Na época em que os africanos
eram trazidos para o Brasil, como escravos, o continente africano apresentava
uma divisão diferente da atual. Vindos em grupos, fazia-se reconhecer pelo traço
cultural representado. De acordo com estudos apresentados por Sérgio Buarque de
Holanda, sobressaíram dois grupos: bantos e sudaneses. Os bantos ou bântu era um
grupo lingüístico que falava por milhões de africanos, dividindo-se em inúmeras
línguas, em torno de 300 dialetos. Habitavam quase 2/3 da África Negra, desde o
Camerum até o Sul, incluindo Angola e Congo de onde vieram a maioria dos
escravos. Desse grupo e cujas línguas, Kimbundo e Kikongo, entre outras, são as
que mais termos deixaram em nossa linguagem. Classificam-se ainda como bantos,
os negros de Moçambique e colônias portuguesas da época. Os sudaneses, são povos
que habitavam a região entre o deserto do Saara e o Atlântico (Golfo da Guiné),
a chamada África Intertropical. Hoje corresponde aos países: Tchad, Niger,
Sudão, entre outros. Os da Costa do Golfo: Nigéria, Benin (antigo Daomé), Togo,
Gana (antiga Costa do Ouro), Costa do Marfim, estendendo-se até a Libéria, Serra
Leoa, Guiné Bissau e Senegal. Esse grupo divide-se em dois (02), que muito
contribuiu para a formação da cultura brasileira: os iorubás e os hauçás. Os
iorubás eram povos sudaneses, habitantes da região de Iorubá (Nigéria - África
Ocidental), se estendia de Lagos para o Norte, até o rio Niger (Oya) e algumas
cidades de Benin e Togo. Na Bahia foram conhecidos também como Nagôs, dominando
social e religiosamente seus irmãos vindos de outras nações. Sua língua foi a
mais falada, abafando os demais dialetos. Iorubá tinha como capital política
"Oya" e a religiosa "Ifé", onde a humanidade foi criada, segundo os mitos. Os
hauças, habitavam o norte da Nigéria, parte da República do Níger e em certas
comunidades da África do Norte, Oeste e Equatorial. O dialeto "Kano" (da cidade
de Kano que dizem ter mil anos) é aceito como padrão. Foi falada no Brasil,
conhecidos também como malês ou muçulmis (refere-se a religião dos muçulmanos ou
maometanos). Sua influência pode ser notada nos trajes e amuletos dos cultos
afro-brasileiros, como lembra o professor Saul Martins. Também não se pode
esquecer de que certos elementos desse grupo lideram vários movimentos de
rebeldia, como a "Revolta dos Malês". A esse sub-grupo, o estudioso Arthur
Ramos, denominou-se de guineano-sudaneses islamizados, ou negro-maometanos. O
mapa apresentado é antigo e mostra as regiões de onde os negros vieram, e suas
entradas no território brasileiro. |
O desrespeito aos negros começa em sua própria casa, ao
serem iludidos com propostas fantasiosas ou capturados de maneira desabusada, na
África. Já nos porões dos navios negreiros, podiam sentir o que os esperava no
Novo Mundo, no caso o Brasil. Durante a travessia do Atlântico, recebiam
tratamento de animais: acorrentados, presos dois a dois, pelo pescoço, como bois
na canga; alimentação precária, marcados a ferro para identificação. A morte
era-lhes o único alívio. Ora provocada pelo banzo (estado emocional melancólico)
ou pelo suicídio, atirando-se ao mar. No final da viagem, a "carga humana",
bastante reduzida pelo número de mortos, era comercializada pelos traficantes.
Trazidos com exclusividade para serem explorados como mão-de-obra escrava, aos
poucos iam substituindo o indígena, considerado pelos portugueses elemento não
apto para certos tipos de trabalhos. Existem teorias que levam a acreditar
que o índio brasileiro veio de outras regiões do mundo, bem antes de 1500. Pela
lógica, não seria ele o descobridor das terras? A exemplo do índio, o negro,
como influenciador da construção econômica do Brasil (pioneiro na derrubada do
pau-brasil; movedor da terra, plantando cana-de-açúcar, cultivando o café,
explorando as minas de ouro, criando condições para Portugal explorar as
riquezas e pagar suas dívidas à Inglaterra; participando ativamente nas guerras,
defendendo nossos interesses; contribuindo de um modo geral para a formação
cultural brasileira) não seria também merecedor de uma fatia do bolo? São duas
raças, integrantes do processo de construção do país, que sempre foram
consideradas inferiores e vivem marginalizadas. É justo que assim seja? Em
troca do trabalho prestado a esta terra, o negro vem recebendo o mínimo da
classe dominante: recebe salários inferiores aos do branco; é discriminado na
escola, no trabalho e em ambientes sociais. Você já viu como a propaganda, na
maioria das vezes, relaciona o negro com o trabalho mais rude? Se ele aparece em
um comercial de tevê, é na cozinha, no tanque, na favela ou pedindo esmola. Isto
é comum nas publicidades do governo, em campanha para o "bem-estar social". As
dificuldades enfrentadas pelo negro brasileiro são puro reflexo de seu passado,
quando lhe foi negada a escolha de vida. Trabalhando em condições subumanas e
sem receber pelo seu trabalho, ele não teve e não poderia ter outro destino
senão o de ter um comportamento diferente na sociedade. Enquanto o branco
prosperava economicamente, à custa do trabalho escravo, o negro entendia apenas
o que era receber ordens, enfrentando a dor e a humilhação de um chicote. A sua
libertação não lhe devolveu a dignidade, não ofereceu condições para um novo
estilo de vida que ele passou a enfrentar, após a abolição. Como escolher um
caminho, se não lhe deram condições? É como um pássaro que viveu numa gaiola por
algum tempo. Livre, ele não saberá voar e fatalmente
morrerá. |
Na opinião do antropólogo Manuel
Diégues Júnior, em "Etnias e Culturas do Brasil", não se pode dizer que a
formação da cultura brasileira teve a participação pura do negro africano: "Quem
passou a participar da formação brasileira não foi puramente o negro da África,
mas o negro escravo". A descaracterização começa nos embarques nos portos
africanos, na divisão dos grupos ou tribos, agravando-se mais com o desembarque
no Brasil, quando famílias inteiras eram vendidas separadamente em atendimento
ao pedido dos compradores, que procuravam, com isso, evitar o fortalecimento da
rebelião em grupo. Com a convivência diária, os negros de regiões diferentes
assimilavam certos elementos culturais e perdiam outros, sem se considerar a
colaboração do branco em forçá-los a assimilar novos hábitos, deturpando sua
cultura. Dessa mistura de costumes, surge o sincretismo e outros processos de
vida. Por essa e outras razões o brasileiro foi tolhido de adquirir uma cultura
genuinamente africana. Para o professor universitário de Maceió, coordenador do
núcleo de Cultura da cidade - União dos Palmares (terra de Zumbi) - Zezito do
Araújo, é na escola que se deve começar a conscientizar as crianças sobre o
problema do racismo na nossa cultura. Com uma certa preocupação ele afirma: "As
escolas de primeiro e segundo graus no Brasil são racistas. Elas menosprezam a
contribuição negra na formação da cultura brasileira. Vemos como o aluno e o
professor negros são vistos pelos colegas. Quando um negro tem um comportamento
igual ao do branco ou ocupa lugar de destaque, é visto como um safado". Zezito
cita um exemplo sentido na própria pelo:
"Quando eu era chamado para
fazer trabalhos em grupos na escola, me davam as tarefas mais
humildes".
A cultura negra é vista como
fonte de divisas para o país. O carnaval, o samba, as mulatas, as festas
religiosas com manifestações folclóricas e até os jogadores de futebol negros
servem de cartão postal para promoverem o turismo no exterior. Se aqui sua
posição é inferiorizada, lá fora, o valor é notado, como pude atestar em
conversa com o ex-Ministro do Planejamento de Angola, Jofre Rocha: "Preservar e
cultivar a cultura negra no Brasil é passo importantíssimo para os estudiosos
africanos, para que juntos, africanos e brasileiros, possam reconstituir a
cultura dessas duas regiões. Além do fato de ser o Brasil o reconstrutor do
flagelo que derramou o sangue africano...".
Não se sabe precisamente o
número de escravos trazidos para o Brasil. Alguns escritores estimam em dezoito
milhões, enquando outros baixam para três milhões. A data de chegada dos
primeiros escravos também não é muito precisa, possivelmente entre 1516 e 1526,
época das instalações dos engenhos. A princípio, as regiões receptoras de
escravos foram a Bahia e Pernambuco, (local de plantações de cana-de-açúcar e
lavoura de algodão). Da Bahia, os africanos eram levados para Sergipe; de
Pernambuco, para Paraíba e Alagoas. Do Maranhão se espalhavam pelo Pará. Com a
exploração da mineração, Minas Gerais atraiu a mão-de-obra escrava. Devido à
expansão agrícola da cana-de-açúcar e do café, são requisitados para trabalhar
nas terras fluminenses (hoje, Rio de Janeiro), abrangendo os cafezais paulistas.
Com a queda dos engenhos nordestinos, muitos escravos foram vendidos para o Sul
do País. A partir daí, de fazenda em fazenda, do trabalho na exploração das
minas do Centro-Oeste ou em serviço doméstico aqui, ali, o negro foi-se
espalhando e marcando sua presença em todo o País. A compra do escravo podia ser
feita no local de desembarque como se fosse mercadoria. Eram eles escolhidos
pelos dentes e pelo físico. Os jornais também eram utilizados, com anúncios de
compra e venda de escravos, como registra o jornal "Diário de Pernambuco", do
dia quatro de maio de 1835: "Vende-se ou troca-se negra muito boa lavadeira e
vendedeira de rua, por uma que engoma e coza". A troca por animais ou objetos
domésticos fazia-se bastante comum: "... uma negra que saiba cozinhar e
engomar ou um escravo que sirva de pajem, por uma canoa grande de carregar 1500
tijolos..."
O Nordeste, como porta de
entrada do africano, tem em sua população o maior número de descendentes negros.
Na Bahia, 80% e no Piauí, 82% da população têm pele escura. Por incrível que
pareça, foi nessa região que encontrei preconceito racial mais acentuado. Na
função de guia de turismo, presenciei situações chocantes, principalmente em
Salvador. Cito apenas dois exemplos: o motorista de nossa excursão foi convidado
"delicadamente" a fazer sua refeição na cozinha do hotel, de quatro estrelas,
comendo um prato feito de comida amanhecida. Ao tomarmos conhecimento, indagamos
o gerente do hotel o motivo da discriminação. Achamos que o motivo era das
cortesias, permitidas pela Embratur, para a tripulação da excursão. Para nossa
surpresa, nos foi esclarecido que "não fica bem um negro sentar-se ao lado do
turista. Você não vê... são todos brancos... Em um dos restaurantes típicos
da cidade, foi proibido ao guia local sentar-se junto aos nossos passageiros,
devido a sua cor. Alegou o mestre:
"__Você está trabalhando, come
de graça, e depois pode algum "brancão" não gostar..."
Perguntei ao guia se ele não
fazia valer a Lei Afonso Arinos (punidora de atos contra o racismo). Sua
resposta foi a de quem já está acostumado com situações como essas: "__Se formos
buscar em leis o nosso direito, teremos de lançar mão delas todos os dias. Além
de ficarmos tempos aguardando soluções, nem sempre a denúncia é levada a sério.
Mesmo assim, quem vai vencendo é geralmente o mais rico, que de réu passa a ser
vítima. E, depois, o negro no Brasil não pode parar nem ficar manjado. Ele tem
de dar duro, ou morre de fome, ou a polícia mete-lhe o cassetete". Enquanto no
Nordeste brasileiro é visível o preconceito, no Sul do País, onde a população é
abafada pelos descendentes europeus, não presenciei preconceito. Mas vale a pena
registrar uma ocorrência envolvendo uma passageira mineira, que se recusou a
fazer o city tour em Porto Alegre, colocando em dúvida a capacidade do
guia local, simplesmente por ser ele um negro.
|
Procedência Étnica |
Denominação |
1.
Negro X Branco |
Mulato |
2.
Negro X Negro |
Crioulo |
3.
Negro X Índio |
Cafuzo (também chamado curiboca) |
4.
Negro Mulato |
Cabra |
5.
Pardo |
Descendente dos cruzamentos secundários entre mulato x
mulato, crioulo x crioulo, mulato x mameluco (branco x índio) etc., ou outras
tendências a cor escura |
Há estudiosos que acreditam na
influência da Revolução Francesa (1789) e da Rebelião dos Haitianos (1791) nas
rebeliões dos escravos brasileiros. A pesquisa de Marco Morel ilustra essa
influência, a começar pelos relatórios do Império enviados a Portugal, citando
referências à rebelião haitiana. Vejamos alguns itens:
*Os escravos das fragatas
francesas que aportavam clandestinamente no litoral brasileiro passavam
informações sobre ambas as revoluções. Algumas dessas embarcações já tinham
passado pelo Haiti. As notícias corriam de boca em boca, de forma a provocar
rebeliões em diversos pontos do país. *Sete anos após a Revolução Haitiana,
acontece e Conjuração Baiana, chamada pelo historiador Afonso Ruy de "a primeira
revolução social brasileira". A participação maior era de negros e mulatos,
defendendo objetivos semelhantes aos das revoluções francesa e haitiana. *Em
1984, instala-se a Confederação do Equador, em Recife. Os negros se agruparam e
massacraram os brancos, em represália à atitude de D. Pedro I em mandar os
ingleses reprimirem os republicanos, os quais haviam prometido liberdade aos
escravos. Durante os conflitos, os rebelados entoavam cantigas assim: "Qual
eu imito Cristóvão / Esse imortal haitiano / Eia! imitar o seu povo / Ô meu povo
soberano!" *Em 1831, durante a queda do Império, é preso Cipriano Barata,
conhecido como "malvado haitiano", defensor das ideologias de liberdade. *Em
1835, 1500 escravos reivindicam a liberdade, cujo movimento ficou conhecido como
a "Revolta dos Malês". Bem planejada, a guerrilha atinge desde o meio rural até
algumas províncias como o Rio de Janeiro, provocando mudanças no sistema
escravocrata. *Em 1870, os abolicionistas José do Patrocínio e Luís Gama são
acusados de "querer fazer do Brasil um Haiti".
As extensas áreas brasileiras e
o aumento da mão-de-obra escrava ameaçavam o controle mundial do mercado
açucareiro, até então dominado pelos ingleses. Mas a própria Inglaterra
contribuía, sem perceber, para esse desenvolvimento, transportando os escravos
da África para a colônia portuguesa. Não se pode esquecer de que uma das fontes
enriquecedoras dos ingleses foi o tráfico de escravos. Quando os ingleses
percebem o erro que estão cometendo, fortalecendo a produção de cana-de-açúcar
no Brasil, eles passam a boicotar o transporte no Oceano Atlântico. Por volta da
metade do século XVIII, já se fazia notar a revolução industrial na Inglaterra,
com conseqüente aumento na sua produção de manufaturados. Essa expansão
necessitava de novos consumidores para seus produtos. Os ingleses vêem na classe
escrava uma fonte de consumo. Mas como pagar a mercadoria, se o trabalho deles
não era remunerado? A única solução seria defender as idéias abolicionistas.
Livres, eles receberiam pelo trabalho e teriam condições de comprar seus
manufaturados. Como primeira medida, os ingleses lançam mão da dependência
econômica de D. João VI - rei de Portugal, exigindo deste a proibição do tráfico
de negros para o Brasil, uma vez que essa medida não traria nenhuma conseqüência
econômica à Inglaterra. Em franca expansão industrial, não mais precisariam do
lucro obtido no tráfico de escravos. Aliás, só os beneficiaria, estariam livres
do expansionismo da agricultura brasileira e protegeriam sua colônia na América
Central, a Jamaica, da ameaça representada pelo Brasil, que concorre com ela no
mercado de açúcar. A princípio, a proibição não foi legalmente cumprida,
criando-se sérios atritos nas fiscalizações em navios no alto mar. Os ingleses,
não satisfeitos, exigem do governo o cumprimento do trato. Esse, em obediência,
sanciona a Lei Eusébio de Queirós, (1850), legalizando a proibição do tráfico
negreiro. Mas, com o passar do tempo, a aplicação da lei foi perdendo seu
rigor e até hoje é comum ouvir denúncias semelhantes ao tráfico negreiro.
Exemplificando, o jornal "A Gazeta", de Vitória, Espírito Santo, do dia 31 de
dezembro de 1984, denunciou um fato que nos fez remontar ao tempo da escravidão:
negros africanos estariam sendo enganados pelos comandantes de navios, com
propostas de uma vida melhor na América. Após o embarque, eles são forçados ao
trabalho escravo; como denunciaram cinco africanos, "is capitães de navios são
verdadeiros feitores de escravos". Fatos como esse foram denunciados também em
Santos, São Paulo. Foi revelado ainda que, após a limpeza do navio, são atirados
em alto mar. Um deles relatou à polícia paulista como conseguiu escapar com
vida: "Os marinheiros jogavam tambores para nos auxiliar. Fazíamos um longo
percurso até a praia".
Com a proibição do tráfico, a
lavoura sofria acentuada queda, por falta de mão-de-obra. Os produtores,
ameaçados, apelavam para a imigração dos colonos europeus. Na ânsia de resolver
seus problemas, produtores defendem a mão-de-obra livre para salvar a situação.
Aderem ao sistema de trabalho remunerado ou do meeiro (empregado planta nas
terras do patrão, dividindo a colheita) Acreditam esses senhores que, com o
trabalho dos colonos, iriam economizar, sob alegação de "um colono valer mais
que três escravos"; alem disso havia outras vantagens, como:
*poder dispensá-los quando
desejassem; *não ter responsabilidade para com eles durante todo o
ano; *evitar gastos na captura de escravos fugitivos; *acabar com os
constantes atritos entre escravos/patrão; *não ter encargos na
velhice; *não sofrer opressões como exploradores de mão
escrava.
E o escravo, como ficaria
diante dessa situação? Dispensado como empregado, sem carteira assinada, sem
direito ou a quem recorrer, era colocado à margem da sociedade. A situação ficou
pior. Antes, pelo menos tinha alimentação e moradia. Muitos se viram obrigados a
se desdobrarem no trabalho, mostrando produção, impressionando o patrão para não
perderem o emprego. Aqueles sem condições físicas perdiam o direito ao trabalho
para os colonos. Vivendo na miséria ou dos restos de comida dos ex-senhores. A
feijoada, que se tornou um prato típico brasileiro, exemplifica essa situação. É
que as sinhás jogavam fora certas partes do porco, como rabo, pé, orelha,
focinho. Essas partes eram aproveitadas pelos escravos, cozinhando-as no feijão.
Surge então a feijoada.
Em 1870, o Brasil era o único
país que adotava o regime de escravidão. O governo sofria sérias pressões
externas. Para amenizar a situação, foi aprovada a Lei Rio Branco, conhecida
como Lei do Ventre Livre (1811), visando a liberar todos os filhos de escravos
nascidos a partir da sua aprovação. A propósito, toda essa farsa não passava de
um engodo para beneficiar o patrão, já que os filhos do escravo continuavam
mesmo sob sua tutela ou do Estado, prestando serviços da mesma forma. Essa lei
interrompeu o ciclo de manifestações abolicionistas, por algum tempo. Mais tarde
é reativado o movimento quando o deputado baiano Jerônimo Sobrê cobra dos
abolicionistas maior empenho. Isso resulta no surgimento, no Rio de Janeiro, da
Sociedade Brasileira Contra a Escravidão e do jornal "O Abolicionista". Em São
Paulo, o movimento se multiplica, enquanto os jornalistas antiescravistas
estampavam manchetes a favor do escravo. Terminada a guerra do Paraguai
(1870), os militares aderiram às propostas abolicionistas, tornando-se o
Marechal Deodoro da Fonseca o mensageiro de um manifesto ao governo, pondo fim à
colaboração que prestavam na captura dos negros fugitivos. Essa atitude ocultava
outros interesses, não passando de uma provocação dos militares à monarquia,
pois, pouco tempo depois, Deodoro proclamava a
República. |
Tentando aplicar outro golpe nos
movimentos abolicionistas, o governo cria a Lei Saraiva-Cotegipe (1885), ou
seja, a Lei dos Sexagenários, libertando todos os escravos com mais de 60 anos
de idade. Essa lei favorecia mais o patrão do que o escravo. Depois de lhe sugar
todo o potencial, mandava-o embora de mãos vazias.
Aproveitando a situação, a
Inglaterra, movida pelo desejo comercial, passa a fortalecer o pensamento da
abolição, criando sérios problemas para o governo. Entretanto, os ingleses
usavam a causa humana como poder político em benefício de interesses econômicos.
Sufocado, o governo provisório da Princesa Isabel cede, assinando a Lei Áurea,
acabando com a legislação da escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888. O fim
da escravidão no Brasil não significou uma ação de bondade por parte do governo.
Resultou da soma das pressões internas e externas. A Lei Áurea, na verdade,
livrara o negro da escravidão legalizada, mas não lhe ofereceu recursos para se
livrar da dependência econômica e financeira. Mais uma vez, os benefícios caíram
nas mãos do governo e dos senhores, que não o recompensaram do trabalho prestado
ao longo de sua vida, nem lhe garantiram o engajamento na sociedade, como
defendeu o pesquisador de assuntos afro-brasileiros Edilson Carneiro, ao tratar
da Lei Áurea: "foi a pior de todas as leis sobre o negro, pois só contribuiu
para a marginalização dele". A presente situação do negro, na segunda nação
negra do mundo, reflete a verdadeira realidade do passado.
Revolta dos
Malês = De acordo com explicações do historiador Décio Freitas, "malê" é um
termo "revestido de um cunho pejorativo". Foi uma forma que os brancos
encontraram para designar o movimento dos escravos na tentativa de tomar o
poder.
|
A história de São Tomé das
Letras, cidade no Sul de Minas, começa em 1770, com a construção da igreja,
tendo como padroeiro esse santo. Corre na cidade um ar de mistério, depositando
entre as pedras uma lenda, para aqueles que a visitam para saber do seu passado.
Sabe-se que, nessa região, foi grande o sofrimento dos escravos. Fugiam para os
morros do Leão e Gavião, evitando os maus tratos. João Antão foi um deles. Viveu
18 anos numa gruta, até o dia em que lhe apareceu um jovem bem vestido,
esbanjando sabedoria. Ao ver o moço, Antão perguntou:
__Uai! quem é vois
mecê? Não obteve resposta. Logo o visitante indagou: __Você mora aqui? Por
quê? __Fugi da casa grande. Sinhô me çoitava inté virar *mulambo. Depois,
banhava na salmora, ordenando nego ficar quarando no sol. Doía de
indoidar.
Atento às falas do escravo, o moço parecia imaginar quanto seus
companheiros de senzala estariam sofrendo. Agoniado, escreveu um bilhete e
chamou Antão:
__Vá entregar este bilhete ao
Quincas Areão. __Mas s s s!!! moço. quando sinhô vê eu com esse trem na mão
vai fazer de mim *tilambo. __Não! ele não vai mais fazer isso. Espere para
ver e crer.
Antão, num embalo, saiu em
disparada com medo de perder a coragem. Chegou à fazenda ressabiado. Entregou o
bilhete ao patrão. Esse ficou assustado ao ver o escravo, leu o tal bilhete,
abrindo uma boca de todo tamanho e exclamando:
__Uai, pensei que tinhas
servido de alimento para as onças. Quem é esse fulano? __Não sei, apareceu lá
de repente. __Lá onde? __Na *ribeira do morro, donde fica a
gruta.
Chegando no local, não
encontraram ninguém. Apenas uma imagem de São Tomé. Imaginou:
__Foi São Tomé, ele veio
mostrar-nos que não há distinção de cor. Somos todos iguais, portanto merecemos
o mesmo tratamento, respeito e dignidade.
Desde então, Quincas mudou seu
comportamento junto aos escravos. |
As primeiras sementes a favor da liberdade foram
plantadas pelos próprios escravos. Começaram a germinar logo na sua
chegada. Era uma forma de eles mostrarem sua rejeição ao sistema opressor.
Revoltados, fugiam, criando suas nações independentes e livres. Esses redutos tinham base política, econômica e social igual à
das nações africanas. Algumas alterações são notadas devido abrigarem brancos e
índios, não concordantes com as leis dos senhores. Inicialmente, na Bahia, recebiam o nome de mocambos (derivação de
mukambu). Depois, passaram a denominar-se quilombos (derivação de
quimbundo). Normalmente surgiam em lugares que ofereciam proteção, como
nas cumeiras das serras, ou próximo, facilitando que se avistassem os
inimigos. Foram muitos os quilombos nas mais
diversas regiões do país. Poucos foram historiografados. Hoje torna-se difícil a
pesquisa, devido ao fato de o tempo ter apagado seus
resquícios.
No município de Campos do Jordão,
no Vale do Paraíba, em São Paulo, existe uma "Gruta d o Crioulo", conhecida como
reduto dos escravos fugitivos. O morro do Espia, no município de Ibiá, no Alto
do Paraíba, em Minas Gerais, foi outro quilombo que poderia revelar fatos
importantíssimos para a história do país. O Morro
do Espia localiza-se na fazenda que leva o nome do escravo líder do quilombo:
Ambrósio. Na região, correm de boca em boca várias lendas e encontra-se muita
gente de cor. Seu Antônio da Silva, 76 anos, esposo de D. Silota, com oito
filhos, relembra vagamente fatos como esses:
"Oh moço! eles conta que no morro morava os nego revortoso.
Fugia para lá e ficava em liberdade. Ambrósio, o chefão da turma, ficava
espiando no arto. Quando vinha os tropero carregado de oro, trocava tucaiado no
pé do morro. Na ora que eles tava perto, es vap! atacava e robava. Es conta que
lá tem munt'oro enterrado por perto".
Apesar do tempo, podem-se encontrar pedaços de
objetos da época. Sô Antônio conta de uma roda que ele encontrou:
"__Viajei por esse mundo abaxo. Encontrei uma roda
duma grandeza e da artura de um pé de mamão arto. Dis que era dos nego artero
tomar lambada". (Pelas explicações, deve ser uma roda d'água onde amarravam os
escravos. Ao girar, afogavam-se os castigados.
"__E de seus pais, o senhor se lembra?" Ele suspira,
deixando estampar sua saudade e desabafa:
"__Meu pai foi escravo e dos valentão! Es tinha medo
dele. Trabaiado. Gente ninhuma pudia com ele na ferramenta. Os fazendero
cubiçava o trabaio dele. Foi vendido de uns fazendeiro pro outro, quando lá no
Biá (Ibiá) ainda era São Pedro de Arcântara".
A morada dos escravos fugitivos era ao pé do morro. Nota-se
que eram bastante precavidos. Ao redor de suas moradias, fizeram uma vala em
forma de círculo que pode ser vista e deduzir-se a profundidade e largura.
Provavelmente de dia usavam "pinguelas" para passagens, à noite retiravam-nas
evitando a entrada de inimigos. Não há um estudo para mostrar se eles viviam na
região ou vinham de outras localidades. De acordo com explicações de um dos
herdeiros da fazenda "Ambrósio", Alexandre Alves Ferreira, provavelmente as
tropas saqueadas vinham das regiões mineradoras:
"__As caravanas assaltadas provinham das regiões
mineradoras de Minas. Passavam por aqui em direção a Goiás, na época sendo
desbravado. Ou então, poderiam estar trazendo o ouro encontrado nas minas
goianas".
O ouro adquirido pelos escravos era colocado num
tacho e enterrado, (de vez em quando alguém cisma de cavucar no local,
esperançoso de encontrar o tesouro). Segundo a lenda, Ambrósio revelava que
tinha um objetivo com o ouro:
"__Comprar um navio e voltar para a
África".
Contam também que os viajantes saqueados eram
jogados no rio. Ao serem lançados na água gritavam por misericórdia; então, o
rio passou a chamar-se Rio Misericórdia. Por duas
vezes os bandeirantes investiram contra o quilombo. Acredita Alexandre que "as
tropas vinham de Pitangui", na época, região mineradora e de muitos
bandeirantes. A primeira expedição não teve sucesso. Os escravos perceberam-na e
fugiram. Obtiveram êxito na segunda, conseguindo massacrar o grupo. Quem sabe a vida de Ambrósio não o revelaria um outro líder
como Zumbi?
Um dos poucos quilombos
documentado pela história foi "Palmares". Sobreviveu entre 1630 e 1695, na Serra
da Barriga (hoje tombada pelo Patrimônio Histórico no Estado de Alagoas, na
divisa com Pernambuco). Palmares começou a
formar-se com a invasão dos holandeses em Pernambuco. Os negros aproveitaram-se
da confusão, fugindo e organizando-se num ponto estratégico do Estado.
Em 1665, acontece o primeiro ataque a Palmares,
exatamente quando nascia o futuro líder das povoações palmarinas. Zumbi. Entre
os prisioneiros estava esse bebê. Ele foi dado de presente ao padre português
Antônio de Mello, que o batizou com o nome de Francisco. Aprendeu a ler com
facilidade e serviu como coroinha na paróquia de seu criador. Aos 15 anos,
rebelou-se contra a maneira pela qual foi criado, fugindo para o Quilombo dos
Palmares.
De uma capacidade extraordinária,
Zumbi, tornou-se chefe dos palmarinos. Casou-se com D. Maria - uma branca. Há
duas versões sobre esta união: a primeira alega ter sido ela roubada pelos
negros; a outra diz que Maria acompanhou Zumbi espontaneamente. Depois de muitas lutas pela liberdade, Zumbi foi morto no dia
20 de novembro de 1695 (atualmente comemora-se nessa data o Dia Nacional da
Consciência Negra), traído por um amigo que o entrega aos inimigos. Sua cabeça
foi cortada e exposta em praça pública como aviso aos revoltados. Se da semente lançada contra a opressão germinou a democracia
nos quilombos, Ambrósio e Zumbi serviram de adubos às raízes dessa semente, que
mais tarde deu, como frutos, a liberdade. |
De acordo com informação do antropólogo Saul Martins, toda lenda tem
origem num fato histórico. Caso contrário, passa a ser conto. Para ilustrar essa
opinião, descrevemos a lenda de Chico Rei que, segundo alguns indícios, foi o
criador do Reinado no Brasil. Chico Rei, batizado
com o nome de Francisco Lisboa, foi rei africano. Governou durante muito tempo
no Sul da África até ser trazido para o Brasil como escravo.
Nas primeiras décadas do século XVIII, o território de Chico
Rei foi invadido pelos portugueses. Prenderam-no com a família e toda a sua
corte. Jogados nos porões dos navios negreiros, vieram para o Brasil. No
caminho, morreram muitos, salvando-se da família apenas Chico e seu filho mais
velho. Na chegada ao Rio de Janeiro, eles foram
vendidos para os mineradores de Vila Rica do Ouro Preto, em Minas Gerais.
Por sorte Chico e seu filho foram comprados por um só
dono. Esse senhor dava folga aos escravos mais produtivos aos sábados e
domingos. Chico mostrou serviço logo no início, sendo contemplado com as folgas.
Nesses dias, ele vendia seu trabalho ao próprio patrão, na mineração ou na
lavoura. O que ganhava tinha uma única finalidade: comprar sua liberdade, o que
conseguiu depois de dois anos. Alforriado, vendia seu trabalho a um português.
Tornou a mina do português umas das mais produtivas de Vila Rica. Como prêmio,
ganhou o direito de minerar aos sábados em seu benefício. Com o ouro comprou a
liberdade de seu filho. Juntos, compraram a liberdade de outros negros e
formaram uma espécie de cooperativa de escravos alforriados.
O prestígio de Chico Rei crescia na região. Com sua simpatia, ganhava amigos
brancos e negros. Os brancos lhe ofereceram a exploração de uma mina inativa.
Sua sorte brilhou novamente, conseguindo enriquecer-se nesta mineração.
Chico Rei casou-se com uma filha de congolês. Construiu
a Igreja de Santa Efigênia em louvor a Nossa Senhora do Rosário, em Ouro Preto.
Criou a irmandade dos pretos. Antes do trabalho, reunia-se com seus amigos para
rezar em coro. Os padres, sentindo sua devoção, ajudam-no a criar sua corte
real, acompanhada da Guarda de Congo ou Reinados.
Com sua opulência Chico tornou-se Rei da guarda. Aos domingos
aprontava a corte real: de coroa de ouro na cabeça, de mantas bordadas, ao lado
da esposa; o filho o protegia com a umbela bordada com franjas de ouro e
carregada por mucamas. Na frente, os tocadores de instrumentos e dançantes
abriram caminho para a corte passar. As mulheres empoavam os cabelos com ouro.
Subiam o morro para assistir à missa na igreja construída por Chico. Terminada a
cerimônia, as mulheres lavavam as cabeças na pia bastimal com água benta,
deixando as riquezas para a irmandade. A corte
mantinha-se ordeira e pacífica, ganhando a confiança dos senhores. Com isso os
escravos de melhor comportamento tinham permissão para fazer parte da corte do
Chico Rei, nas horas de folga. O reinado de Chico Rei espalhou-se pelo Brasil.
Com influência do branco e dos índios, foram-se criando outros grupos, como os
moçambiqueiros, a marujada, a caboelada e os catopês. Hoje essa tradição é
mantida, principalmente no interior de Minas Gerais.
|
Com esta frase, extinguia-se a escravidão na
província do Ceará, quatro anos antes da Lei Áurea. A colonização do Ceará
deu-se pouco mais de um século após o descobrimento. Os colonizadores
tencionaram transformar a região num vasto pasto para gado. Mas como, se faltava
mão-de-obra? O recurso era lançar mão do trabalho escravo do indígena. Os índios
desempenharam bem o papel de vaqueiro. O problema surgiu quando
rejeitaram os maus tratos. Com o apoio dos padres fugiam, causando sérios
prejuízos à economia. Para evitar as constantes
crises, os exploradores copiaram o sistema das outras províncias: utilizaram a
mão-de-obra negra. Em algumas províncias
brasileiras, os negros superavam a população branca. No Ceará, ao contrário, a
população negra era relativamente pequena. Com o
crescimento das pressões em prol da liberdade, ficaria fácil para aquela região
solucionar o problema da mão-de-obra, caso houvesse extinção da
escravidão. Surgiam as primeiras idéias
libertárias. Uma das mais notáveis partiu de José Mariano, pai do romancista
José de Alencar. Ele defendia a substituição da exploração escrava pelo trabalho
de colonos estrangeiros.
A 22 de março de
1850, o deputado e jornalista Pedro Pereira da Silva Guimarães apresentava no
Congresso Nacional um projeto visando à redução do trabalho escravo, a começar
pela libertação dos filhos nascidos dos escravos. O projeto não sensibilizou
seus companheiros. Os senhores de engenho negaram qualquer colaboração à
aprovação. Passando essa etapa, a seca castiga o
Ceará, sobrando para os serviçais a parcela maior de sofrimento. Lutavam contra
a fome, a peste e desordem, causando insatisfação aos abolicionistas. Criam,
então, a "Sociedade Perseverança e Porvir", em 1879, objetivando proteger os
escravos. Entre os benefícios, alforriá-los. A primeira atitude foi comprar a
liberdade de uma escrava de 10 anos. Houve ampla repercussão nas camadas
poderosas. As mulheres abolicionistas angariavam mensalidades, doavam suas
jóias, promoviam leilões com as mesmas finalidades. No dia 8 de dezembro de 1880, instala-se no Centro de Fortaleza a
"Sociedade Cearense Libertadora", tendo como lema: "um por todos, todos por
um". No ano seguinte era fundado o jornal
"Libertador", de linha agressiva aos escravistas da região. Num de seus
exemplares publicava: "que a sua missão era de amor, mas não vinha trazer a paz,
(...) que a liberdade só se combatia com a espada, porque a tirania não cedia à
razão e nem conhecia o direito".
Durante o intervalo de uma peça de teatro, Pedro José
Artur de Vasconcelos convenceu os espectadores da necessidade da libertação dos
negros. Os jangadeiros, liderados pelo mulato Francisco Nascimento, o Dragão do
Mar, apoiaram o movimento. Eram peças importantíssimas neste movimento,
transportavam os escravos dos navios até a praia onde eram vendidos. Por outro
lado, o povo se alinhava com as idéias abolicionistas. Na noite de 26 de janeiro de 1881, ancora no Ceará um cargueiro de
escravos. Os comerciantes estavam eufóricos, pois ansiavam pela mercadoria. Mas,
para surpresa geral, os jangadeiros boicotaram o transporte da mercadoria humana
até as praias, onde os negros seriam vendidos. O povo, de prontidão na praia,
apoiava os jangadeiros, dando-lhes força e impedindo qualquer ameaça dos
policiais. A polícia perdeu o controle diante de aproximadamente 1500 pessoas
que gritavam:
"__No porto do Ceará não se embarcam mais
escravos!!!"
Os traficantes revoltados mandam dizer aos promotores
da manifestação:
"__Ou os escravos embarcam ou corre
sangue".
A resposta veio imediatamente:
"__Pois que corra sangue!"
A situação foi acalmada por algum tempo. Os
traficantes, aproveitando-se da situação, intimidam os jangadeiros para
realizarem o transporte. Não foram bem sucedidos. O inspetor da alfândega e o
agente da Polícia Militar da Marinha aderem às idéias libertárias. Jataí,
Bezerra e Isac, conhecidos como "os mosqueteiros", se encarregam de planejar a
fuga de outros escravos amontoados no galpão. Combinam com os próprios negros
colocarem fogo no capim. A população se prontificou a dar alarme do incêndio. Na
algazarra, as portas foram abertas, facilitando a fuga deles. O plano deu
certo. O povo saudava o "Dragão do Mar". Ele
convencerá seus amigos a manter o trato, não transportar mais escravos nos
portos cearenses enfatizando:
"__Não há força bruta neste mundo que faça abrir o
tráfico negreiro".
Os boatos corriam pelo interior, fortalecendo os
movimentos pró-liberdade. A cidade de Redenção foi a primeira a dar o exemplo de
abolição no país, em 1883. O jornal "Libertador" estampava em suas
páginas: "Dentro em poucos dias a Princesa do
Norte será a primeira capital livre do Império. Então poderá se repetir a frase
da imprensa da Corte portuguesa, o Ceará é a terra da Luz".
No dia 25 de março de 1884, a luta tem sua glória. O
povo bradou: "A província do Ceará não tem mais
escravos!!!"
A abolição concretizava-se em toda a província.
Nascida do povo para o povo. De baixo para cima. A notícia corria mundo. De
Londres, o abolicionista Joaquim Nabuco emitia seu parecer: "O que o Ceará acaba
de fazer não significa, por certo ainda, o Brasil da Liberdade; mas modifica tão
profundamente o Brasil da escravidão". A
libertação dos escravos no Ceará repercutiu em todo o país. Fortaleceu ainda
mais os movimentos pró-liberdade. Sufocou os escravocratas, deixando-os de
sobreaviso. Também revelou mitos como o "Dragão do Mar". Quem sabe, um dia a
história o revelará como um dos responsáveis pela abolição no Brasil? Você não
acha? Libertados (?) os negros, tiveram de lutar
contra outras bandeiras escravistas: a sobrevivência e o
preconceito. |
Conta-se nas estâncias do Rio Grande do Sul a lenda segunda
a qual um estancieiro costumava explorar os serviços de um negrinho de forma a
satisfazer seus caprichos de mandão. A bravura do gaúcho só poderia ser igualada
à de um burro desamestrado. Suas ordens eram sempre além das possibilidades do
guri: campear tropa de gado e cavalo sozinho, trabalho de gente grande. E aí
dele se acontecesse algo de errado com os animais: castigava-o na base do
relho. Apesar de o Negrinho do Pastoreio não ser
batizado, ele mesmo escolhera Nossa Senhora como madrinha. Nas situações
difíceis, rogava por sua proteção. Numa das
poucas tardes de inverno nevoento, época em que os raios desfalecidos do sol
desbotado lambiam a neve tímida no cume dos montes, provocando lágrimas em
filetes, formando corredeiras pelos vales entre os morros, soou da casa grande
um berro tão forte que o sabiá na porteira procurou logo abrigo, pensando ser um
deslocamento de nuvens.
"__*Piá vemmm... cáaa..." "__Lá vem ordem. E só o
que o sinhozinho sabe fazer".
Ao chegar à varanda, ouviu do estancieiro:
"__Amanhã vou correr pelos pampas do oeste. Quero o
cavalo *baio, arreiado na porteira, bem cedo. No mas vou atolerar seus retardos.
Ouviu, tchê!".
__Sim, sim, sinhô. Tá escutado".
Preocupado ele voltou ao seu alojamento para
descansar, já que o dia seguinte seria muito trabalhoso. A noite caminhava para a madrugada, quando o guri se pôs de pé.
Acendeu o lampião, armou o laço, e antes que a madrugada fosse domada pelo
clarão da aurora, saiu montado num pangaré *rengueado. Andou, andou léguas e
mais léguas sem encontrar a encomenda do patrão. Cabreiro como cavalo *bagua, voltou à estância:
"__Sinhô, campeêi por toda banda, nada fez topá com o
baio".
O sangue nervoso subiu à cabeça do
mandante.
"__Barbaridade, tchê! Vou procurá-lo. Se encontrá tu
vai levá um *laçaço de invejá sovaqueira *perebenta".
O negrinho tremeu igual papagaio depenado no poleiro
em dias de frio.
"__Vamo, vamo lá deixa de tremer, alma penada",
ralhou o gaúcho.
Saíram os dois às galopadas. Por azar, encontraram o
cavalo pastando num brejo.
"__Tu é mais cego que curiango no relâmpago",
exclamou o patrão, cuspindo marimbondo.
"__Olhei tudo, sinhozinho com esses óios que a terra
vai comé". "__Tu vai ver quem há de comer seus zoinhos, piá!"
Amarrou os pés e mãos do menino com cipó. Deu-lhe
chicotadas até o sangue correr pelo corpo.
"__Isso é pra tu ficar mais esperto,
tchê!"
Enquanto isso o menino rogava:
"__Valei minha santa fada madrinha!!!"
Desfalecido foi jogado no formigueiro.
Passaram-se dias, o gaúcho voltou ao local, deparando
com o corpo mutilado de picadas das formigas. Arrependido pelo feito, deu uma de
pecador arrependido: peca, peca sempre, na esperança de a confissão limpar todas
as manchas. Daí nasceu a lenda de que o menino
foi para o céu e hoje a sua alma anda galopando pelos pampas do sul, com os
olhos arregalados, procurando o amor e a felicidade, ou objetos perdidos de
bondosas pessoas. Quanto ao gaúcho, grosso que nem tarugo de *pipa, cada um lhe
deseja o que merece. |
Nasceu em Angola, na África, onde era membro de um
principado. Veio parar na Bahia, vivendo livre até se tornar moça bela e
formosa. Seus dotes físicos despertavam interesse nos feitores que a cobiçavam e
lhe roubavam o sossego. Certo dia, trabalhando na
moenda de cana, não se conteve e adoçou o paladar com um torrão de açúcar.
Contudo, seu gesto foi isto pelo feitor de sua ala, que penalizou-a com uma
mordaça.
A partir de então, passou a
colecionar sofrimentos: tornou-se reprodutora de futuros trabalhadores para a
lavoura e era obrigada a amamentar os filhos dos "senhores feudais". Mas o
trabalho e os castigos não diminuíam sua beleza que provocava despeito entre as
"sinhás", a ponto de uma delas, acreditando-se traída por Anastácia, ordenar que
colocassem um ferro de tortura em seu pescoço. Esse castigo provocou sérios
ferimentos em Anastácia, resultando numa gangrena. Ao saber dos ferimentos da
criada, seu amo levou-a para o Rio de Janeiro, para tratamento médico. Nada mais
pôde ser feito devido ao agravamento da doença. Como sempre acontecia, o remorso ou a compaixão era sentida pelos
senhores somente quando o resultado de sua maldade atingia o extremo: a morte.
Morte que chegou cedo para Anastácia, sendo enterrada com honras (?) de escrava
liberta, na Igreja dos Negros Forros do Rio. Hoje, conhecida como Mãe Preta, ela é venerada no Museu do Negro, no
Rio (fica na parte superior da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito
- Rua Uruguaiana) ao lado da estátua funerária da princesa Isabel e de seu
esposo, Conde d'Eu. É com esta oração que os seus
devotos acreditam ser ouvidos por ela, em seus tormentos; colocam-se diante do
busto da ex-princesa e escrava, à entrada do museu e pedem sua ajuda:
"__... pedimos-te... roga por nós, protege-nos,
envolve-nos teu manto de graças e com teu olhar bondoso, firme, penetrante,
afasta de nós os males e os maldizentes do mundo..." |
A palavra candomblé provém
bantos da África: Ká-n-dómb-él-é. Significa: culto, louvor, reza, inovação e é o
nome também dado aos lugares onde é praticada a cerimônia. Apesar de ser
difundido em todo o Brasil, é na Bahia onde o candomblé tem sua ascensão. Embora
siga uma uniformização, o candomblé difere de acordo com as nações de onde
vieram os escravos. Encontram-se na Bahia rituais das nações:jeje, ijexá,
hauçás, cabinda, keto (o de maior número) caboclo (influenciado pela
pagelança-indígena). Para os baianos, o local onde são realizadas as cerimônias
religiosas chama-se roça ou terreiro. Geralmente o barracão do orixá tem um
altar (peji). É obrigatório haver uma árvore sagrada, o ioko ou gameleira
branca. O salão das cerimônias abertas ao público é simples: algumas cadeiras
ficam de frente para o trono da autoridade-maior-do-recinto, a ialorixá
(mãe-de-santo) ou do babalorixá (pai-de-santo). Hierarquicamente, são as funções
dos elementos no templo: Kekerê - mãe pequena, na falta da mãe-de-santo e
assume; Ebomins ou Ebâmi - pessoas com mais de sete anos e candomblé; Laôs -
pessoas iniciadas com mais de três anos; Abians - as pessoas que vão iniciar na
doutrina; Dogans - espécie de braço direito da mãe-de-santo; Ogãs, Ekedes - são
pessoas escolhidas para servir aos orixás; Ajibonás - ajudante da mãe-de-santo;
Alabês - tocadores de atavaques; Akirijebós - são ocupados por pessoas
carregadeiras de despachos para "arriar" em lugares
indicados. |
Os orixás de origem africana
assemelham-se aos santos da igreja católica. Têm como função intermediar entre o
homem e o Deus supremo do candomblé, que recebe o nome de Olórum. Acreditam os
candombleiros que Olórum foi o criador do mundo, portando identifica-se ao Deus
da Igreja Católica. Notamos algumas semelhanças no processo de beatificação dos
santos católicos aos orixás. No catolicismo, geralmente a biografia dos santos
relata uma vida de aceitação do sofrimento sem revolta, às vezes pagando a
penúria na prática de bondade, resultando na prática de milagres. Entretanto, no
candomblé esses valores são notados nos orixás, mas salientam mais a sabedoria
de um modo geral: poderes d desvendar os mistérios do homem e universo; o
conhecimento astrológico, psicológico; a feitiçaria tanto na prática do bem como
do mal; muitos tiveram cargos de poder como reis, rainhas ou heróis divinos.
Na prática os orixás simbolizam as forças elementares da natureza: água e
terra, ar e fogo, além dos fenômenos naturais: trovão, tempestade, arco-íris,
relâmpago e vento, os quais protegem as atividades econômicas primordiais do
homem primitivo; caça, agricultura e mineração. Alguns têm poderes para curar e
evitar doenças epidérmicas tais como a varíola. Na África, eram cerca de 600,
para o Brasil foram trazidos talvez 50, que estão reduzidos a 16 no Candomblé,
dos quais apenas oito passaram à Umbanda. Nas duas seitas, esses orixás podem
variar de nomes e qualidades, como também podem identificar-se com santos
católicos diferentes, dependendo muito da região africana de que foram trazidos
para o Brasil, através dos escravos.
|
Na África é conhecido como Obatalá, responsável pela
criação da humanidade. Filho de Olorum, do qual recebeu poderes para governar o
mundo. É identificado como o Senhor do Bonfim, filho do Deus católico, o mais
cultuado na Bahia. Sua vida é dividida em duas formas: Oxaguiã - mocidade - foi
guerreiro cheio de vigor e nobreza; Oxalufã - velhice - dotado de bondade, é
apresentado curvado pelo peso dos anos, apoiado num cajado .Segundo o frade carmelita
Elizeu Vieira Guedes, do Convento do Carmo da Bahia na elaboração do "Mapa da
Divina Procedência" os signos do zodíaco têm relação com o Candomblé. Levando em
conta esse estudo, Oxalá rege o signo de Leão, regendo a estrela
Sol. |
|
Filho de Oxalá e Nanã. Orixá das doenças de um modo
geral, tanto pode distribuí-las como curá-las, depende de como é cultuado. Tido
como médico dos pobres. Em muitos candomblés, seu peji é fora de casa, devido a
seu caráter temível. Identifica-se com São Lázaro (ás vezes São Roque e São
Bento). Rege o planeta Plutão e o signo é Escorpião. |
|
Na
Bahia, lembra Sant'Ana (em outros lugares sua semelhança é com Santa Bárbara ou
Nossa Senhora das Candeias e outras). Considerada a mais velha orixá das águas;
talvez por isso seja bastante cultuada na morte. (No Norte e Nordeste, nas
cerimônias fúnebres, dedicam-lhe cantigas. Em certos mitos, aparece como
"mãe-primitiva" dos gêmeos Nawu (feminino) e Lissa (masculino), casal gerador da
humanidade. (Estudos autorizaram-me a pensar na semelhança com Adão e Eva, os
precursores da humanidade, segunda a Igreja Católica). Planeta: Lua. Signo:
Câncer. |
|
Mãe
de todos os orixás e rainha das águas salgadas. Dela são descendente 15 orixás.
Casada com o fundador de Oyó, capital do reino Iorubá/África. Representa a
gestação e a procriação. Identifica-se com Nossa Senhora da Conceição. No
zodíaco, é Neturno e Peixes. |
|
Segundo os seguidores lembra São Bartolomeu. É
representado por uma serpente (na África o arco-íris é visto como uma grande
serpente das profundezas que vem beber o céu, sendo também representado por uma
serpente mordendo a própria cauda, simbolizando a eternidade e continuidade).
Durante a metade do ano é mulher, na outra torna-se homem. No zodíaco é Urano e
Aquário. |
|
Poderoso, dizia lançar fogo pela boca. Foi o quarto rei
de Oyó - (capital de Iorubá) na Nigéria/África Ocidental. Comanda o raio e o
trovão. Distribuidor da justiça, tinha três esposas. Filho de Oxalá,
identifica-se com São Jerônimo. Zodíaco: Saturno e
Capricórnio. |
|
Foi
a primeira esposa de Xangô. Única orixá capaz de enfrentar os espíritos dos
mortos - os eguns. Muito sensual, autoritária e apaixonada. Foi divindade
africana, rainha guerreira, dona dos ventos, raios e tempestades. É conhecida em
todo o Brasil pelo nome de Iansã, embora o de Oyá seja conservado nos terreiros
de nagô. (nome dado, no Brasil, ao grupo de escravos sudaneses procedente do
país Iorubá). Identifica-se com Santa Bárbara. Zodíaco: Vênus e
Libra. |
|
Segunda esposa de Xangô, portanto uma das rainhas de Oyó.
Chamada carinhosamente de "Mamãe Oxum", é orixá das águas doces, muito faceira e
vaidosa. Na Bahia, identifica-se com Nossa Senhora das Candeias e Nossa Senhora
da Conceição, além da Virgem Maria. No zodíaco é Vênus e
Touro. |
|
Lembra Joana D'Arc. Tornou-se a terceira esposa de Xangô,
sendo a menos amada. Diz a lenda que foi enganada por Oxum, acreditando no
conselho de cortar a orelha e colocar na sopa de Xangô, na esperança de reviver
o seu amor. O resultado foi contrário, pois Xangô repudiou-a. Quando aparece nas
festas, é para brigar com Oxum. |
|
Tem
o título de "Rei de Ketu" (antigo reino da África Ocidental). Protetor de Odé
(caçador), usa chapéu de vaqueiro, às vezes carrega uma espingarda. Lembra São
Jorge; já no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul é identificado como São
Sebastião. Zodíaco: Júpiter e Sagitário. |
|
Seu
sexo difere em certos terreiros. Identifica-se com São Benedito e quando dança
apóia-se numa perna só. Protege a medicina e as folhas, pois sem essas nada se
pode fazer nos cultos afro-brasileiros; as folhas sagradas são indispensáveis
para chamar o axé (forças místicas) dos orixás. Zodíaco: Mercúrio e
Virgem. |
|
Conhecedor do futuro, sempre aparece com um opelé (colar
ou rosário de ifá) ajuda nas adivinhações. Mensageiro da luz, identifica-se com
o Santíssimo Sacramento ou Divino Espírito Santo. |
|
Protetor dos gêmeos e dos partos múltiplos. Portanto,
assemelha-se aos santos gêmeos no catolicismo: São Cosme e Damião. Suas vestes
são inspiradas nesses santos. Zodíaco: Mercúrio e
Gêmeos. |
|
Orixás das matas, protege a gameleira branca ou árvore
iroko, sagrada no terreiro do candomblé. De temperamento
oscilante, ora guerreiro arrogante, ora humilde. Protege os pobres e gosta de
receber oferendas no seu santuário, os pés das árvores. Lembra São
Francisco. |
|
Um dos orixás mais cultuados no Brasil. Sua proteção é
para os trabalhadores em ferro, metal, juntamente com os agricultores e as artes
manuais. Filho de Iemanjá e Oranhiã. Identifica-se com Santo Antônio. Zodíaco:
Marte e Ares. |
|
É uma figura do mal interpretada na crença
afro-brasileira. No candomblé tradicional, age como mensageiro entre os orixás e
os homens, embora de comportamento diferente dos orixás. Sua importância é de
grande valia, sem ele nada se pode realizar. Tem a incumbência de levar pedidos,
trazer respostas, convencer os orixás a aceitarem oferendas. Abre o caminho para
bons relacionamentos do mundo natural com o sobrenatural. Tanto protege, como
castiga, principalmente aqueles não cumpridores das oferendas. Cada orixá tem
seu Exu com nome especial. Na Umbanda e cultos de influência bânto (língua e
dialeto diversos, falados por inúmeros africanos), Exu é confundido com o Diabo
dos católicos. Apresentam-no de chifre, garfos, dentes de vampiro, coberto de
capas vermelhas. É tido também como o mensageiro das
trevas. |
Esta pesquisa foi realizada na
Bahia. Portanto, as identificações entre os santos católicos e candombleiros são
locais. Há variações de terreiro para terreiro e região para região, por
exemplo: Oxum na Bahia assemelha-se com Nossa Senhora das Candeias e Nossa
Senhora da Conceição e a Virgem Maria; já no Recife, lembra Nossa Senhora do
Carmo. Tanto no Rio de Janeiro quanto em Porto Alegre, Oxum é identificado com
Nossa Senhora da Conceição. As fotos dos orixás foram colhidas no Museu do
Homem do Nordeste/Fundação Joaquim Nabuco, onde também são conhecidos como Xangô
do Nordeste. Na Bahia ou em outras regiões puderam sofrer modificações nos
trajes e nas cores - fator marcante pra os adeptos da seita.
|
|
Na África, as mulheres não
dirigiam candomblé. No Brasil, os primeiros terreiros fundados por mulheres. O
cargo lhes confere funções de sacerdotisa. Em Salvador, Mãe Menininha do Gantois
é um exemplo de como a religião se desenvolve em terras brasileiras. A ialorixá
fala fluentemente o nagô, língua dos escravos. Vem de uma família nobre da
África: seus pais viviam no palácio do rei de Abeokuta, trazidos para o Brasil
como escravos. Sua avó em nagô chamava-se Omonidê, a mãe, Akala, e seu pai,
Okurindé. Ele ocupava o cargo de Assoju Obá (secretário do rei). Mãe Menininha
iniciou-se no candomblé através de sua tia Puquéria - a Kekerê do terreiro da
família. Com a morte de Puquéria, foi indicada pelos orixás, em 1922, para
assumir o comando do terreiro.
"__Os orixás quiseram - diz Menininha do
Gantois. Eles me escolheram, me deram posse, não foram pessoas não! Primeiro foi
Oxósse, depois Xangô, Oxum e Obaluê. Me deram esse cargo de felicidade que estou
ocupando até o dia em que Deus e Oxalá quiserem".
No caminho como mãe-de-santo
encontrou muitos empecilhos; preconceito religioso, perseguição policial. Seu
templo foi invadido por diversas vezes pela polícia, que açoitava os adeptos dos
orixás, prendia os que não conseguiam fugir. Nessa época, o candomblé não era
reconhecido como religião. As autoridades acreditavam ser ele uma
feitiçaria.
"__Para entender o candomblé de
linha - alega Menininha - é preciso você freqüentar, ver, estudar muito. Isso
não é coisa de brincadeira para curioso, não!"
A ialorixá acredita: "Deus é um
só. Ele existe. Pouco importa o nome que lhe damos".
Defende a fé como o caminho
para chegar até Deus: "Toda fé nos leva até Ele".
Para ela, as religiões nunca
foram unidas. Agora querem sincretizar o candomblé: "Prá mim, Oxóssi é Oxóssi e
São Jorge é São Jorge. Quando baixa no terreiro ninguém fala que é São Jorge, e
sim Oxóssi. Do mesmo modo quando se manda celebrar uma missa ninguém diz que é
para Oxóssi e sim para São Jorge. Os que chamam por Oxalá na
Igreja do Bonfim (em Salvador) não são os verdadeiros adeptos da religião. São
os que querem fazer folclore". Correm pela cidade de Salvador várias
histórias sobre Mãe Menininha. Um deles refere-se ao poeta Vinícius de Morais.
Ele confessou estar temeroso de andar de avião. Ela rogou aos orixás, recebendo
o aviso de que "de desastre de avião você não morrerá". A partir daí, o poeta
passou a viajar tranqüilamente.
"__Quando alguém melhora e vem me dizer,
você não sabe da minha alegria", confessou ela. A quem a procura para fazer
maldade, ela esclarece: "Esse negócio de vir me procurar para descasar pessoas,
amarrar os passos dos outros, é perder tempo. Mesmo que eu soubesse não poderia
fazer. Não sei, não sei mesmo! Não conheço os segredos do mal, não é minha
linha. Agora, para curar desgraças, tirar perturbações, faço tudo que estiver ao
meu alcance. Rogo aos encantados; me esforço!" Sua fama é conhecida além-mar. Na
África, o sumo sacerdote da religião da Nigéria, rei de Ijebu Odé, a considera a
"própria orixá". Nascida no século passado, seis anos após a Lei Áurea, com seus
92 anos é tida como um patrimônio vivo da cultura negra no Brasil. Seu nome é
Maria Escolástica Nazaré ou, simplesmente, Mãe Menininha do
Gantois. |
De lá prá cá, de cá prá lá. Domi, na praia, estava olhando
pro mar. Sua imaginação viajava nas ondas pro outro lado das águas. Quem sabe
não podia abraçar seus irmãos africanos, separados desde a vinda para a América.
Sentou-se na areia e pos-se a matutar. Sentindo as frescas espumas borbulharem
nos pés. Lavando com o sal a dor e a saudade no peito:
__Se esta água banhasse as costas d'África, mandaria
um recado: oi, gente, estou da banda de cá.
A alegria fazia-se presente ao recordar o passado.
Naquele dia, embarcou seu pensamento em busca de suas juras sagradas do tempo de
criança. Aportou seu pensar no litoral africano, onde seu amigo Minguinho viu a
mãe de Deus. Lembrando: Era sete de outubro, Minguinho foi à praia com as mãos
cheias de pedrinhas agradecer a Nossa Senhora pela pesca do dia; a cada
agradecimento lançava uma pedrinha no mar, dizendo:
"__Senhora! o jacá trouxe pouco peixe. Mas é o
bastante pra nos abastar. Bendito é este alimento, senhora!!!"
Era sua forma de rezar, pois desconhecia o uso do
terço. Ao jogar a última pedrinha, sentiu as ondas se enfurecerem, a luz do sol
apagou-se, as borbulhas rolavam na areia, deixando pegadas na praia com os
caranguejos. Num relâmpago o vento trouxe o trovão, acalmando a atmosfera,
enquanto as águas davam à luz um clarão de cor azul do céu.
"__Hôoo!!! exclamou Minguinho - será Nossa
Senhora?"
"Vestida de branco ela apareceu trazendo na cinta as
cores do céu". Nos braços portava uma criancinha, na mão, o rosário. Sua capa
verde-mar flutuava no ar, provocando ciúmes nas águas do oceano.
"__A bênção minha rainha - pediu
ele.
__Eu vôs abençôo com o rosário de Maria
- respondeu ela. __Ah! então é Nossa Senhora do Rosário? "__Sim, eu vim
para lhes ensinar a rezar o terço". Aproximando-se deu-lhe um rosário
dizendo: "__O rosário será a misericórdia do homem".
Ele recebeu com alegria e acrescentou:
"__A oração pode ser o adoçante no nosso momento de
amargura".
Minguinho saiu para anunciar a aparição da
Santa. Formaram-se grupos para visitá-la.
Primeiro vieram os caboclos, representando os índios, dançando e
cantando: "Minha Virgem do Rosário / hoje é Vosso
dia. / Nós viemos festejar..."
A esperança de tê-la entre eles foi levada pelas
ondas. Restava apenas ir embora, saudando-a:
"Adeus, minha Virgem Santa / esposa do São José. / Até pro ano / se
Deus nosso sinhô quiser..."
Chegou a Marujada, representando os marinheiros,
fazendo as mesmas evoluções:
"Oh, minha Virgem do Rosário / nós viemos festejá. /
A Virgem Santa Maria..."
Da mesma forma ela ficou. Estática em alto mar. Só o
vento se fazia mensageiro, levando as ressonâncias dos cantantes:
"O rei mandou lhe chamar / se chama eu vou / No
Palácio da rainha / nunca vi tanta fulô..."
Acreditando um dia poder voltar, os marujos foram-se
cantarolando:
"Zum... zum... zum... lá no meio do mar / É o vento
que nos atrai, / é o mar que nos atrapalha / prá no porto chegar, / zum...
zum... zum..."
O terceiro grupo a visitá-la foi os Catopês. Pessoas
simples de cor negra. Minguinho entre eles cantava:
"Viva a rainha do céu, / viva o rei, viva a rainha /
Donde vai parar do rosário / Donde vai morar, ora lá..."
Flutuando e caminhando de mansinho, ela se pôs à
beira mar, louvando os dançantes com suas palavras:
A simplicidade e a humildade são essenciais para o
crescer espiritual de cada um".
Colocando-se entre eles, dirigiu-os à capela,
enquanto cantavam: "Ave Maria, canta lá do céu. / Sua casa cheia de fulô de
laranjeira / vamo embora, semeando flores, / por este caminho a
fora..."
Na porta da capela, movidos pela fé, aclamaram-na
protetora dos negros:
"Entremos nesta casa
com prazer e alegria, pois dentro dela mora, o filho da Virgem
Maria..."
Convidada a subir ao altar, ela ouviu:
"Deus salve a casa santa / onde fez a morada / onde
mora o cálix bento / e a hóstia consagrada".
Miguinho, representando seus companheiros,
exclamou:
Senhora! com o rosário vamos ficar mais próximos
da perfeição".
Respondeu a Santa:
Vocês hão de encontrar, nas contas do rosário,
forças para enfraquecerem as barreiras atiradas em seu caminhos".
Desde então o rosário de Maria foi proclamado nos
lares de quem queria.
Domi, um africano que deixou de governar em terra
natal, para reinar como escravo nas minas de ouro do Brasil, voltou à realidade
com um desejo:
Vou debulhar as contar do rosário, igualmente o
lavrador debulha uma graúda espiga de milho: com amor e esperança de novas boas
safras".
*Numa só lenda aparecem variantes de região para
região. A lenda de Nossa Senhora do Rosário é um exemplo. A estória acima foi
pesquisada na Festa do Rosário, na cidade do Serro, Minas Gerais. Foi acrescida
de interpretações do autor. As personagens Domi e Minguinho foram inspiradas no
nome de São Domingos. Segundo a Igreja Católica, foi ele quem recebeu o rosário
das mãos de Nossa Senhora do Rosário. O autor datou o fato como ocorrido em sete
de outubro, porque nesse dia comemora-se o dia da Santa do Rosário. E outubro é
o mês do rosário. |
Contada por Mestre Didi, um
baiano místico que carrega consigo os casos do tempo da escravidão, assemelha-se
à lenda do Negrinho do Pastoreio. Provavelmente com as vendas d escravos do
Nordeste para o Sul, os fatos eram levados e adaptados aos acontecidos na nova
terra. Este poderá servir de exemplo:
Viviam numa fazenda no
interior baiano o dono com seu filho e um menino, mantido como
escravo. O filho, tal como o pai, divertia-se
*malinando como negrinho, *abodegando, só para vê-lo
*avexado. À medida que o tempo passava,
cobravam-lhe mais trabalho. "__Veja só! gloriava o fazendeiro - o pitoco de
gente tá *enhatando a voz, já pode campear a tropa". No
primeiro dia da nova tarefa não resistiu ao cansaço e foi dominado por uma
madorna. Quando despertou, assustou-se:
"__Vixe Maria, cadê os
bois?" Foi contar ao seu dono e ouviu
dele: "__Ó *xente! só pode ser mutrecaje
tua". "__Vixe Santíssima! foi não sinhô".
Se sentindo no fuzuê dos
infernos, o negrim rogou por proteção divina.
"__Diga aí! minha Nossa
Senhora, donde tá os bois do sô Homê. Me tirre dessa *muzenga. Valei minha
santa".
Não passou muito tempo a tropa
foi entrando pelo curral. Sabendo do milagre, o filho do dono tratou de
divertir-se mais uma vez, espantando novamente a tropa, desta vez para bem
longe.
"__Chô! chô! chô!
boiada..."
O fazendeiro, sem procurar
saber da verdade, tratou logo de castigar o seu subordinado.
"__O *bichim! toma esta
*tilambada que é pra tu ficar mais esperto nos *mandalecos".
Esgotando a raiva, o fazendeiro
jogou-o na boca de um formigueiro dizendo. "__Veja lá se serve pelo menos pra alimentar as
cabeçudas". Passaram-se três dias e ele voltou para dar uma "espiadela" no corpo
do menino. Surpreso, viu-o caminhando entre as caatingas vestido como anjo, de
mãos dadas com Nossa Senhora.
Corre o boato na Bahia que
o negrim anda *arretado pelos cerrados, como anjo generoso,
ajudando as pessoas de bem a encontrarem seus animais
perdidos. |
Congada, Guarda de Congo,
Reinado são denominação de grupos de danças. Geralmente são acompanhados de reis
e rainhas, capitães, juízas e mestres de guarda, formando o cortejo real. Têm a
finalidade de louvar os santos das irmandades dos pretos: Têm a finalidade de
louvar os santos das irmandades dos pretos: Nossa Senhora do Rosário, São
Benedito, Santa Efigênia, entre outros. Provavelmente sua origem do reinado
coincide com a necessidade de Chico Rei manter seus estados: "rei em minha
terra, rei fora dela". Em Minas Gerais, além da corte de cada guarda, existem o
rei e a rainha Conga, que representam o Estado de Minas. Atualmente são eles:
Geraldo Artur Camilo, da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, de Contagem,
filho dos fundadores da Comunidade Negra dos Arturos e descendentes de escravos.
A rainha Conga é Cecília Alves Gomes, filha de rainha Conga da guarda, neta de
escrava. Mora em Sete Lagoas. Por volta de 1980, iniciei uma
pesquisa sobre as congadas de Minas. Fui apresentado ao Estado Maior do Reinado
da época: Maria Cassimiro dos Anjos e Raimundo Nonato. Atuando como reis de
Estado, quase sempre nos encontrávamos pelo interior nas festas de reisado. Com
mais intimidade, passei a tratá-los de Vó e Vô. Ao me ver nas festas, ela logo
dizia:
"__Óia só! o cachorrinho aí.
Anda farejando as festas do congado". Lembro-me de uma passagem com a vó rainha.
Na festa de Nossa Senhora do Rosário, em Conceição do Mato Dentro, sentada na
porta da igreja, bastante cansada, eu lhe perguntei: "__A senhora não vai
seguir o cortejo?" "__Não, meu fio, a veia tá muito cansada". Contei-lhe
da minha fome. Ela chamou sua filha Isabel (hoje rainha do Terno Treze de Maio)
pediu a sacola, tirou um pedação de pão seco: "__Toma! come essa massa pra
tapiar o bucho". Repartimos o pão. Ela comia naturalmente, como uma rainha,
recebe a comida na bandeija de prata. Valeu-me sua boa intenção. Continuei o
trabalho até os reis festeiros (que promovem a festa) oferecem o almoço. Maria
Cassimiro nasceu no dia quatro de março de 1906, em Betim/MG. Sua família
participava do cortejo das congadas. Antes de completar um ano de idade, ela
integrou o reinado. Ao longo de sua vida, cresceu na hierarquia do Congo: foi
princesa, juíza-comum, rainha de Vara de Prata, depois de Ouro. Em 1944 fundou
sua própria Guarda de Moçambique Treze de Maio, tornando-se rainha dela. Por
ocasião do IV Centenário do Rio de Janeiro, foi indicada para representar Minas
nas comemorações da Igreja do Rosário dos Pretos. Nessa ocasião, foi eleita
Rainha Conga do Estado de Minas Gerais, junto com o rei Campolina, já falecido,
dando lugar ao Rei Congo Raimundo Nonato. O rei Nonato nasceu no dia cinco de
setembro de 1901, em Santa Luzia. Seus pais foram descendentes de escravos.
"Minha vó foi escrava de um fazenderão, Sô Quinquim", dizia ele. Aos dez
anos foi príncipe, depois tocador de caixa, capitão de Congo, rei da Guarda de
Congo de São Jorge. Mais tarde fundou sua guarda de Moçambique, Santo Antônio de
lisboa. Finalmente, Rei Congo do Estado de Minas, título conquistado em 1979.
Ambos são falecidos; ela em 1984, ele em 1983, legando aos seus descendentes
a tradição das festas em louvor aos santos dos pretos. Na casa da rainha Maria
Cassimiro as festas não pararam com sua morte. Sua filha Isabel assumiu o posto
de Rainha da Guarda e mantém a tradição. No mês de maio comemora-se a Abolição
dos Escravos. As comemorações iniciam-se com as chamadas "trezenas", devido à
duração de treze dias. Durante os festejos, o boi da manta sai às ruas, pedindo
donativos para homenagear os santos. Atrás, vai o caixeiro tocando e cantando:
"Êh! boi / Êh! boi / Esse boi é bonito / Êh! boi / Ele é de São Benedito / Êh!
boi / Dá esmola pra meu boi / Êh! boi / Agradeço sua esmola / Êh! boi / Eu te
convido para essa festa / Êh boi..." A meninada sau atrás cutucando o
boi e levando investida dele. No dia oito de maio, levanta-se o primeiro mastro,
com estampa de um dos santos. As mulheres preparam as comidas: doces e salgados.
A rainha com sua guarda sai em busca da bandeira da Senhora do Rosário.
Geralmente ela está na casa de um dos congadeiros que fez promessa de guardá-la.
De volta à casa da rainha, vem cantando: "Senhora do Rosário / Sua casa cheira /
Cravo e rosa e flor de laranjeira...". Em seguida levanta-se outro mastro,
com estampa de Nossa Senhora do Rosário, cantanto: "Lá vai subindo, oi / Lá vai,
subindo pro céu / lá vai nossa mãe pro céu...". Em volta do mastro com velas
acessas o rei com o bastão fala: "__Oh! Maria / Santa Mãe de Deus / Abençoa
esses filhos, meu Deus...". Faz-se silêncio e a rainha declama:"__Viva
Senhora do Rosário / Viva Santa Isabel / Viva quem chegou / Viva treze de
maio..." Após as saudações, desfaz-se o reinado. Todos colocam seus
pertences no altar. No dia seguinte, tocam-se os tambores bem cedo, chamando os
companheiros. A rainha oferece café, enquanto se ouve: "Hoje é dia de festa no
céu / Oh! minha mãe do céu / Quem não tem mãe / não tem nada..." A Guarda
prepara-se para buscar os reis e rainhas, pagadores de promessas. Eles se vestem
como seus santos de devoçõ: Rainha Santa Efigênia, Rainha do Divino Espírito
Santo, Rainha de Santa Catarina, Rainha Joana D'Arc, Rainha Nossa Senhora do
Rosário, Rei Santo Antônio de Catigeró, Rei São Benedito... Terminada a
busca dos reis promesseiros, servem-se comestíveis na casa da rainha, enquanto
as Guardas convidadas vão chegando, cantando: "Oi, dá licença, senhora / Oi
dá licença, tambores de guerra / Os marinheiros chegaram / Para festejar Nossa
Senhora... Prapara-se o cortejo real para a Missa Conga (missa comum com a
participação dos congadeiros) na igreja mais próxima (Bairro Concórdia). Os Reis
Congos colocam-se mais atrás, sob a proteção de um pálio conduzido pelas
mucamas. Na frente vão as Guardas de Conga cantando e dançando com seus reis e
rainhas. Outros levam imagens de santos. Na porta da igrekja, um capitão declama
(publicamos alguns versos): "__Ôh! no tempo da escravidão / Moço branco que
mandava, / quando sinhô ia à missa / era nêgo quem levava / ... Sinhô entrava
pra dentro / Nêgo lá fora ficava / ... Se nêgo tava cansado / de chicote ele
apanhava / ... Chegando na sua senzala / é que nêgo ia rezar / ... pedindo ao
Deus do céu / que tenha pena dessas almas..." Depois dessa exposição sobre o
tratamento dado ao negro no tempo da escravidão, o Capitão da Rainha bate na
porta da igreja, pedindo: "__Santo padre, abre a porta / que nêgo quê entrá,
/ pra ouvir a santa missa / que o Pai Eterno vai celebrá O padre abre a
porta, recebe-os com um abraço fraterno. A corte real tem permissão para entrar.
As Guardas acompanham cantando e dançando: "Deus salve a casa santa / onde
Deus fez a morada / Que já é o cálix bento / e a hóstia consagrada..."
Inicia-se a missa com a participação do Capitão da Rainha: "Tá caindo fulô /
Oi tá caindo fulô / Lá do céu / lá na terra / Oi tá caindo fulô..." Antes do
evangelho faz-se outra saudação: "Quando Deus andava pelo mundo, / oi! que
beleza! / Ele curava todo mundo, / oi! que beleza!" Durante o ofertório, o
padre recebe dos reis Congos suas coroas, espadas e bastões, simbolizando a
oferenda. Nesse momento canta-se: "Ôh! entregai, Oh! rainha / Ôh! Entregai vossa
coroa, rainha..." Quando o celebrante exibe a hóstia fazendo a consagração, os
tambores ressoam. Eles cantam: "Ôh! que mesa tão bonita / toda cheia de
nobreza..." Após os agradecimentos, o celebrante devolve as coroas e pertences
aos donos, enquanto ouvimos" Arrecebei esta coroa, Ôh minha rainha.
Arrecebei..." Os reis as recebem beijando-as. O padre faz a coroação. No final
da missa a confraternização: "Um abraço dado de bom coração, / é o mesmo que
uma prece meu irmão..." Todos se retiram da igreja. Caminham até a casa da
Rainha, onde são exibidas diversas danças de origem africana. Danças das
Manguaras e o Candombe (não confundir com candomblé). Possivelmente Chico Rei se
inspirou no candombe para criar sua congada. É dançado com o corpo curvado,
batendo os pés no chão. Nessa dança, usam-se os instrumentos: o chama, o
santaninha, a cuíca, o guaiá. Quando o Rei ongo Raimundo puxava a cantiga ele
dizia: "__Êh! eu tava dormindo, sá rainha me chamô / Êh! acordo nêgo,
cativeiro já cabô / Êh! vô julhá no pé de Nossa Sinhô, pra gradecê..." No
último dia das festividades, 13 de maio, celebra-se a Missa Conga no terreiro da
casa da Rainha, com a participação de todos. Com o término da missa, dão-se por
encerradas as festividades, cantando-se: "Se a morte não me matar / tamborim. Se
a terra não me comer / tamborim. Para o ano eu voltarei... se Deus
quiser". |
Assim o escritor Candido
Emanuel Félix define a palavra Umbanda: "É originária da África. Designa o
sacerdote do culto que os pretos bantos prestavam à divindade. No Brasil, a
palavra passou a identificar o conjunto do ritual umbandista".
Para ele, a Umbanda é
uma religião, levando-se em conta que em toda ela se cultua um Deus, ou outra
divindade, por meio de ritos, preces ou mandamentos; ele esclarece: "Sem a menor
dúvida temos que aceitar a Umbanda como uma religião das mais elevadas. A
Umbanda tem, por alta finalidade, mostrar que o mundo não é apenas matéria,
visto que existem seres invisíveis. São eles espíritos dos que partiram, mas
continuam entre nós, e que se incorporam aos médiuns (pessoas capacitadas e se
comunicarem com eles). A finalidade principal do culto umbandista é o serviço às
criaturas humanas, bem como os espíritos encarnados ou desencarnados. Isto é,
tanto por meio da doutrinação como por meio espiritual, visando as dificuldades
materiais, morais, o alívio e a cura de enfermidades. O culto deve ser prestado
sempre com a maior humildade, pureza e caridade, requisitos indispensáveis na
prática do umbandismo". Já o pai-de-santo Ary Barreto define sua prática como
religião existente há mais de mil anos, trazida pelos negros africanos para a
Bahia. Diz ele: "__Em tempos passados quem possuía certos poderes era tido como
filho de Satanás. Chamava-se magia negra e isso era proibido. Os negros se
reuniam em determinado local, concentravam a pedir ajuda aos seus deuses, aí
faziam o ritual espiritual." Ele fala da perseguição e da prática da religião:
"__Quando descobriam os rituais mandavam queimar o recinto e o chefe como bruxo.
Só depois da abolição da escravidão é que os negros da Bahia começaram a firmar
sua religião". Consultado sobre o tema, o presidente do Supremo Conselho
Sacerdotal da Confederação Espiritualista Umbandista no Estado de Minas Gerais,
Antônio Pereira Camêlo, que esteve na África, esclareceu: "__Os negros fugitivos
do cativeiro e revoltados contra o regime a que estavam sujeitos formaram os
quilombos, (lugares longe e aldeia de Xangô), que eram cercados para evitar
qualquer invasão dos brancos. Dentro dos quilombos, construíam a Casa do Governo
que era dirigida por um negro Zambi ou Mucambo Zambi (negro de Deus),
responsável pelos ensinamentos da religião". Segundo o presidente umbandista,
dentro dos quilombos era feito o Abacé (terreiro) reservado aos cultos. Ali se
realizavam todas as práticas religiosas, "sem exceção de credo ou seita". Se
os quilombos abrigavam tantos negros (de regiões diferentes da África) como
índios e brancos, certamente todos praticavam suas religiões no local. Não
teriam as religiões, somando-se, umas às outras, resultado na fusão religiosa
umbandista? Entretanto, Olga Gudolle Cacciatore, autora do "Dicionário de
Cultos Afro-Brasileiros" chegou à seguinte conclusão: "É uma religião formada no
Brasil (apesar de o negarem alguns crentes) por uma selação de valores
doutrinários e rituais". Acredita ela que a Umbanda surgiu da união de
diversos cultos africanos (nagô - congo-angola - malês islamizados), além das
influenciadas pela Pajelança (culto indígena), do catolicismo e do
espiritualismo e posteriormente pelo ocultismo. Sobre alguns desses cultos
Olga Gudolle, esclarece: "A princípio chamados de Macumba no Rio de Janeiro,
empregavam a magia negra. Essa corrente de Umbanda é chamada "Quimbanda" pelos
umbandistas da "linha branca". O termo "macumba" ficou para os leigos, como
sinônimo de feitiçaria". Tive a oportunidade de visitar diversos terreiros e
tendas em beira de mar, no Espírito Santo e São Paulo; em lagoas como a da
Pampulha, em Belo Horizonte, e Lago do Paranoá, em Brasília, cada um com rituais
e adesões de outras religiões diferentes. Alguns aceitam até rituais dos países
do Oriente. Com essas influências, a Umbanda vai perdendo sua originalidade. O
trabalho da Confederação dos Umbandistas visa a preservar a integridade da
religião, como esclarece seu presidente: "Não posso aceitar e ver uma miscelânea
provocada e organizada por pessoas que se metem muito a saber e, como sábios,
vão criando uma Umbanda que satisfaça à sua conveniência. Se respeitassem os
sagrados princípios da Umbanda, estaria num plano mais elevado". A Umbanda
espalhou-se por todo o Brasil e foi exportada para a Argentina e Estados Unidos.
As cerimônias são realizadas em terreiros, centros, tendas ou cabanas. As
oferendas aos orixás podem ser feitas nas matas, praias, cachoeiras, beiras de
rio e lagoas etc. Nos rituais usam-se diversos aparatos como nos ritos
católicos: velas, flores, essências, além de charutos, pólvora, bebidas,
defumadores. Sacrificam-se animais em agradecimento aos
orixás.
As vestimentas são simples, de
preferência de cor branca. As mulheres geralmente usam roupas à baiana. No
salão de cultos (abassá) há um altar (peji ou gongá) com imagens de santos
católicos, de índios (caboclos) e negros (pretos velhos). Os instrumentos
geralmente são os mesmos do Candomblé: atabaque, agogô e aguê, entre outros.
A divindade maior é o Zâmbi, entidade
angola-conguense. |
Vindo de pais escravos, nascido em 1880, no distrito
de Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, João Cândido, acompanhado de sete irmãos,
viveu numa fazenda até os dez anos de idade, quando foi recrutado para a
Marinha, como represália às suas rebeldias. Nessa época era comum elementos
tidos como desordeiros serem encaminhados à escola de correção da Marinha. Mas
seu espírito irrequieto fez com que muito cedo João Cândido abraçasse a causa em
favor dos direitos humanos em alto mar.
Por
ocasião do movimento contra o então Presidente da República Floriano Peixoto,
João Cândido, nessa época com treze anos, faz sua primeira viagem, como aprendiz
de marinheiro. Pouco antes de completar 20 anos, torna-se instrutor de escolas
da Marinha, tendo oportunidade de presenciar fatos interessantes: a revolta de
Plácido de Castro, no Acre, quando bolivianos tentaram invadir o território
brasileiro; participou do traslado do esquife do Embaixador Joaquim Nabuco, dos
Estados Unidos para o Brasil; fez parte da tripulação de Benjamim Constant, para
supervisionar o término da construção do navio "Minas Gerais" (mais tarde, esse
navio serviu de palco a uma rebelião contra o mau trato na Marinha) em um
estaleiro na Inglaterra.
Sua condição de
rebelde lhe valeu um comentário do Comandante Pereira da Cunha que emitiu um
parecer, mais tarde, condenando a atitude de seus comandados, sugerindo que o
integrante da comitiva deveria apresentar atestado de bons antecedentes. Eis a
íntegra de seu parecer: "Em contato com a Marinha Inglesa, evoluída um século
sobre o nosso pessoal, essa gente foi sofrendo a inevitável influência da
comparação".
Averiguando a vida coerente dos
colegas estrangeiros que aportavam no cais britânico, João Cândido tornou-se um
dissidente do regime adotado pelos comandantes brasileiros. Passou a questionar,
o sistema, influenciando seus companheiros, em busca de condições mais humanas.
Propunha também o fim dos castigos corporais, do excesso de trabalho, dos
salários baixos e da má alimentação, sugerindo uma nova relação com a Marinha,
para a qual os marinheiros "não passavam de meros escravos da Armada
Brasileira".
Na época, o Ministro da Marinha
classificou essa tomada de consciência como uma posição anarquista, com este
comentário: "Lá sofreram as piores influências dos centros anarquizados pelas
idéias subversivas de um liberalismo mal compreendido".
A morte do Presidente Afonso Pena (1909) chega ao conhecimento de
João Cândido, na Inglaterra. Em seguida, fica sabendo da posse do novo Chefe de
Estado, Nilo Peçanha, de quem era simpatizante. Manda desenhar um retrato a
carvão do novo Presidente, fixando-o no "Minas Gerais".
Chegando ao Rio, João Cândido é indicado para fazer a mostragem do
navio ao Presidente e seu Ministério. Oportunamente, mostrou o quadro ao
visitante, o que lhe valeu um convite ao Palácio do Catete. Por ocasião da visita ao Palácio, João Cândido narra ao Presidente as
más condições a que eram submetidos os marinheiros. Pede a abolição da chibata e
reivindica melhores condições de vida. O atendimento dessas reivindicações ficou
só na esperança, pois Nilo Peçanha, mesmo que desejasse atendê-lo, não teria
tempo, porque deixou o governo pouco tempo depois. Há rumores de que esse
governo, depois, acobertou o levante de 22 de novembro de 1910. Com o objetivo de se promoverem, alguns políticos defendiam os
marujos. Rui Barbosa foi um deles, só que suas posições contraditórias o
tornavam um político sem muita credibilidade. Ao mesmo tempo que defendia pontos
de vista favoráveis à causa dos marujos, valorizava a criação da Campanha
Correcional - uma lei que agredia os direitos humanos. O jornalista gaúcho Paulo
Ricardo de Morais, pesquisador da vida de João Cândido, questiona o fato de Rui
Barbosa ter mandado queimar a documentação referente à escravidão no Brasil, sob
alegação de que esse passado era vergonhoso para a Nação e, por isso, deveria
desaparecer.
No início do novo governo, a
violação aos direitos humanos na marinha aumentou consideravelmente. Surgem,
então, os primeiros indícios de nova rebelião na esquadra brasileira, enviada às
comemorações do I Centenário da Independência do Chile. Durante a viagem, os
castigos tornam-se insuportáveis, provocando um motim contra a Armada. O
marinheiro Francisco Dias Martins escreve uma carta e a coloca debaixo da porta
da cabine do comandante, esclarecendo: "Venho por
meio destas linhas pedir não maltratar a guarnição deste navio, que tanto se
esforça para trazê-lo limpo. Aqui nunguém é salteador, nem ladrão. Desejamos paz
e amor. Ninguém é escravo de oficiais e chega de chibata. Cuidado! Assinado, Mão
Negra".
Faziam parte da frota os navios "São
Paulo", "Bahia", Deodoro" e o "Minas Gerais", no qual João Cândido e mais 887
marujos prestavam serviços a uma tripulação de 107 oficiais e oito
chibatadores. Na volta, a situação agrava-se
devido ao enquadramento de oito marinheiros na Correcional. Um deles teve suas
mãos e pés atados, recebendo 250 chibatadas para servir de exemplo aos demais
rebeldes. Foi a gota que faltava para a explosão da revolta, forçando a
antecipação, para o dia 22, do lançamento do plano de recusa aos maus tratos,
anteriormente marcado para o dia 24 de novembro de 1910.
O comitê do complô decide assumir o controle do "Minas Gerais" e
troca o toque de silêncio pelo de combate. Prende os oficiais nos camarotes e
entra em contato com os outros navios dos quais receberam apoio. Já nas imediações da Capital Federal - Rio de Janeiro - a
esquadra ancora em alto mar. Na cidade, o Presidente Hermes da Fonseca e seus
Ministros assistiam a uma ópera, quando tomaram conhecimento da seguinte
mensagem passada pelo telégrafo: "Não queremos de volta a chibata. É o que
pedimos ao Presidente da República e ao Ministro da Marinha. Queremos respostas,
já e já. Caso não as tenhamos, bombardearemos a cidade e os navios que não se
revoltarem".
Os revoltosos, para provar que
estavam dispostos a levar em frente o movimento, enviam corpos de dois oficiais
do "Minas Gerais" a plataforma da Marinha. Esse gesto provocou desespero na
população e algumas família procuravam refugiar-se fora da cidade. A cúpula da Marinha, apreensiva, envia o Deputado gaúcho José
Carlos Carvalho para agir como mediador junto aos revoltosos. O político ouviu o
pedido enfático dos marujos:
"Nada queremos,
senão o alívio dos castigos corporais. Que nos dêem meios para trabalhar,
compatíveis com as nossas forças. Vossa Senhoria pode percorrer o navio, para
ver como ele está em ordem. Só queremos que o Presidente nos dê liberdade,
abolindo as barbaridades que sofremos, dando-nos alimentação e folga no serviço.
Nós temos, ou não razão?" O deputado levou ao Presidente as reivindicações dos marujos, mas o
governo não se dispôs a atendê-las, forçando os marinheiros a recuar nos
diálogos. Imediatamente, o Senador Rui Barbosa entra em cena e apresenta um
projeto de anistia aos rebeldes. João Cândido consente na retomada das
negociações e passa uma mensagem ao conterrâneo mediador pelo
telégrafo:
"Entraremos amanhã, ao meio-dia.
Agradecemos os seus bons ofícios em favor da nossa causa. Se houver qualquer
falsidade, o senhor sofrerá as conseqüências. Estamos dispostos a vender caro as
nossas vidas".
No dia 26 de novembro cumprem
o prometido. Os navios entram na barra. Em terra firme, a anistia é revogada e
os marinheiros são apanhados desprevenidos. João Cândido é preso e enviado para
uma masmorra na Ilha das Cobras. Lá permanece por 18 meses. Ele mesmo contou a
Edmar Morel, autor de "A Revolta da Chibata", como viveu este
período:
"__Foi horrível! Dos dezoito
camaradas, instalados num mesmo cubículo, só escaparam dois: eu e o Pau de Lira,
que trabalhava na estiva (no porão do navio) no cais dos Mineiros, no Caju. O
resto foi comido pelo cal, que se misturava com água, era jogada dentro do
subterrâneo. Outros, de tão inchados, pareciam sapos... Alguns, corroídos pela
sede, bebiam a própria urina. Fazíamos necessidades num barril que, de tão
cheio, rolou inundando tudo. Resistimos a pão e água. Quando abriram a porta,
havia gente podre. Retiraram os cadáveres, deixando apenas nós dois. Lá fiquei,
até ser internado como louco". Após receber alta,
João Cândido retorna à mesma prisão, permanecendo por lá até o dia em que o
Senador Rui Barbosa o elogiou no Congresso, pela atitude como comandou a revolta
dos marinheiros, evitando um confronto de maiores conseqüências. Lembra o
jornalista Paulo Ricardo que, na mesma época, enquanto João Cândido usava de
estratégias para evitar ataque sangrento, o Presidente, Marechal Hermes da
Fonseca, permitia o bombardeio da Bahia. Absolvido, com auxílio de uma junta de
advogados contratada pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, João
Cândido é aclamado pelos amigos como o "Almirante Negro", fazendo jus à frase
que ouvira mais tarde, de um marinheiro:
"__A
sua história ficou na Marinha. Hoje, não apanhamos, temos soldo regular e
comemos bem. Agradecemos tudo isto ao Senhor".
Em liberdade, enfrenta o preconceito, as doenças adquiridas na prisão
e as dificuldades financeiras. Para sobreviver, sujeita-se a trabalhar desde
carregador de navio a vendedor de peixe. A Marinha nem sequer lembra-se de
ajudá-lo pelo fim da chibata, um fato marcante na sua história, mas sufocado
pelas batalhas dos almirantes. Casou-se com Marieta, constituiu família e veio a
falecer no dia 6 de dezembro de 1969, no Rio, vítima de um
câncer.
As pedras em seu caminho tortuoso
foram muitas e muitas, mas mesmo assim conseguiu forças para retirá-las, com
dignidade, sagrando-se um herói do povo, como disse Edmar Morel: "Você
dignificou a espécie humana. Adeus, João Cândido..." |
Um baiano dono de engenho tinha como prazer criar galinhas;
para muitas aves, apenas um galo. Quando o chefe do galinheiro era pintinho,
andava azucrinando o engenho. Num desses dias, o dono mal humorado
desabafou:
"__Esse bicho parece Exu. De
pinto, só tem a aparência". Exu (quando é mal cultuado faz maldade) sentiu-se
ofendido. Preparou a vingança. Passou a comandar o pinto. Ao virar galo
mostrou sua valentia. Ganhou apelido de "Maioral" do zelador do galinheiro, pois
se sentia o próprio rei do terreiro. Todo galo que aparecesse por lá ele
expulsava; caso insistisse, teria a morte decretada. As galinhas submissas o
respeitavam como filhas de pai bravo. O medo era tanto que não conseguiam manter
a postura de ovos de antes. Enraivecido o dono
chama o zelador:
"Ôh bichinho! Me diga aí o
que está acontecendo com a produção de ovos? Houve uma queda bastante
acentuada! __A culpa é do galo. __Ah! então é do valentão. Compre um galo
bom de briga, vou conferir sua valentia".
Conseguiram um galo da raça "índia", de postura de bicho brigão.
Maioral, ao ver seu rival, nem se tocou: ciscou, bateu asas, ergueu o pescoço e
partiu para briga. Bicada vem, esporada vai. Maioral preparou o ataque fatal,
uma bicada na crista, causando o tombo letal do inimigo. Estufou o peito
cacarejando:
"__Akukó mêji kósókó ni bôdi
(dois galos não cantam no mesmo terreiro)".
O
dono sentiu-se desafiado. Mandou matar o brigão, mas ele
desapareceu.
"__Alguma urucubaca (feitiçaria
tem protegido esse galo endiabrado, - desconfiou o dono - qual
será?
__Não sei - respondeu o zelador - na
casa do Oluwô sabe. É só jogar os búzios.
__Vá saber!
Chegando lá o zelador
ouviu do velho:
"__Mê fi, diz a sê sinhô, ki
u ki êci galú tem ni koripú, é Exu. Pregunte a êli, se num lembra diki galú era
píntú, ki pintava kumo tudo mininu pinta a ki êli dici uma vez pra pintú: Ocê é
um Exu. Di galú ocê só tem u forimáto. Puriço. Exu dêxo pintú crêcê, agora di
galú gazeno êci brinkadêra pra si vingá delê, pra ki êle nunka maio pintú, nem
di Exu. Si êle kê fazê ebó (sacrifício), pidindo perdão pra Exu, êli paga o
nêgo, nêgo fazê trabaio. Exu peridôa, num atrapaia mai êli e galú vai fazê
têreru vóritá ki éra anti".
Diante da
resposta do babalaô, o dono do engenho lembrou-se da ofensa que fizera a Exu.
Mandou o pai-de-santo fazer ebó, pedindo perdão ao Exu.
Conta a lenda que, após o despacho, o galo deixou seu orgulho ferido
de lado, não mais malinava, reinando a normalidade no galinheiro. Até as
galinhas passaram a botar regularmente. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário