terça-feira, 23 de julho de 2013

O Sorgo Vermelho


O Sorgo Vermelho         

Blog de pensandocinema :Pensando Cinema, O Sorgo Vermelho
Passado na década de 30, numa província rural perto de Shandong, com um vermelho de dar inveja e paisagens das mais belas já captadas para o cinema, O Sorgo Vermelho é uma obra de arte ao mesmo tempo sobre os abusos sofridos pelos chineses durante a invasão japonesa, ao mesmo tempo sobre a posição da mulher numa sociedade fechada. Prometida a um homem velho e leproso, o destino dessa mulher parece condenado ao enfado, a desgraça e ao meio de vida inimaginável mediante essas imposições. Vendida como mercadoria, seu rosto parece não se mover enquanto é transportada por homens, todos cantando alegremente; ao pararem de cantar, é possível ouvir o choro da garota e, de repente, todos esses homens tendem a se comover. Durante seus 95 minutos de duração, o filme de Zhang Yimou constrói a idéia de que não é difícil invadir esse mundo masculino, em que nem todos os homens são brutamontes e briguentos; o difícil é se manter no limite da aceitação e da bondade, isso simplesmente por ser uma mulher.
Todas as cenas com a presença da jovem e ainda mágica Gong Li, com um sorriso capaz de conquistar qualquer um, reforça a fonte de construção do roteiro, de que todos os conflitos provem da convivência e muitos podem ser resolvidos de acordo com os códigos da época. Seu sorriso e maneira alegre, assim, inserem-se como a mais bela composição da fita, extraindo do simples conformismo um modo de viver e de driblar as más casualidades com a ajuda do tempo. As mulheres, nesse determinado momento da história, não tinham muitas maneiras de reclamar sobre seus dotes, sobre suas condições. Passavam, como mostra a personagem de Li, Jiu’er, a maior parte de suas vidas inseridas no cotidiano masculino da produção rural, contribuindo também com os serviços braçais e com a confecção de produtos para venda e subsistência. Apesar de se sentir presa, primeiramente condenada a viver com um homem doente e no fim da vida, ela não perde as esperanças e começa a ver melhores possibilidades quando seu marido morre. Seus olhos continuam a assistir as mudanças, ora assustados, ora delineando a passagem de um outro homem pela tela, um grande camponês que, mais à frente, deita-se com ela na plantação de sorgos e torna-se pai de seu filho. Cada parte trágica ou alegre de O Sorgo Vermelho é assistida por Jiu’er, doando algo parecido com o olhar de uma criança para com algumas de suas primeiras experiências importantes em vida. Durante todo o resto, o filme mudará a cada instante, tendo interferências no âmbito histórico e político – a invasão japonesa – e da luta para produzir vinho e tornar o vilarejo um grande produtor da bebida.
Todas as imagens do filme parecem assumir alguns significados. A câmera de Yimou movimenta-se para cima da cabeça de seus personagens, mostra uma ampla paisagem rural e evoca um show de imagens poucas vezes visto no cinema. O vermelho, obviamente, tem presença marcante e, em determinado momento, o sangue, o vinho e a cor do céu misturam-se para compor a tragédia final. Mesclando falsas esperanças à vida cotidiana simples, há mais aceitação, no canto do filho, desesperado para que ocorra a impossível volta da mãe, e no olhar do pai, impassível, contra a paisagem. Os conflitos, nesse pequeno vilarejo, assumem proporções inimagináveis quando esse pequeno mundo de atrocidades é passado ao primeiro plano, e as pessoas envolvidas constroem seus olhares segundo a ótica da guerra, desumana e a qual não estavam habituadas. Os pequenos problemas de lutas entre vilarejos transformam-se em problemas de luta entre nações, e Yimou trabalha com tais mudanças com extrema flexibilidade. Algumas seqüências surgem um pouco longas, outras assumem um formato menor, enquanto nada é subtraído.
Jiu’er vive em um mundo de homens pacatos, às vezes soberbos e confiantes demais. Tem pulso para controlar esses brucutus, sem que tenha que apelar para a força de suas palavras, talvez inexistentes. Quando declara vingança aos japoneses, na reta final da história, é possível ver outra mulher, longe daquele instinto de insegurança mostrado nas primeiras imagens. Sua vida foi lançada ao confinamento em uma paisagem rural e esquecida; as plantações, sofrendo com os golpes de vento, assemelham-se em beleza as de Cinzas no Paraíso e dão contorno ao drama enquanto tudo é ali centrado e construído. Da morte de um bandido armado à colisão final, o filme divide-se entre a natureza como pano de fundo para a brutalidade e como uma esperança para a China que dali irá se reerguer. E as ultimas imagens podem confirma isso.
O Sorgo Vermelhonão é um filme oriental trágico sobre lendas, como o japonês Contos da Lua Vaga, mas é um filme sobre situações reais, pessoas simples, esquecidas do mundo e um tanto isoladas em uma vasta paisagem que mistura campos verde e muita areia. O narrador diz ser neto da personagem principal, e, quando começa a contar sua história, o rosto de Li assume um espaço dentre a escuridão. Essa primeira imagem é uma das várias belas do filme. Depois, a situação da garota embarca nas metamorfoses do filme, do encontro com o amor à realidade dos conflitos territoriais. Em nenhum momento ela parece completamente abalada, como se fosse – e soubesse disso – uma prisioneira previamente condenada. Nas cenas de tortura dos japoneses, sua atitude é tampar os olhos do filho, para que este não veja o que todas as pessoas do vilarejo estão assistindo. E a pior das coisas vem a acontecer quando passeia pelos campos carregando alimentos junto de uma mulher. Seu filho grita pela mãe enquanto soa a rajada da metralhadora; ao mesmo tempo, chineses da resistência saem das matas portando a única arma que dispõem –recipientes cheios de vinho quente feitos com o sorgo, fazendo de seu principal produto uma arma eficaz contra o inimigo. A câmera percorre os corpos ao chão, alguns parcialmente soterrados, e o vermelho, mais uma vez, compõe a paisagem visual. Fotografado por Changwei Gu, o filme de Yimou é uma das estréias mais bem sucedidas de um diretor oriental– tratando-se de imagens, pouquíssimos filmes da década de 80 conseguem se aproximar dele.
Cada pequeno detalhe parece ter um significado especial. Ao tocar o pé de Jiu’er, seu futuro marido (Wen Jiang) mostra um pequeno sinal de afeto, o primeiro. Depois, ao se passar por ladrão, consegue finalmente deitar-se com sua futura esposa. Como várias situações do filme, o caso amoroso tem inicio nos campos de plantação. Essa paisagem nasce como um dos emblemas aqui mostrados, assim como a presença da figura feminina ao centro dos problemas, tendo de fazer escolhas cruciais à vida dos demais membros do vilarejo. Como em Lanternas Vermelhas, outra obra-prima de Yimou, a mulher sai de um mundo fechado – ou convida o espectador para entrar nele – na condição de protagonista, e não mais a coadjuvante de um mundo machista e retrógrado. Deve, mais cedo ou mais tarde, questionar a si própria sobre a liberdade e os agravantes pagos a partir dessa escolha. Viver segunda as regras dessa sociedade condiz com o rosto de Li –esse rosto no encalço do espectador –, de seu sorriso a sua tristeza, seu modo de enxergar as crueldades de sua China sem perder a graça. Escolhe viver afogada nessas regras, nos comentários alheios, e em suas mentiras – muito convincentes – teria ido para a cama com um homem leproso, o mesmo que a comprou. Somente a breve história do narrador, as primeiras citações do filme, faz embarcar na grande injustiça reproduzida por esta história, baseada na obra de Yan Mo. As pessoas, como sugere o filme, estão condicionadas a seu meio e, praticamente, conseguem prever o sofrimento, sendo impossível fugir. Foi assim em outras grandes obras do cinema oriental, como Contos de Tóquio, outro japonês, e em vários outros filmes de Yimou. Esses personagens dão uma aula de como viver inseridos nessa condição – ou escolhem esse meio ou esperam pelo fim. Faz parte da evolução humana.

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