quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

R

ELIGIÕES: A MATRIZ AFRICANA E SEUS REFLEXOS AFROBRASILEIROS

Ademir Barros dos Santos

 

S
UMÁRIO

1. Teogonia e cosmogonia ..............................................................................................2

1.1. Gregos..................................................................................................................2

1.2. Judeus e cristãos ..................................................................................................2

1.3. Africanos..............................................................................................................2

2. Pontos de contato........................................................................................................3

2.1. Cosmogônicos......................................................................................................3

2.2. Teológicos............................................................................................................4

2.2.1. Religiões reveladas .......................................................................................4

2.2.2. Outras religiões filosóficas ...........................................................................5

2.2.3. Matriz africana..............................................................................................6

2.2.4. Comentando a similaridade ..........................................................................6

2.3. Divindades ...........................................................................................................7

2.4. Rituais ..................................................................................................................7

3. A cultura negra transatlântica .....................................................................................8

4. Afinal: candomblé, o que é? .......................................................................................8

4.1. Etimologia............................................................................................................8

4.2. Entendendo o candomblé.....................................................................................9

4.2.1. A visão de mundo .........................................................................................9

4.2.2. Quem são, afinal, os orixás? .......................................................................10

4.2.3. O demônio africano ....................................................................................11

4.2.4. O engano do sincretismo ............................................................................11

4.2.5. Rituais .........................................................................................................12

4.2.6. Não existe pecado... ....................................................................................13

5. Candomblé e umbanda..............................................................................................14

6. Lições perdidas do candomblé..................................................................................15

7. A disseminação da religiosidade.................................................................................15

7.1. Outras religiões com matriz africana.................................................................15

7.2. Sincretismo religioso .........................................................................................16

8. Preservação cultural....................................................... ............................................18

9. Conclusão..................................................................................................................20

Glossário........................................................................................................................21

Bibliografia....................................................................................................................23

2



1. T
EOGONIA E COSMOGONIA

Para entender as religiões, é preciso, antecipadamente, entender o que é
teogonia, ou

cosmogonia

, palavras que, juntas, apontam para o estudo que revela as relações entre os deuses,

bem como a interpretação do universo pela visão religiosa.

Isto posto, pode-se passar, a seguir, pela apresentação de algumas das principais visões

teogônicas que, de alguma forma, influenciam a visão ocidental atual.

1.1. Gregos


Presume-se que foi
Hesíodo1 quem reuniu, em seu poema Teogonia, os mitos de seu

tempo, de onde se extrai a base da religião grega, segundo a qual existiriam, primordialmente,

Gaia, a terra, convivendo com Tártaro, a escuridão primeva, e Eros, a atração amorosa; deles,

foram gerados Hemera, o dia, Nix, a noite, Urano, o céu, e Ponto, a água primordial.

A seguir, descendendo de Urano e Gaia, surgem os Titãs, Titânides, Cíclopes e outros

seres; o titã Chronos, vencendo Urano, toma seu lugar; mas termina vencido pelo próprio filho,

Zeus, que o destrona e se torna o mais poderoso dos deuses, pai de todos os homens, além

de senhor das chuvas, raios e tempestades.

Zeus, representando o Céu, casou-se com Hara, representante da Terra, provocando,

assim, a união entre estes dois universos
 

1.2. Judeus e cristãos


Segundo o Gênesis, primeiro livro da Bíblia, Deus criou Adão do barro, e deu-lhe vida.

A seguir, deu-lhe Eva, a mulher com o qual veio a ter três filhos: Caim, Abel e Set.

Caim, matando Abel, foi amaldiçoado e banido da família; na descendência de Set vieram

Noé, Abrão, Isaque e Jacob/Israel, patriarcas dos israelitas e fundadores do judaísmo, de

onde provém, há mais de dois mil anos, o cristianismo.

1.3. Africanos


A África, ao norte do Saara, foi totalmente dominada pelos muçulmanos por volta de

700 d.C.; mas, ao sul do deserto, permaneceu viva a religião original, animista, especialmente

aquela praticada na costa atlântica da África, entre o entorno do Golfo da Guiné e Angola,

região de onde provêm as manifestações religiosas negras das Américas.

Nesta teogonia, a base yorubana conta que Olodumaré, o Senhor Supremo do Destino,

encarregou Oduduwa de criar a vida humana; este uniu-se a Olokun, gerando três filhos, que

tomaram os nomes de Ogum, Ishedale e Okanbi.

Da linhagem de Ogum, nasceram os orixás que não viveram; da princesa Ishedale nasceram

as deusas, conhecidas por Ayabás; de Okanbi, nasceram os reis e heróis deificados, dos

quais alguns são conhecidos no Brasil, hoje, como deuses/orixás.

Para prosseguir, é necessário compreender o significado dos nomes acima citados:

Olodumaré Olé = senhor; Odu = destino; Maré = supremo Senhor supremo do destino

Odudwa Odu = fonte, destino; Da = geradora; Iwá = vida Fonte geradora da vida

Olokun Oló = senhora; Okun = mar Senhora do mar


2. P
ONTOS DE CONTATO

Conforme se verá a seguir, as religiões acima abordadas trazem, entre si, diversos pontos

em comum, dentre os quais:

2.1. Cosmogônicos


Dizem os yorubanos que o Senhor Supremo do Destino encarregou, à Fonte Geradora

da Vida, a criação da humanidade; esta, unindo-se à Senhora do Mar, gerou três filhos, dos

quais um não produziu descendência; de outro, surgiram as yabás; do terceiro, os orixás.

Comparando-se este mito àquele grego, onde Eros uniu Urano e Gaia, da mesma forma

agiu Olodumaré quanto a Odudwa e Olokun; se, para os gregos, Zeus tornou-se pai da

humanidade, assim também Okanbi, para os yorubás.

À luz da fé judaico-cristã, é possível vislumbrar, em Odudwa e Olokun, mesmo que

com algum esforço, os mesmos Adão e Eva, ambos casais com três filhos: do casal cristão,

Caim e Set têm descendência, assim como Ishedale e Okanbi para a matriz africana.




Há ainda fontes
que identificam, em Odudwa, o mesmo conquistador caldeu Nimrod,

primo de Abraão e neto de Cam
 a cujos filhos que, amaldiçoados, viviam na África, teria ele

sido designado, por Olodumaré, para levar a remissão.

Este fato dataria, aproximadamente, de 1850 a.C., época em que Abrão deixou Ur, na

Caldéia, para tornar-se patriarca dos israelitas; reforce-se que Abrão, em suas andanças, esteve

no Egito que, como se sabe, fica na África, e se constituía na maior e mais poderosa civilização

de sua época.

Nimrod é citado, na Bíblia
como o primeiro homem poderoso sobre a Terra: é o fundador

de Babel, futura capital da Babilônia, onde se elevou a famosa torre que teria dado origem

aos diversos idiomas; também o é de Nínive, na região fenícia, além de outras cidades,

que se tornaram importantes à sua época.

2.2. Teológicos


Há, ainda, entre as mais difundidas crenças africanas e não africanas, identificações na

forma de entender a cooperação entre divino e terreno que, mesmo divergindo na interpretação,

não divergem na essência, conforme é possível demonstrar.

2.2.1. Religiões reveladas


Entendem que o mundo cósmico pode ser subdividido em quatro níveis:

1. Criador: autor de tudo, e ao qual tudo convergirá, ao final dos tempos;

2. Corte divina: composta por seres criados diretamente como espírito, sem estágio

material anterior;

3. Santificados: composto pela essência espiritual daqueles que, havendo sido matéria,

atingiram, por mérito próprio, nível de purificação tal, que os autoriza a aproximar-

se da corte divina;

4. Criação: matéria, onde está a humanidade.

Neste entendimento, deve haver esforço humano para disciplinar-se, o que permitirá,

3

por todas, Eduardo Fonseca Júnior. Dicionário Yorubá (nagô) - Português. 2 ed

4

filho de Noé; segundo a Bíblia, Cam viu o pai bêbado e nu após o dilúvio; Noé, em represália, amaldiçoou

Canaã, filho de Cam, já que este havia, assim como toda a família, sido abençoado por Deus ao entrar na arca.

Canaã gerou descendência na África, onde, mais tarde, os judeus tornaram-se povo – tendo em Canaã sua Terra

Prometida.


5

Gênesis 10, 6-12

5



ao fiel, atingir nível de purificação tal que lhe autorize a tornar-se santo e, ao final dos tempos,

aproximar-se do Criador, desfrutando a Graça e a Vida Eternas.

Esquematicamente, é o que se apresenta, abaixo:

2.2.2. Outras religiões filosóficas


Neste entendimento, do qual partilham, por exemplo, o hinduísmo e o kardecismo, o

destino da criação é purificar-se, quer queira, quer não.

Em outras palavras: é destino humano, cuja essência, na maioria das interpretações,

evoluiu de forças menores de criação – passando, até, pelo estágio de não vida – depurar-se,

purificando-se até tornar possível sua reintegração ou convivência com a divindade criadora.

Nesta visão, o ser humano vive várias vezes, aprendendo quando não-matéria, e sendo

testado quando rematerializado: se, nesta fase, ultrapassar as mazelas que a vida lhe apresenta,

poderá subir para o estágio de “espírito iluminado”, servindo como orientador e exemplo para

quem ainda se encontra em estágio inferior.

Caso contrário, libera sua essência / espírito / alma para novo aprendizado em plano

espiritual, retornando, posteriormente, para nova “prova”, em ciclo que só termina quando a

evolução, acima mencionada, é atingida.

Em algumas crenças deste modelo – o hinduísmo, por exemplo – o retorno pode ser

em forma inferior de evolução, visto que este acontece como teste, não como prêmio; em outras,

ao inverso – o kardecismo, aqui, serve como exemplo – o retorno não será, nunca, em

nível inferior, já que o teste, neste nível, já foi ultrapassado.

Para melhor visualização, eis, abaixo, o seguinte esquema:

6



2.2.3. Matriz africana


Neste entendimento, não há testes, nem purificações, nem nada similar; portanto, não

há mérito ou pena, decorrente da ação humana.

O que há, é a criação inteira, indissolúvel e interdependente: o ser humano é também

essência da criação, assim todo o universo; mas é resultado de tudo o que seus ancestrais – a

quem, até por isto, deve reverência ilimitada – fizeram; o que lhe dá a obrigação de produzir

prole e transmitir cultura, como honra àqueles que, no topo, descendem de seus orixás.

Como esquema, eis o que se nos apresenta:

2.2.4. Comentando a similaridade


Como visto, há similaridade suficiente, entre as diversas crenças, para que o conhecimento

delas evite qualquer estranhamento não devidamente embasado.

Isto porque todas se subdividem, hierarquicamente, em quatro níveis, e todas buscam a

aproximação da divindade, mesmo que por caminhos diversos.

7



Como decorrência, é de se crer que o conhecimento das diferenças não sustenta intolerâncias,

o que é tão comum entre elas, até porque o entendimento é tão possível que, na matriz

africana, a tolerância interreligiosa é marca indelével – e permanece, mesmo quando ofendida.

2.3. Divindades


É curiosa a identificação entre as divindades greco-romanas e as iorubanas, quer por

sua história ou lenda, quer por sua personalidade ou, ainda, pelas características de seu poder.

A título de exemplo, pode-se identificar, entre outros:

Orixá Deus greco-romano Característica



Oxalá Zeus / Júpiter O maior deus

Ogum Hefesto / Vulcano Deus do metal

Iansã Atena / Minerva Deusa da guerra

Oxum Afrodite / Vênus Deusa mais bela

Exu Hermes / Mercúrio Mensageiro


2.4. Rituais


Como outros pontos de similaridade, determinados rituais podem ser ligeira e imediatamente

identificados; senão, vejamos:

Água

Um dos principais elementos, indispensável a qualquer ritual de matriz africana; também

assim para os cristãos, para quem o batismo é sinal de renascimento e purificação, além

de primeiro e principal sacramento para os católicos; da mesma forma o é entre os hindus, que

se banham no rio Ganges para purificar-se; para judeus e muçulmanos, a lavagem ritual é obrigatória,

sendo grave ofensa sua abstenção.

Cabeça: a “antena” ritual

As religiões de matriz africana buscam harmonizar o ser humano com sua energia natural

- ou orixá - pelo ritual da “feitura”, quando a cabeça do iniciando é “preparada” para

“sintonizar” adequadamente a energia de seu orixá.

Pois bem: o ponto principal da cabeça do iniciando coincide, exatamente, com o chacra

cerebral dos orientais e kardecistas, assim como com a já atualmente quase não utilizada

tonsura católica, até há pouco de larga difusão entre todos os que faziam votos.

Por outro lado, os hindus e sikhs cobrem a cabeça com turbantes, para protegê-la ritu
8

almente, e a Bíblia dá informações precisas sobre o cuidado que os nazireus
6 devem ter com

seus cabelos; os tuaregues cobrem toda a cabeça, exceto os olhos, para protegê-la de possível

invasão demoníaca.

3. A
CULTURA NEGRA TRANSATLÂNTICA

É importante assinalar: tudo o que o africano escravizado conseguiu transportar consigo

através do Atlântico, foi sua filosofia, consubstanciada em religião: todos os demais laços

sócioculturais que lhe pertenciam, foram deixados em sua terra-mãe, assim como sua família,

seu “modus vivendi”, e qualquer outro referencial que pudesse ter.

Como conseqüência, perdeu ele não só a liberdade, mas toda a sua referência e cidadania;

não bastasse, desembarcado involuntariamente em nova terra, mudaram-lhe compulsoriamente

o nome, passando a atender por outro, agora cristão; mas, como subproduto involuntário,

os navios negreiros trouxeram poderosos clandestinos invisíveis: os orixás, que permitiram,

aos escravos, manter sua filosofia de vida, viva em sua religiosidade.

Mudaram-lhe a terra, o nome e a Lei; entretanto, como ninguém pode modificar, a seu

prazer, a crença de ninguém, é possível crer que a religião de matriz africana, que resolveu

chamar-se, por aqui, de candomblé, constitua-se na base de toda a cultura transplantada, pelos

traficantes negreiros, para fora da África.

4. A
FINAL: CANDOMBLÉ, O QUE É?

4.1. Etimologia


O verbete “candomblé” assim está definido, no
Dicionário Banto do Brasil (pg. 70),

de Ney Lopes:

(1)

Tradição religiosa de culto aos orixás jeje-nagôs. (2) Celebração, festa dessa

tradição; xirê.

(3) Comunidade-terreiro onde se realizam essas festas - De origem

banta mas de étimo controverso


. Para A. G. Cunha é híbrido de
candombe

mais o iorubá


ilê, casa. ... (destaques nossos)

É importante notar que o dicionarista atesta o “étimo controverso” e, mais adiante, o

híbrido de
candombe mais o iorubá ilê, casa; no mesmo dicionário, o verbete candombe está

6

ver Números 6, 1-21

9



assim definido: “
(1) Batuque, dança de negros ...”

Portanto, o étimo
candomblé pode ser entendido como “casa de batuque, de dança de

negros”, não trazendo, originalmente, nenhuma conotação religiosa; mas sendo, sim, entendido

depreciativamente no ambiente escravista em que aparece; assim também outras denominações

regionais que a religião recebe ao longo do Brasil, tais como
tambor de mina e batuque;

quanto ao termo
santeria, utilizado nos países de fala castelhana, não significa, a rigor,

absolutamente nada.

Como curiosidade, é possível que a palavra candomblé, se formada por
candombe, de

origem bantu, mais
ilê, iorubana, ateste o surgimento, aqui no Brasil, de novo idioma de base

africana, resultante da mistura dos diversos falares trazidos, da terra mãe, para a terra comum

da senzala.

4.2. Entendendo o candomblé

4.2.1. A visão de mundo


Já é tempo de verificar em que o candomblé confia; e vai aqui a primeira surpresa: o

candomblé não é magia, e não se dispõe a mudar o mundo através de sortilégios... !

Como visto, para o yorubano, o mundo foi criado a mando de
Olodumaré, que alguns

autores
7 identificam com Jeová, o Deus judeu dos Exércitos.

Entretanto Jeová, enquanto deus judeu e conforme apresentado na Bíblia, selecionou

um povo dentre toda a criação; somente após o advento de Jesus passou ele a ser Deus menos

exclusivo, pois o Messias trouxe a Boa-Nova: os gentios podiam fazer parte do povo escolhido,

desde que aceitassem o Pai como único Deus, e vivessem segundo Suas orientações
8.

Já Olodumaré, nunca se dispôs a selecionar um povo dentre todos, posto que é deus de

toda a criação; ao contrário: segundo o candomblé, concedeu ele, à criação, sua energia que,

em linhas gerais, consubstancia-se nos
orixás que, ali, são cultuados.

Portanto, os orixás são sujeitos a Olodumaré que, do alto de sua onipotência, onipresença

e onisciência, não tem motivos para interferir no andamento do mundo; isto porque, se é

deus que tudo pode, em tudo está presente e tudo sabe, não há, mesmo, porque interferir - não

necessita gerir nada, posto que tudo sabe, tudo pode, e faz o que bem quiser.

A “gerência da criação” - e o candomblé entende por criação toda a natureza, não só o



 
 



ser humano ou os seres vivos - cabe aos orixás: são eles a alma das coisas criadas, e “habitam”

nos ambientes que lhes são dedicados.

Por outro ângulo: aos orixás é dada a energia da natureza, que eles comandam a favor

da criação; já os homens, segundo a fé africana, possuem maior afinidade com determinadas

fontes energéticas, e são considerados “filhos” do orixá que comanda estas fontes; ao candomblé,

cabe harmonizar o “filho” com sua energia, bem como com todas as demais que, com

ela, podem interferir.

Portanto, a busca final do candomblé nada mais é que a busca da harmonia entre Homem

e Natureza, não a solução de problemas individuais pela oferta de contrapartida aos deuses,

ou a produção do mal a quem quer que seja.

4.2.2. Quem são, afinal, os orixás?


São forças inteligentes da natureza, que influenciam os homens; o verbete
orixá9, em

yorubá, significa algo como “dono da cabeça”; em bom português, entende-se que se trata da

energia natural, embora inteligente, que age sobre as reações e a personalidade individuais.

Há autores
10 que identificam a origem histórica dos orixás com a fundação, por Odudwa

e seus dezesseis companheiros, da cidade africana de Ifé; a descendência direta destes

fundadores – que os gregos chamariam de semideuses - transformar-se-ia nos primeiros orixás.

Segundo esta corrente, estes homens trariam sua adaptabilidade às forças da natureza -

o axé - cada um a seu modo; seus descendentes, homens comuns, são os “filhos de santo”, por

transmissão genética; por isto, na região de base yorubana, cada povo tem seu próprio orixá, o

que justifica, assim, duas das principais características do culto praticado:

1. não há proselitismo ou preconceitos de qualquer espécie. Segundo “Fatumbi” Verger:

uma das características da religião dos orixás é seu espírito de tolerância e

ausência de todo proselitismo. Isso é compreensível e justificado pelo caráter

restrito de cada um desses cultos aos membros de certas famílias. Como

e por que as pessoas poderiam exigir que um estrangeiro participasse do

culto, não tendo nenhuma ligação com os ancestrais em questão aqui


 
 
 
 
 



2. Os orixás são forças naturais; no candomblé, são eles considerados e cultuados

como almas da natureza; daí o epíteto “animista”, aplicado ao culto dos orixás; erroneamente,

por sinal: o latim “anima” nada mais significa que “alma”, e dela derivam

palavras portuguesas tais como “animal”, “ânimo”, etc..., e “animista”; portanto,

“animista” é todo aquele que crê que a natureza possui uma energia intrínseca,

ou seja, uma “alma”, que interage com as demais manifestações naturais.

Crença não exclusiva do candomblé. Nada mais que isto.

4.2.3. O demônio africano


Não existe! Pelo menos, na forma cristã de vê-lo; embora o sincretismo e a Igreja tenham

identificado Exu com o Demônio, tal comparação não tem qualquer fundamento.

Exu e o Diabo cristão, com certeza, não só não são a mesma entidade, como não são

nem parentes afastados - o Diabo simplesmente não existe, em África, e Exu é um orixá, como

todos os outros.

Como todos os outros, não: é especial, visto que faz a comunicação entre os homens e

os demais orixás, dando-se o direito, portanto, de ser mais irascível, exigente, etc., etc.

Mas, por outro lado, também por fazer a comunicação entre homens e orixás, pode se

dar ao direito de ser mais atencioso, cordato, etc., etc., que qualquer outro orixá
12.

É ele o provocador das mudanças e, por isto, quem preside os avanços tecnológicos, o

movimento, o Caos; e o sexo que, como ato multiplicador da humanidade, é, por isto mesmo,

difusor do
axé.

Exu é instável; mas é a ele que todos devem respeito e culto.

4.2.4. O engano do sincretismo

13

Já aqui foi visto que, na África, os orixás podem ser considerados como regionais; entretanto,

nas Américas, estão eles juntos e atuam juntos, em qualquer casa de candomblé; isto,

como decorrência natural da união de diversos povos no mesmo destino comum: a senzala.

Outras manifestações religiosas daí nascidas não surgem de qualquer sincretismo original

da religião africana recombinada com crenças de fora da África, mas, sim, do cando

 
blé de senzala com estas crenças: assim a umbanda, o toré, o jaré, o candomblé de caboclo, o

xangô, o catimbó, a macumba, etc.

Portanto, para que se entenda o candomblé nagô, é preciso entender, antes de mais nada,

que toda a tradição religiosa africana permanece praticamente inalterada no Brasil, neste

culto, o que é confirmado por pesquisadores tais como Pierre Verger
14: segundo ele afirma, o

propalado sincretismo entre religião africana e catolicismo é pura besteira, já que o africano,

possivelmente auxiliado pelos padres de então, simplesmente escondeu suas convicções sob o

manto católico; até porque a época da escravidão coincide com o auge da Inquisição!

Isto é, e segundo ele: as primeiras menções às religiões africanas no Brasil são de

1680, por ocasião das pesquisas do Santo Ofício, onde “Sebastião Barreto denunciava o costume

que tinham os negros, na Bahia, de matar animais, quando de luto [...] para lavar-se no

sangue, dizendo que a alma, então, deixava o corpo para subir ao céu”
15.

Sobre o tema, registra mais, Verger:

Por volta de 1780, em documentos relativos a este mesmo Santo Ofício, há

menções sobre pretas da Costa da Mina que faziam bailes às escondidas,

com uma preta mestra e com altar de ídolos, adorando bodes vivos, untando

seus corpos com diversos óleos, sangue de galo e dando a comer bolos de

milho depois de diversas bênçãos supersticiosas [...].


16

Portanto, a Inquisição do Santo Ofício, perseguindo hereges e destinando-os à morte

em nome do mesmo Cristo que nos trouxe a vida, pode ter sido fator de fortalecimento da fé

africana que, então, escondeu-se sob manto católico, amalgamando-se.

Outra possibilidade é a de que os escravos pedissem, a seus donos, autorização para

realizar festas na senzala –
candombe no ilê – em homenagem a santos católicos que, de alguma

forma, lembram os orixás; nestas ocasiões, a festa de senzala honrava, na verdade, o

orixá; mas, ao escravista, pareceria resultado positivo da ação de catequese...

4.2.5. Rituais


Segundo ainda nos ensina Verger: “os terreiros de candomblé são os últimos lugares

14

este pesquisador francês dispôs-se a estudar a religiosidade africana despretensiosamente, o que lhe rendeu

dois prêmios: um título honorífico da Sorbonne, e o título religioso de babalaô (senhor da interpretação sagrada),

na Nigéria; parece ter-se dedicado mais ao segundo...


15

Pierre “Fatumbi” Verger. op. cit., p. 26

16

idem, ibidem

13



onde as regras de bom-tom reinam ainda soberanamente.”
17; isto, porque o candomblé dito

nagô, é organizado como corte, onde reina, absoluto, o sacerdote, pai ou mãe-de-santo.

Parênteses: mãe-de-santo, filha-de-santo, etc., e seus correspondentes masculinos são,

simplesmente, formas erradas, embora consolidadas, de falar.

Isto porque, de fato, referem-se a
mães-no-santo e filhas-no-santo: passado o ritual de

iniciação, o iniciado é considerado como novo integrante da família daquela casa de candomblé,

onde viveu este ritual; ali, adquire “mãe”, que é quem efetivamente o iniciou; “mãe pequena”,

ou madrinha, quem o auxiliou e conduziu durante a iniciação; “irmãos”, aqueles que

também foram iniciados pela mesma mãe; assim, também, toda a parentela, agora formatada

em relação a esta sacerdote. Fecha parênteses.

Todo o rito social daí decorrente deve ser respeitado indiscriminadamente. Respeita-se

também, e sobretudo, os
irmãos-de-santo mais velhos; de tal forma esta prática é profunda

que, até que se completem sete anos de feitura
18, o novo iniciado é considerado tão aprendiz

quanto um irmão mais novo, uma criança em fase pré-escolar.

Além disto, deverá demonstrar, sempre e por toda a vida, respeito para com todos aqueles

que tenham maior tempo de iniciação - mesmo aqueles cronologicamente mais novos -

a ponto de lhes pedir a bênção; e o respeito social é tão grande e tão entranhado que, segundo

já dito: “os terreiros de candomblé são os últimos lugares onde as regras de bom-tom reinam

ainda soberanamente.”

4.2.6. Não existe pecado...


No candomblé, não há pecado na forma como o judaísmo-cristianismo o entende; portanto,

não há julgamento final ou qualquer outra crença daí decorrente; há, sim, o respeito ao

orixá, que deverá receber cuidado especial, por protetor específico de seu protegido.

Aliás, reafirme-se, o candomblé não tem qualquer preocupação com julgamentos, passados

ou futuros, destinos da alma, etc.: sua finalidade é o bem-estar de seu iniciado, o que

deve ser proporcionado, incondicionalmente, pelo sacerdote... que não deixa de ser mãe ou

pai e, como tal, para ensinar, também pode castigar o filho.

A responsabilidade quanto a seguir ou não os conselhos sacerdotais e do orixá, enfim,

é do devoto, que arcará com os benefícios e castigos daí advindos. Nada mais.

Decorre que viver bem ou não, adaptado ou não à natureza, em obediência ou não ao

17

idem, p. 30

14



orixá é, em última análise, responsabilidade pessoal do iniciado, que decide e define o que

espera do candomblé; e responde por sua decisão.

Daí que não se espera, no candomblé, qualquer prêmio ou castigo - somente o bemestar

possível; afinal, espera-se que o orixá, entidade divinizada, saiba melhor que seu protegido

o que é bom para quem o procura e cultua – ou não seria orixá!

5. C
ANDOMBLÉ E UMBANDA

Para melhor entender o candomblé, talvez se mostre útil compará-lo com a umbanda,

com ele sempre confundida, aqui no Brasil.

Primeiramente, é salutar saber que o candomblé, ao contrário da umbanda, não faz culto

às almas de mortos, tais como caboclos, pretos-velhos, boiadeiros, etc.: somente o orixá é

homenageado e cultuado, ali.

A grande diferença ritual entre candomblé e umbanda, portanto, está em que os “espíritos”

que, na umbanda, dão consultas pessoalmente, à moda kardecista, assim não o fazem no

candomblé, onde toda a comunicação com o mundo extraterreno acontece através de oráculos

- jogo de búzios, opelê-ifá, alcobaça, obi.

Um orixá só comparece, “pessoalmente”, às festas religiosas; mesmo aqui, não fala;

via de regra, nem ao menos abre os olhos; somente comparece, é vestido adequada e ricamente,

agradece, com gestos comedidos, a homenagem recebida; cumprimenta os principais da

casa, dança muito, despede-se e se retira. Não dá consultas. Sequer fala.

Outra diferença marcante: no candomblé, nada acontece sem a consulta, por oráculos,

aos orixás; tudo, até cargos hierárquicos, são determinados por este meio e, uma vez determinados,

não serão mais humanamente contestados.

Outra mais: o “filho de santo” apontado pelo candomblé está sujeito a rituais de recolhimento

isolado e dedicação exclusiva, o que não ocorre na umbanda, onde a manifestação

afro-índio-cristã é similar à kardecista: desenvolvimento, aprendizado e dedicação.

No candomblé e, por vezes, também na umbanda, tem-se por obrigação a oferta de animais

à divindade, o que também se encontra no livro de Levítico
19, especialmente em seus

capítulos iniciais; porém, nas oferendas do candomblé, retiradas as partes oferecidas ao orixá,

o restante, normalmente, será partilhado com todos os que participam desta oferenda - inclu-

18

“feitura”, aqui, com o sentido de ritual de iniciação

19

terceiro livro da Bíblia, que dita as obrigações dos sacerdotes, e do povo judeu em geral, para com seu Deus.

15



sive assistentes filiados a outra fé - até por imposição ritual: é o compartilhamento de todos no

banquete dos orixás.

6. L
IÇÕES PERDIDAS DO CANDOMBLÉ

Ponto interessante da religiosidade de matriz africana: desde sempre traz ela conceitos

que se apresentam como verdadeiros pilares da fé, e que foram perdidos pela civilização ocidental

quando esta dominou o mundo, após a expansão européia.

Em primeiro lugar, há o respeito à natureza: o orixá é a alma desta, existe nela e dela é

interdependente; sem natureza, não há candomblé, posto que não há “morada” para o orixá.

“Onde está a natureza, lá está o orixá” é o primeiro conceito que o adepto do candomblé deve

entender. Não é ecologia: é profissão de fé.

A seguir, o imenso respeito e submissão aos anciãos: na África, esta é a religião, e todos

nascem adeptos a ela. Isto porque, nesta fé, os anciãos estão há mais tempo recebendo o

axé e convivendo com os orixás, conhecendo-os, em decorrência, mais profundamente, e recebendo,

deles, proteção, há mais tempo, e com maior intimidade e intensidade.

Ressalte-se que este respeito ao ancião decorre da própria religiosidade: se o orixá é

considerado como antepassado, o mais velho está mais próximo do orixá, pois, entre os dois,

há menor número de gerações; além disto, o ancião é repositório de toda a história do povo e

de sua cultura, está mais perto dos fatos passados, foi testemunha ocular e participante de diversos

deles, e teve mais tempo para aprender; em conseqüência, melhor condição de ensinar.

Daí o ilimitado respeito.

Por fim, o respeito às mulheres: é a elas que cabe a maternidade e, portanto, a geração

de novos “filhos” dos orixás, pela produção da prole, de onde tanto a linhagem quanto a perpetuação

religiosa decorrem.

7. A
DISSEMINAÇÃO DA RELIGIOSIDADE

7.1. Outras religiões com matriz africana


No Brasil, além do candomblé nagô, encontram-se muitas outras religiões de fundo africano;

todas muito similares, diferenciadas, principalmente, pelo grau de sincretismo com

crenças de origem indígena e/ou europeia.

A presença e desenvolvimento dessas religiões de matriz africana no Novo Mundo,

16



pode ser entendida como conseqüência, imprevista, do tráfico de escravos que, trazidos para

os diferentes países das Américas, e provindos de diferentes regiões da África ao longo da

costa ocidental, aqui se combinaram em formas novas, por aglutinação ou não.

Isto porque, deste lado do Atlântico, desenvolveu-se e misturou-se verdadeira multidão

de escravos que não falavam o mesmo idioma, possuíam hábitos de vida diferentes e religiões

distintas, embora similares; em comum, não tinham senão a infelicidade de estar, todos

eles, reduzidos à escravidão, dispersados e rejuntados em desconhecidas senzalas, além de

longe das terras e sociedades de origem, compulsoriamente abandonadas; restou-lhes, apenas,

a recombinação e o amálgama, até como única forma possível de sobrevivência.

7.2. Sincretismo religioso


Segundo grande parte dos pesquisadores, cerca de dez a doze milhões de africanos foram

destinados, na África, à escravidão; cerca de quatro milhões, ao Brasil. O número pode

não ser exato
20; mas não exagera a realidade.

Mas, mais do que a gente preta, os navios negreiros transportaram, para o Novo Mundo

e para o Brasil, onde está o segundo maior contingente negro do mundo, os orixás, clandestinos

guardiões invisíveis da cultura africana.

Estes, simbolicamente, logo após aqui chegados, foram recebidos pelos mesmos santos

católicos que haviam protegido os interesses dos negreiros ao dar nome a seus navios; mas

que aqui tiveram o bom senso de realizar, em seguida, um exame de consciência, do qual resultou

radical troca de posição: passaram a proteger os escravos, ajudando-os a disfarçar-se,

religiosamente, perante seus senhores...

É certo que ajudaram estes escravos a lograr e despistar seus donos sobre a natureza

das danças que estavam autorizados a realizar, quando se reagrupavam, em “batuques”, por

nações de origem; estes senhores, vendo seus escravos dançarem de acordo com seus hábitos,

e cantarem utilizando seus próprios idiomas, talvez julgassem não haver ali senão divertimentos

de negros nostálgicos; só não desconfiavam que o que eles cantavam, no decorrer de tais

reuniões, eram preces e louvações aos orixás, seus deuses de origem
.

Quando precisavam justificar o sentido de seus cantos, os escravos declaravam que

20

dentre outros, Alberto Costa e Silva, A África explicada aos meus filhos; Mary Del Priore e Renato Pinto

Venâncio,

Ancestrais: uma introdução à África atlântica; JohnThornton, A África e os africanos na formação

do mundo atlântico.

17



louvavam, embora em seus próprios idiomas, os santos do Paraíso cristão; mas, na verdade, o

que pediam era ajuda e proteção a seus próprios deuses.

Daí o sincretismo se estabeleceu, que parece ter-se baseado, de maneira geral, sobre

detalhes das representações religiosas cristãs que poderiam lembrar certas características dos

deuses africanos.

Como exemplo: Xangô, deus do trovão, violento e viril, comparado a São Jerônimo,

catolicamente representado como ancião, calvo e inclinado sobre livros velhos? É que este

santo é freqüentemente acompanhado, em suas imagens, por um leão deitado a seus pés; como

o leão, para os yorubás, está entre os símbolos de realeza, São Jerônimo foi comparado a

Xangô, soberano deste povo, rei da cidade sagrada de Ifé.

A aproximação entre Obaluaê e São Lázaro é mais evidente: o primeiro é deus da varíola,

e o corpo do segundo é representado coberto por feridas.

Parece lógico que Iemanjá, mãe de numerosos orixás, tenha sido sincretizada com

Nossa Senhora da Conceição, e Nanã Buruku, a mais idosa das divindades femininas, comparada

a Sant’Ana, mãe da Virgem Maria. Aqui, não é preciso explicar mais nada.

A relação entre o Senhor do Bonfim e Oxalá, divindade da criação, é explicável, talvez,

pelo imenso respeito e amor que ambos inspiram; e pelo uso comum da cor branca.

Mais além: na Bahia, São Jorge da Capadócia é identificado com Oxóssi, deus dos caçadores;

mas, no Rio de Janeiro, é ligado a Ogum, deus da guerra; sendo São Jorge apresentado,

nas gravuras, como valente cavaleiro, armado de lança e matando o dragão enfurecido, é

fácil entender sua identificação com Oxóssi; quanto a Ogum, é deus guerreiro, assim como

São Jorge, que aparece montado num cavalo branco, com honras e roupas romanas e militares.

Na Bahia, porém, é com Santo Antonio que Ogum vai ser sincretizado, o que poderia

ser surpreendente, pois o santo português é representado com aparência suave e atraente, trazendo,

na mão, uma flor, e carregando o Menino Jesus; mas, foi ele chamado “martelador dos

heréticos”, pela violência verbal que usava para enfrentar hereges e sacrílegos.

Mas, segundo Verger, talvez a chave do mistério se encontre nas recordações de viagens

feitas, em 1839, por Daniel P. Kidder
21:

Uma frota comandada por luteranos deixou a França em 1595, com a intenção

de conquistar a Bahia. No caminho, os protestantes atacaram Argoim,

uma ilhota ao largo da costa da África, pertencente aos portugueses e, de-



21

apud Pierre Verger, op. cit. pg. 27

18


pois de se atirarem ao saque e à destruição, levaram, entre outras coisas,

uma imagem de Santo Antônio. Logo que prosseguiram viagem, foram atacados

por uma forte tempestade, o que causou a perda de vários navios. Os

que escaparam à tormenta foram acometidos pela peste, e durante essa provação,

por ódio ao catolicismo, jogaram a imagem no mar, após terem-na

mutilado com golpes de facão. O navio que a transportava chegou a um porto

de Sergipe, onde todos os que estavam a bordo foram presos. Mandados

para a Bahia, a primeira coisa que viram na praia foi a imagem que tanto

haviam maltratado [...] Os frades franciscanos levaram-na, em solene procissão,

para o seu convento [...] Mas os frades, mal-satisfeitos com a aparência

velha e feia da imagem, substituíram-na por outra imagem, mais

pomposa e elegante e que foi batizada com o mesmo nome, tendo, em princípio,

herdado suas virtudes [...] Santo Antônio foi alistado, como soldado,

no Forte da Barra, que tem o seu nome. Como soldado, recebeu regularmente

o soldo, até que foi promovido ao posto de capitão, em 16 de julho de

1705, pelo Governador Rodrigo da Costa. [...] Durante a última guerra

mundial, Santo Antônio foi promovido a major. [...]. Debret relata ‘as honrarias

militares concedidas a Santo Antônio nas diferentes províncias do

Brasil’. Fala, talvez, com exagero, do seu ‘título de marechal dos exércitos

do rei (João VI) e de comendador da Ordem de Cristo na Bahia, de coronel

da grã-cruz da Ordem de Cristo no Rio de Janeiro’, ou mesmo, mais modestamente,

de simples “cavalheiro de Cristo no Rio Grande”.



Pode-se inferir que os santos católicos, ao se aproximarem dos deuses africanos, tornaram-

se mais compreensíveis e familiares aos recém-convertidos: é difícil saber se esta aproximação

contribuiu efetivamente para converter os africanos, ou se os encorajou na utilização

destes santos para dissimular suas verdadeiras crenças.

Nina Rodrigues, segundo aponta Verger
22, opina que o sincretismo dos escravos “não

fez mais que justapor as exterioridades [...] do culto católico às suas crenças e práticas fetichistas,

que em nada se modificaram”, pois os adeptos do candomblé “concebem os seus santos

ou orixás e os santos católicos como de categoria igual, embora perfeitamente distintos”.

Desta forma, com o passar do tempo, a participação concomitante de negros, cada vez

mais numerosa, tanto nas religiões cristãs quanto nas de matriz africana, tornou-os tão sinceramente

católicos quanto ligados às tradições ancestrais, já que estas aceitam, indiferentemente,

adeptos de qualquer outra crença, desde que as respeitem.

8. P
RESERVAÇÃO CULTURAL

Conforme aqui exposto, a cultura africana foi preservada pela religiosidade: afinal,

conforme anteriormente visto, os negros só trouxeram, da África, sua religião; mas, precisa-

22

op. cit., pg. 28

19



ram escondê-la sob manto cristão.

Portanto, as casas de candomblé, extinta a escravidão, logo se tornaram centros de resistência

sóciocultural, conforme Jorge Amado tão bem retrata em
Tenda dos milagres e Jubiabá,

entre outras obras.

Ainda segundo Verger
23, “a primeira casa de candomblé de que se tem notícia é a Casa

Branca do Engenho Velho

, em Salvador/BA”; prosseguindo, ele informa que

assim como no resto do Brasil, a instituição de confrarias religiosas, também

em Salvador, separava as etnias africanas: os pretos de Angola formavam

a Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas

do Carmo, fundada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Pelourinho;

os daomeanos reuniam-se sob a devoção de Nosso Senhor Bom Jesus das

Necessidades e Redenção dos Homens Pretos, na Capela do Corpo Santo,

na Cidade Baixa; os nagôs, cuja maioria pertencia à nação Kêto, formavam

duas irmandades: uma de mulheres, a de Nossa Senhora da Boa Morte; outra,

reservada aos homens: a de Nosso Senhor dos Martírios.



Ainda segundo ele,

[...] várias mulheres [...] originárias de Kêto, [...] pertencentes à Irmandade

de Nossa Senhora da Boa Morte da Igreja da Barroquinha, teriam tomado a

iniciativa de criar um terreiro de candomblé, chamado Iyá Omi Àse Àirá Intilà,

numa casa situada na Ladeira do Berquo, [...] próxima à Igreja da Barroquinha,

naquela cidade.

O terreiro mudou-se por diversas vezes e, após haver passado pelo Calabar

na Baixa de São Lázaro, instalou-se sob o nome de Ilê Iyanassô na Avenida

Vasco da Gama, sendo familiarmente chamado de Casa Branca do Engenho

Velho.

Não se sabe com precisão a data de todos estes acontecimentos: isto porque,

no início do século XIX, a religião católica era ainda a única autorizada; as

reuniões de protestantes eram toleradas só para estrangeiros, e o islamismo,

que provocara uma série de revoltas de escravos entre 1808 e 1835, era

formalmente proibido e perseguido com extremo rigor; os cultos aos deuses

africanos eram ignorados, e vistos como práticas supersticiosas. Portanto,

eram clandestinos, e seus adeptos, perseguidos pelas autoridades.



Não se pode excluir a possibilidade de influências mútuas entre bantu e nagôs, levando

em conta que foram escravizados tanto congoleses e angolanos quanto gêges e yorubanos,

misturados e enviados para todo o Brasil; assim sendo, se a maioria dos desembarcados entre

Bahia e Pernambuco provinham da Costa dos Escravos e eram gêges e nagôs, os congoleses e

angolanos, de cultura bantu, foram importados por outras regiões brasileiras; mas todos acompanharam

as movimentações da economia, e estiveram, por si e por sua descendência,

sujeitos à venda, o que os misturou na casa comum da senzala cultural

 


 C
ONCLUSÃO

Note-se que mais de duzentas etnias entraram no Brasil pelos mercados de escravos, e

trouxeram, consigo, mais de duzentas facetas da mesma cultura, todas misturadas no caldeirão

do Novo Mundo; aqui, foram cozidas nas senzalas e temperadas por europeus, com especiarias

indígenas; assim, desenvolveram seu gosto típico que, hoje, se tornou inseparável e imprescindível

para o entendimento da cultura brasileira.

Por isto, a finalidade principal deste estudo é aguçar o interesse pela matriz cultural africana,

especialmente quanto à religiosidade, transporte e manutenção desta cultura; até porque

não parece possível entendê-la real e profundamente, sem que se entenda a religiosidade

que a permeia e baliza, indelével e inseparavelmente.

Portanto, se atingida esta finalidade, qualquer que seja a fé do estudioso da cultura brasileira

que o leia, o desenrolar deste estudo terá valido a pena.

21



G
LOSSÁRIO

(acrescido de alguns termos africanos utilizados no candomblé)


Abiã

não iniciado ritualmente

Adé

homossexual masculino

Aética

prefixo de negação a, mais ética, do grego ethos, comportamento; portanto,

aético é o que não se preocupa com o comportamento social

Ajeum

alimento

Anima

alma, em grego; força vital; espírito

Animista

aquele que crê na alma como força sobrenatural

Axé

poder que emana da divindade

Axexê

cerimônia em que o espírito do morto é recomendado aos orixás

Babalaô

senhor da compreensão, do entendimento com os orixás

Babalaorixá

sacerdote dos orixás

Búzio

concha utilizada, no candomblé, para comunicação com os orixás

Camarinha

quarto onde se processam rituais de iniciação e dedicação

Caos

desordem, em grego; inverso de Cosmos, ordem

Cosmogonia

do grego cosmos, mais gonia; início da ordem; estudo que revela as relações

entre os deuses, bem como a interpretação do universo

Cosmos

ordem, em grego

Cristaloterapia

cura pelo uso de cristais

Cromoterapia

cura pelo uso das cores

Deferente

com deferência, com respeito

Ebó

oferenda

Ebó-ori (Bori)

oferenda à cabeça do ofertante, visando torná-la mais receptiva à energia

do orixá

Ekedi

zeladora ritual; equivalente feminino do ogã

Epíteto

segundo nome ou apelido, que se junta ao nome para qualificá-lo

Étimo

palavra

Etimologia

ciência que estuda a formação das palavras e seu significado

Fitoterapia

cura pelo uso das plantas, quer em forma pura, quer como chás, etc

Geledé

sociedade de mulheres conhecedoras dos segredos dos orixás

Híbrido

resultante da mistura entre matrizes de origens diferentes

Ialorixá

sacerdotisa dos orixás

Iaô

recém iniciado no candomblé

Ibá

tigela de barro ou louça utilizada em rituais

22



Ilê

casa, local, aldeia; local de moradia

Intrínseca

que é essencial, está dentro, e forma o próprio conteúdo daquilo em que

se encontra

Irascível

irritável, sem paciência


o menor dos tambores rituais

Modus vivendi

do latim; modus, meio, forma; vivendi, da vida. Modo de viver

Nazireu

aquele que é destinado à vida religiosa, por si ou por seus familiares

Obá

rei, senhor

Ogã

zelador ritual - equivale ao diácono cristão

Oju

olho

Onipotência,

onipresença,

onisciência


atributos de Deus. Do latim
omni, tudo, mais o atributo: onipotência,

todo o poder;
onipresença, presente em todos os lugares; onisciência, que

tudo sabe

Ori

cabeça

Padê

oferenda a Exu

Peji

altar

Proselitismo

obtenção de adeptos, por argumentação e convencimento

Roncó

o mesmo que camarinha; quarto de recolhimento e iniciação

Rum

o maior dos tambores rituais

Rumpi

o tambor médio utilizado nos rituais

Sincretismo

junção de conhecimentos de diferentes ciências; absorção, por um ramo

do conhecimento, dos dogmas desenvolvidos em outro, similar ou não

Sortilégio

prática da magia, da adivinhação; simpatias mágicas

23



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