das atuações, revelando as diferentes apreensões sobre o seu "devido lugar" como símbolo de uma coletividade. Ainda, sobre a noção do "devido lugar" e de "diversidade cultural",

 

cumpre relatar outro fato que se deu com a comunidade Quilombo da Anastácia. Por ocasião da elaboração do desenho da planta da futura sede da associação comunitária, buscaram os serviços de uma profissional (arquiteta), em caráter voluntário, que se encarregou de fazer um modelo para a sede da associação comunitária.



E qual não foi a surpresa, não muito agradável ao grupo, de verificar que o desenho apresentado era o de uma senzala

 ampliada, algo bem original e condizente com uma idéia de quilombo, segundo lhes foi dito. Obviamente, que o grupo não se via de forma tão original e a proposta do desenho foi rejeitada. Isso expressa a difícil transposição dos limites entre o estereótipo e o deflagrar de processos que superam a lógica de traços culturais imutáveis que podem conduzir a certo exotismo e folclorização.



A superação dessa lógica traz a percepção social do potencial político do reconhecimento da diversidade cultural, a qual é operacionalizada hoje em relação aos direitos sobre o patrimônio cultural material e imaterial que as comunidades quilombolas detêm, por isso, segundo Bandeira (1988: 23), vamos encontrar análises antropológicas sobre os conteúdos culturais das comunidades como fatores "definidores de uma identidade étnica que cimenta a coesão interna e os suportes da resistência externa".

 Esse é o desafio que está posto na conjuntura atual que nos reúne em torno dos "velhos" e "novos" debates da antropologia, atualizados constantemente pelo cotidiano vivido.


Considerações finais


Ao longo desse artigo buscou-se estabelecer alguns vínculos entre os debates contemporâneos sobre diversidade cultural, a partir dos lugares em que estes estão se construindo. Desde um nível macro protagonizado por elementos norteadores de acordos internacionais entre países e a multiplicação desses elementos nas políticas públicas direcionadas aos grupos locais. Para não ficar somente no nível macro e não esquecendo a complementaridade e interconectividade com o nível micro foi fundamental para a proposta de perceber algumas nuances que a noção de diversidade cultural pode tomar, ao agregar-se a dimensão etnicorracial nos processos interacionais do cotidiano como um dos elementos incluso nos debates antropológicos contemporâneos, bem como na arena política local e global.

 




A opção por evocar notas etnográficas, extraídas do cotidiano vivido pela autora não só dizem do lugar de onde se fala, bem como expressam o método por excelência que molda o fazer antropológico, ou seja, a imersão, o estranhamento do familiar com o conseqüente perceber-se nesse intrincado jogo de relações que se dão no campo. Ao trilhar esse caminho busquei dialogar com outras noções que embasam a diversidade, como os processos identitários que conformam estatutos aos indivíduos, seja ele um quilombola ou uma antropóloga. Em escala maior pensar os contextos onde estes indivíduos estão inseridos e onde suas identidades estão em jogo e em trânsito contínuo.

Foi pensando nessa dinâmica identitária que evoquei o caso do Quilombo Anastácia. Ao longo da pesquisa, junto ao grupo, foi possível elaborar algumas hipóteses sobre o processo de construção de uma identidade quilombola, a partir da ótica da diversidade cultural. A primeira hipótese, diz respeito aos diferentes significados atribuído à idéia de diversidade cultural pelos sujeitos envolvidos. Ela pode aparecer como uma essência que deve corresponder a um elemento histórico de um passado reificado, como exemplifica a relação senzala-associação comunitária. Por conta disso, "ser quilombola" significa atender às expectativas de uma identidade datada no tempo e espaço. Uma boa representação disso está no termo "remanescente de quilombos", o qual foi a categoria inicial em que as comunidades quilombolas eram situadas no discurso oficial. Ou seja, eram evidências, restos de uma cultura "autêntica" presos a uma idéia restrita de diversidade cultural.

Uma segunda hipótese atribui à diversidade cultural, um status legitimador da identidade quilombola. Assim, é preciso, de alguma forma, reter o símbolo maior dessa diversidade, como ocorreu com a questão do tombamento da casa da Anastácia. Nessa linha interpretativa, os processos de reconhecimento do patrimônio cultural das comunidades quilombolas, poderiam atuar como um selo, um certificado de validade do "ser quilombola".

Em decorrência desse status legitimador, quando a diversidade cultural torna-se uma política de Estado, por exemplo, através do reconhecimento do patrimônio material e imaterial das comunidades quilombolas, passamos a falar de uma política cultural. Desse modo, atende a uma parcela das demandas por garantias de direitos dessas comunidades. Assim o digo, pois promove valorização e preservação de um possível legado cultural, algo que pode vir a fortalecer laços internos e criar laços de apoio externos. Por outro lado, converte-se no caminho político de mais fácil trânsito para o poder público, pois é um modelo de política que não encontra grandes resistências por parte daqueles setores da sociedade, e por vezes do próprio governo, que se opõem a determinados avanços e conquistas da luta quilombola.

Enquanto os territórios e, por conseguinte as políticas de reconhecimento de direitos territoriais são alvo, constantes de oposição política e econômica, as políticas públicas culturais são saudadas como o porto seguro da atuação governamental. Isto porque não implicam num orçamento de grande porte; não contrariam interesses

 
 



seculares; não afetam, na sua maioria, setores privilegiados da sociedade; refletem modelos harmônicos do trato com a alteridade, enfim são "politicamente corretas".

Esse é o tom celebrativo da diversidade cultural e de uma idéia de multiculturalismo inofensivo ao status quo. Essa me parece ser a grande armadilha em que grupos sociais, especialmente aqueles que sempre foram alocados no espaço da diferença que inferioriza, ou seja, populações negras e indígenas, pode incorrer quando apostam todas as fichas nas políticas culturais. É óbvio, que não se quer abrir mão de políticas culturais, negar sua importância ou desvincular identidade-território-cultura do conjunto de demandas, mas atentar para o peso e alcance que cada uma apresenta no cenário político.

Esses três elementos, identidade-cultura-território, requerem essa atenção por estarem dentro de uma lógica que sempre os permeou, as relações etnicorraciais. Seja na interação cotidiana entre os sujeitos ou na relação formalista com o Estado, não é possível ignorar as implicações inerentes. Afinal, não se está falando de qualquer identidade, cultura ou território, mas sim de categorias sociais que balizaram formações históricas, identidades nacionais, e lugares sociais. Além, de estarem intimamente ligadas com pontos nevrálgicos de desigualdades e opressões históricas em praticamente todo o contexto latino-americano.

Por tudo isso, busca-se o contraponto que insere tais categorias nas demandas por cidadania, justiça social e políticas de promoção da igualdade racial, como dizemos no Brasil ou Afro-reparaciones como dito na Colômbia.
Referências bibliográficas
Arruti,

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