ELEMENTOS SAGRADOS - A ÁRVORE SÍMBOLO DA CONECTIVIDADE ENTRE O ORUN E AIYE
BAOBÁ
A
árvore é um dos símbolos fundamentais das culturas arcaicas. Os velhos
baobás africanos de troncos enormes suscitam a impressão de serem
testemunhas dos tempos imemoriais. Os mitos e o pensamento
mágico-religioso yorubá têm na simbologia da árvore um de seus temas
recorrentes. Na sua cosmogonia, a árvore surge como o princípio da
conexão entre o mundo sobrenatural e o mundo material. As árvores “(…)
estão associadas a ìgbá ì wà ñû – o tempo quando a existência sobreveio –
e numerosos mitos começam pela fórmula ‘numa época em que o homem
adorava árvores’…”.
Uma
das versões do mito cosmogônico relata que foi através do
Òpó-orun-oún-àiyé – o pilar que une o mundo transcendente ao imanente –
que os deuses primordiais chegaram ao local aonde deveriam proceder o
início do processo de criação do espaço material. Este pilar – muitas
vezes simbolizado pela árvore ou por seu tronco – é uma figura de
origem, é um signo do fundamento, do princípio de todas as coisas,
elemento de conexão entre a multiplicidade dos “mundos”. Mircea Eliade
vai chamá-la de “Árvore do Mundo”, “Axis Mundi”, “Árvore Cósmica”, cuja
função é a de elidir as diversas regiões do cosmo. Para boa parte das
tradições místicas e religiosas, os “mundos” dividem-se nos espaços
inferiores ou infernais, intermediários ou terrestres e superiores ou
celestes. A concepção católica cristã ainda compreende a existência de
outros “territórios” como o purgatório ou o limbo.
A
tradição yorubá fala na existência de nove espaços – orun mýsûûsán -,
estando quatro deles localizados sob a superfície da Terra – îrun isalû
mýrûûrin. Uma das divindades de origem yorubá de culto amplamente
disseminado no Brasil – Oya Ìgbàlû, mais conhecida como Yásan, cujo nome
deriva da contração da expressão ì yá-mesan-orun, a mãe dos nove orun –
possui forte relação com a origem do orun e com a árvore que liga os
“mundos”. Esta deusa num de seus epítetos é chamada de Alákòko, a
senhora do òpákòko, demonstrando a sua relação com a árvore-mundo
yorubá.
Um
dos mitos da criação conta que para cada ser humano modelado (a matéria
primordial era o barro) por Orisala criava-se simultaneamente uma
árvore. Òrì ñàlá é o grande pai da criação yorubá. Como divindade
primordial, está ligada a cor branca, e por isso é conhecido como um òrì
ñà-funfun (literalmente òrì ñà do branco). É interessante notar que em
Cuba há um costume de solicitar aos turistas estrangeiros que plantem
uma árvore antes de retornarem aos seus locais de origem, como forma de
permanecerem simbolicamente no país.
Um
outro mito relata a origem das árvores sagradas, especialmente o Iròkò.
O Iròkò é uma das espécies vegetais mais imponentes da terra yorubá. O ì
tan coloca uma interessante questão ontológica, propondo igualmente a
possibilidade de se pensar numa ontologia do sagrado na perspectiva das
expressões religiosas arcaicas. O mito, ao afirmar que “na mais velha
das árvores de Iroco, morava seu espírito”, coloca uma nítida distinção
entre ser e ente. Entre uma essência transcendente do sagrado e a sua
presença material no mundo, na mesma medida em que na mais antiga das
árvores mora o espírito. Porém, em toda a descendência desta velha
árvore habita o princípio dela mesma: não só geneticamente, mas
principalmente a sua sacralidade.
“No
começo dos tempos, a primeira árvore plantada foi Iroco. Iroco foi a
primeira de todas as árvores, mais antiga que o mogno, o pé de obi e o
algodoeiro. Na mais velha das árvores de Iroco, morava seu espírito. E o
espírito de Iroco era capaz de muitas mágicas e magias. Iroco
assombrava todo mundo, assim se divertia. À noite saía com uma tocha na
mão, assustando os caçadores. Quando não tinha o que fazer, brincava com
as pedras que guardava nos ocos de seu tronco. Fazia muitas mágicas,
para o bem e para o mal. Todos temiam Iroco e seus poderes e quem o
olhasse de frente enlouquecia até a morte.(…)”.
No
Candomblé encontramos uma importante manifestação da fitolatria. Em
vários terreiros da Bahia encontramos grandes e imponentes árvores Iròkò
plantadas no espaço sagrado. Deve-se observar que a árvore em si não é o
deus. Para tornar-se sagrada, é preciso cumprir os rituais para que o
deus encarne na planta. Após as oferendas e sacrifícios, a árvore deixa
de ser um simples vegetal e passa a ser a morada-templo do deus Iròkò.
Como um local santo, passa a ser ornamentado como tal: com grandes laços
de panos brancos amarrados em seus galhos. Junto a suas gigantescas
raízes expostas, são colocadas oferendas: alimentos, recipientes com
água, sacrifícios votivos são realizados; enfim, tudo o que é consagrado
ao deus.
Roger
Bastide em duas obras distintas – Imagens do Nordeste Místico em Branco
e Preto e em Candomblé da Bahia – faz uma importante alusão ao
interdito de tocar em uma árvore Iròkò consagrada. Um dos mitos relatam
uma terrível punição sofrida por uma mulher que teria tocado o Iròkò sem
ter cumprido o período de abstinência sexual antes de fazer as
oferendas ao deus (foi engolida pelo tronco da árvore). Igualmente,
mutilar os galhos da árvore a faria sangrar. Ouvi um conhecido
pai-de-santo lamentar-se de que após ter cortado o Iròkò existente no
quintal de seu terreiro e que ameaçava uma das casas, a morte de sua mãe
carnal foi imediata. O sacerdote nitidamente estabelecia uma correlação
entre a infração cometida e a morte como punição para o ato.
“Alguns
terreiros possuem igualmente uma árvore sagrada que é vestida,
enfeitada de fitas, coberta de tecidos, rodeada por um círculo mágico – a
gameleira que os ‘nagôs’ chamam de Iroko e os ‘gêges’ de Loko; se se
cortasse um ramo dessa árvore brotaria sangue, pois nesse caso a árvore é
um deus”.
“A
fitolatria fetichista entre os afro-brasileiros está representada em
primeira linha, no culto à gameleira (ficus religiosa?), que os nagôs
chamam Iroco e os gêges, Lôco. Nos bosques e nas matas, nos caminhos do
Garcia, do Retiro, do Rio Vermelho, etc., na Bahia, a gameleira Irôco é
preparada como fetiche, a quem tributam as homenagens do culto. Irôco,
preparada, não pode ser tocada por ninguém. Torna-se sagrada, tabú. Se a
cortarem, correrá sangue em lugar de seiva e será fulminado aquele que o
fizer”.
Sem
dúvida alguma, Roger Bastide foi um dos mais perspicazes observadores
dos menores detalhes da tradição dos orixás. Foi talvez o autor que
percebeu de forma mais clara a idéia da árvore como símbolo da
conectividade entre os mundos imanente e transcendente, segundo a
tradição religiosa afro-brasileira. Numa de suas obras fundamentais
relata: “Encontrei até num terreiro o mito simbólico de uma árvore cujas
raízes atravessariam o oceano para unir os dois mundos; seria ao longo
de tais raízes que viriam os Orixá ao serem chamados”. Esta idéia é um
pouco mais desenvolvida por Raul Lody, numa extensão simbólica do Iròkò
aos princípios de conexão, sustentáculo da tradição, origem e
fundamento, suporte “tecno-sacro”, via de comunicação e transporte dos
deuses:
“A
árvore simbolizada, o tronco ereto e viril – membro fecundante da terra
e do céu, elo, cordão umbilical entre o orum e o aiê, na concepção
restrita yorubá -, marca espaços públicos dos Candomblés mais antigos e
tradicionais. Alguns espaços privados são também sinalizados com o
mastro, poste, tronco rememorizador da árvore geral e fundadora da vida.
É o elo entre o céu e a terra (…) por onde vêm os orixás, voduns e
inquices aos terreiros”).
Ainda
como símbolo e “suporte tecnológico sobrenatural”, a árvore é indicada
por Bastide como território transitório entre a vida e a morte, entre a
morte e a renovação da vida: “(…) as almas das filhas-de-santo mortas
vêm habitar em seus ramos de onde talvez se desprendam para entrar no
ventre de uma mulher que passa e continuar, assim, o ciclo das
reencarnações, como sucede na África”. Esta nota já havia sido melhor
explicada por Arthur Ramos em 1934 – época do primeiro Congresso
Afro-Brasileiro -, a partir das observações feitas no Terreiro da Pedra
Preta. Esta casa de Candomblé nada mais era do que o terreiro do
legendário Joãozinho da Goméia (pai-de-santo radicado no Rio de Janeiro
após 1946, famoso por suas relações pessoais com Getúlio Vargas e
Juscelino Kubitschek), nesta época mais conhecido pelo nome de uma das
suas entidades – o Caboclo Pedra Preta. No breve comentário de Roger
Bastide ainda se coloca uma questão pouco discutida no Candomblé – a
idéia de reencarnação -, cuja natureza é bastante singular e em nada se
relaciona com a idéia de evolução do espiritismo de Allan Kardec, tão
difundido no Brasil.
“No
terreiro Pedra Preta pode ser visto, um tanto afastada, uma árvore
escavada pela velhice, e que forma uma espécie de nicho. É lá que as
almas das filhas de santo que morreram vão se refugiar no lapso de tempo
que separa seu último momento de incorporação ao corpo e seu abandono
definitivo da terra. Garrafas de óleo, aguardente, cachaça, água,
vasilhas e pratos muitas vezes partidos, por analogia com a morte
destruidora, ossos dispersos, provam o culto dos fiéis. Ninguém pode se
aproximar dessa árvore mortuária, sem cortar as folhas consagradas de um
matagal vizinho, e atirá-las em oferenda àquelas que, no terreno ao
lado, dançavam antigamente sob os ditames divinos”.
Esta
relação da árvore sagrada como vínculo e conexão entre os territórios
da vida e da morte reportam ao princípio feminino. De alguma forma, esta
relação já havia sido sinalizada ao falar em Oya Ìgbàlû, divindade que
comanda o mundo dos mortos. Oya é uma deusa que tem o poder de dominar
os espíritos dos ancestrais – Baba Égun. O também supracitado òpákòko é
consagrado como um dos locais de culto dos ancestrais.
As
grandes deusas cultuadas no Candomblé guardam uma forte relação com
entidades sobrenaturais chamadas Ìyá-mi-Oxoronga. As Ìyá-mi-Oxorongá são
senhoras de imenso poder – são as grandes mães ancestrais, detentoras
das forças terríveis e destruidoras das mulheres. São também denominadas
ëlëyë: as senhoras dos pássaros, símbolo de seu poder. Os mitos revelam
que estas divindades chegaram ao mundo nos tempos da criação. Numa das
belas narrativas coletadas por Pierre Verger com os bàbáláwo da Nigéria,
demonstra-se a relação de Ìyá-mi-Òñòrîngà com as árvores, às quais
chamam os velhos sacerdotes africanos das artes divinatórias de pilares
da terra.
Determinadas
árvores sagradas são identificadas no mito como os “Pilares da Terra”,
portanto “Axis Mundi”, conforme indica em outra perspectiva Mircea
Eliade:
“Instalação
e a consagração do tronco sacrificial constituem um rito do Centro.
Identificado à Árvore do Mundo, o tronco torna-se, por sua vez, o eixo
que une as três regiões cósmicas. A comunicação entre o Céu e a Terra
torna-se possível por intermédio desse sustentáculo”(14). Estas árvores
“pilares da terra” cumprem na narrativa a função de conectar estas
forças do mundo sobrenatural ao mundo imanente. Com as raízes na terra,
no obscuro do subsolo gerador da vida, e com a copa nos altiplanos
sagrados, se possibilita o poder destas entidades extra-mundo no àiyé.
Destarte,
enquanto conexão entre o espaço da existência humana e território do
sagrado, habitat dos deuses, as árvores cumprem na concepção de mundo
yorubá e do Candomblé um papel fundamental no processo de manutenção da
vida e do equilíbrio da coletividade. É fonte viabilizadora do
intercâmbio e da comunicação em múltiplas dimensões, entre os îrun,
dentre os quais a Terra – àiyé – é um deles. Esta função não se insere
num caráter ecológico construído ideologicamente, mas numa perspectiva
de que a árvore sagrada é um deus vivo e presente, sinalizando que o
primado do sentido de ser faz da pre-sença algo pertinente também ao
vegetal enquanto ente sagrado, cujas origens remontam ao ser – árvore
primeira -, fundamento de toda a sua geração sacralizada no rito.
Esta
mesma sacralidade está presente nos aspectos sincréticos das
manifestações religiosas afro-brasileiras. A partir da interpretação de
Mircea Eliade acerca do simbolismo da Cruz, é possível pensar no
significado recorrente da devoção ao Senhor do Bonfim em Salvador
(Bahia), associado à Oxalá. oxalá é um dos orixá-funfun (portanto
divindade do branco), deus primordial, criador, chegado ao mundo
imanente através da árvore – òpó Îrun oun àiyé -, pilar de sustentação
dos dois planos da existência. A Cruz também é símbolo de conexão entre
os homens e o Altíssimo. Òñàlá também é ligado à morte – o criador
também é chamado Bàbá Ikú, o pai da morte. O branco é a cor do luto para
os yorubás. O Senhor do Bonfim está morto, crucificado; porém é a
promessa da vida em outro plano da existência. Num terreiro que visitei
em Salvador, ao ser conduzido ao local de culto aos mortos da
comunidade, encontrei uma cruz plantada ao solo na entrada do templo.
Mais uma vez o símbolo, conexão entre dois mundos distintos; contudo, em
permanente comunicação.
“Ainda
mais ousada é a assimilação pela imaginária, pela liturgia e pela
teologia cristãs do simbolismo da Árvore do Mundo. Também neste caso
estamos às voltas com um símbolo arcaico e universalmente difundido. (…)
a imagem da Cruz como Árvore do bem e do mal, e Árvore Cósmica, tem
origem nas tradições bíblicas. É, porém, pela Cruz (= o Centro) que se
opera a comunicação com o céu e que, ao mesmo tempo, é ‘salvo’ o
universo em sua totalidade. Ora, a noção de salvação nada mais faz do
que retomar e completar as noções de renovação perpétua e de regeneração
cósmica, de fecundidade universal e de sacralidade, de realidade
absoluta e, finalmente, de imortalidade, todas noções coexistentes no
simbolismo da Árvore do Mundo”.
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