CABOCLINHO NÃO É ÍNDIO AMERICANO
Rugendas, já colocava a questão da identidade brasileira, tomando por base a
originalidade nacional. Em termos de cultura, tudo era explicado segundo a “mistura das três
raças”. Johann Moritz Rugendas (1808/1858), foi um pintor que viajou por todo Brasil, de
1822 a 1825, pintando os costumes e a população brasileira. Foi atraído pelo argumento da
“
combinação do ambiente tropical com os usos e costumes exóticos”.
Jean de Léry, um francês que esteve no Brasil, no século XVI, já assinalara o
significado da ritualização para os indígenas e Rugendas entendeu que, dos grupos selvagens,
o poder da representação havia sido transposto para a sociedade brasileira em geral. Sobre
os índios, Rugendas dizia que “
em todas as circunstâncias (...) que os reúnem em grande
número, verifica-se entre eles algo semelhante a uma festa
”.
Através de um processo mimético, o padre Aspicuelta Navarro imitava atitudes dos
feiticeiros indígenas em suas pregações. A adaptação dos cerimoniais dos índios, bem como
de suas músicas e danças, levou Anchieta a um exercício constante: os famosos autos do
Apóstolo do Brasil
, nas igrejas, representavam cenas “de gosto” indígena; isso motivou
contra ele uma advertência expressa pelo padre-geral, responsável pela Ordem dos Jesuítas
no Brasil.
O
carum é uma das principais cerimônias da vida dos tupinambás, quando do
nascimento dos filhos, da primeira menstruação das moças, das cerimônias mágicas que
antecediam a partida para a guerra ou o seu retorno, do trabalho coletivo na lavoura e todas
as assembléias em busca de soluções dos problemas importantes, deveriam, para bom
termo, serem celebradas com muita
chica, que seria, segundo as descrições, “álcool
embriagante feito do suco do milho”. A ingestão de bebida fermentada, todas as vezes que
entrava em jogo o interesse da comunidade, sugere que esses atos se revestiam de caráter
ritualístico que, sendo imitados, leva à suposição da organização de modelos de festas.
O carnaval, nesse sentido, poderia facilmente ter sido adaptado. A conexão existente
entre o sentido cênico, representado, desses festivais indígenas e a “borracheira organizada
para festejar” permite supor a transposição dos rituais indígenas para a origem brasileira do
carnaval. É um exercício muito fácil a identificação das danças indígenas em algumas práticas
carnavalescas. Muitas alegorias, ainda vivas, são assemelháveis às dos indígenas brasileiros, o
uso de máscaras de animais, por exemplo.
O viajante Ferdinand Dennis (1798/1890), autor francês, esteve em viajem à América
do Sul, de 1816 a 1821. Na sua obra
Brasil, registra descrição detalhada das festas e
mascaradas dos índios, mostrando as relações totêmicas manifestadas nessas procissões
festivas, aliás comuns em toda a América. Esse fato poderia explicar a constatação de uma
espécie de carnaval de matriz indígena, encontrado com vigor, não só no Brasil, mas
principalmente na Argentina, Bolívia, Peru, México e Colômbia.
Dennis, revivendo as mesmas observações de Jean-BaptisteDebret (1768/1848),
artista francês, que produziu valiosas litografias que descrevem o povo brasileiro, demonstra
que a representação dos indígenas obedecia a uma história onde os participantes se
travestem de animais.
Fato concreto é que no carnaval brasileiro são refletidas, em profusão, as heranças do
nosso povo nativo, no uso de arcos e flechas, bem como de colares de dentes e unhas, os
quais, transfere sempre nossa imaginação para o mundo indígena. Os famosos blocos de
índios existem em muitas cidades do interior, particularmente no Nordeste.
Dentro do carnaval urbanizado das grandes cidades brasileiras, é possível detectar
três fases muito distintas da representação do índio. Numa primeira etapa, mais recuada no
tempo, é marcada pela presença nos imensos blocos de índios, quando uma multidão saía
com penas coloridas, colares, cocar, arco e flecha; também, nesse caso, as máscaras de
animais apareciam aqui e ali, sem contudo representar um bloco por inteiro. Em outra fase,
pela influência dos filmes de bangue-bangue, dos “índios brancos” canadenses, dos
apaches,
comanches, sioux, cheienes
, peles-vermelhas que se mostram com trejeitos de quem fuma o
cachimbo da paz e usa machadinhas, rifles, cavaleiros experientes, tudo no mais puro estilo
western
. A terceira manifestação dos índios no carnaval brasileiro se dá quando algumas das
suas vivências se encaixam no enredo de alguma escola de samba, quase sempre derivado de
sugestões literárias e ecológicas.
O reconhecimento do valor indígena apenas se verificou nos grupos de poder no
Brasil enquanto representava uma espécie de metáfora favorita para os modernistas de
1922. Fora dessa etapa, o que se nota é um desprezo constante ao índio.
Na verdade a Igreja Católica Romana destruiu o folclore ameríndio e o substituiu pelo
folclore artificial. Os jesuítas fixaram os índios em vilas, fazendo desaparecer o modo de vida
nômade de muitos povos indígenas, que fazia parte de seus costumes. Nas vilas se
concentravam os elementos de vários povos; essa heterogeneidade de membros de tribos
diferentes coabitando, contribuiu para a destruição de suas tradições. Nos colégios,
os piás,
crianças indígenas, foram afastadas da influência dos pajés, dos mais velhos; desgarradas,
portanto, dos costumes tradicionais do seu povo.
Os jesuítas, para atraí-las, lançaram mão da música e do canto. Conservaram, dessa
forma, muitas danças indígenas com melodias católicas romanas, as quais os índios
dançavam nos ofícios religiosos, pois o povoamento se deu através das grandes festas da
Igreja Católica usadas para impor aos povos do Novo Mundo a religião romana.
No carnaval pernambucano há mais de vinte tipos de agremiações. Tais grupos são
divisões por categorias, geralmente da mesma profissão, ocupação ou que admirem algo que
se torne comum, dentre elas, os Caboclinhos ou Cabocolinhos.
A presença, originariamente, dos caboclinhos é encontrada nos folguedos de Alagoas
e Paraíba, que migraram para o carnaval de Pernambuco. Esses, por sua vez, assemelham-se
ao
caiapó paulista, mais simples, porque pouco vai além do cortejo. Os caiapós são
encontrados também no sul de Minas Gerais e em Góias, fazendo parte dos folguedos
natalinos. No Ceará encontra-se o
torém, dança de origem ameríndia que não pode ser
confundida com o toré, que é uma cerimônia indígena.
É comum haver confusão entre algumas figuras de determinadas agremiações
carnavalescas. Em Pernambuco, os personagens mais confundidos são os tipos indígenas,
que participam de quatro tipos de agremiações distintas. Os que usam arco e flecha na mão
(preacas) são das
Tribos de Caboclinhos; os que carregam machadinhas e pequenos escudos
são das
Tribos de Índios; os vestidos como índios americanos, são formadores das Turmas.
Nos
Maracatus Rurais, encontramos mais dois tipos, os “Caboclos de Pena, Reamar ou
Tuxáus”, que usam compridos capacetes que formam coroas de penas e os “Caboclos de
Lança”, que carregam chocalhos nas costas, surrão e conduzem uma enorme lança (guiada)
nas mãos.
Sem dúvida, uma das mais belas manifestações do carnaval pernambucano está na
evolução das Tribos de Caboclinhos que passam, quase que em disparada, pelas ruas do
centro e dos subúrbios ao som de um pequeno conjunto e na marcação das preacas, a
produzir um estalido característico na percussão da seta contra o arco, com seus estandartes
esvoaçantes.
Se no maracatu está toda a herança das nações dos negros africanos, no caboclinho
vamos encontrar a presença do índio brasileiro que, como primitivo dono da terra, mantém
durante o carnaval as suas danças e lendas que contam a glória dos seus antepassados.
Caboclinhos, ou como na fala popular cabocolinhos, é um grupo específico de homens
e mulheres, trajando vistosos cocares de penas de avestruz e pavão, com saias também de
penas, trazendo adereços nos braços, tornozelos e colares (também em penas). Desfilam em
duas filas fazendo evoluções das mais ricas ao som dos estalidos secos das preacas,
abaixando-se e levantando-se com agilidade, como se tivessem molas nas pernas, ao mesmo
tempo que rodopiam apoiando-se nas pontas dos pés e calcanhares.
Com certeza o caboclinho é uma das presenças mais originais do carnaval do Recife,
sendo o grupo formado por: cacique, mãe-da-tribo, pajé, matruá, capitão, tenente, portaestandarte,
perós (meninos e meninas), caboclos-de-baque, cordão de caboclos e cordão de
caboclas; os músicos geralmente são em número de quatro. O conjunto é formado pela
inúbia (um pequeno flautim de taquara), caracaxás ou mineiros, tarol e surdo. A beleza
plástica das jovens índias, a forte coreografia dos caboclos e a variedade de cores do
conjunto, dá um toque de destaque ao grupo.
Será que todas estas heranças indígenas, impregnadas em nosso carnaval
pernambucano, podem nos remeter a cidade de Nova Orleans, em Louisiana, nos Estados
Unidos?
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