quinta-feira, 10 de julho de 2014

OS FIOS QUE NOS UNEM: TECENDO CONHECIMENTOS SOBRE A LEI 10639/03




Quando nos referimos à Lei Federal 10639/03, curiosamente nos deparamos com um conjunto de possibilidades na perspectiva de produção do conhecimento acerca do legado africano na diáspora brasileira e concomitantemente com uma série de limitações impostas pelo imaginário de uma sociedade que aprendeu a atribui a si própria uma condição ideal no que concerne às relações raciais, a despeito de sua experiência histórica.

Após esforços em âmbito nacional, como o trabalho desenvolvido pela antiga Secretaria de Ação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação, que em sua primeira gestão, se ocupou em produzir textos e demais materiais de consulta, dando visibilidade à produção de parcela expressiva da intelectualidade afro-brasileira, os avanços não ocorreram no ritmo esperado. A SECAD também se lançou ao trabalho de fomentar a discussão sobre a educação das relações étnico-raciais em todo país a partir da constituição de fóruns estaduais. Porém com um tempo pudemos constatar que os efeitos do racismo institucional são muito mais perversos e duradouros do que ingenuamente poderíamos pensar. Logo, não foi difícil perceber que para vários gestores vinculados ao MEC as políticas educacionais de valorização da presença negra no Brasil eram um assunto específico da SECAD e não algo que fizesse parte de uma concepção filosófica mais ampla adotada pelo referido ministério. É como se aquela secretaria passasse a constituir um gueto e não uma instancia de órgão publico em diálogo com as demais.

No nosso país acontecem absurdos dessa ordem. Políticas públicas focadas em segmentos socialmente vulneráveis são adotadas sem que haja consenso entre aqueles responsáveis por implementá-las. Algo absolutamente surreal. Se alguns administradores não afrontam diretamente determinadas orientações do governo do qual fazem parte ao menos encontram formas silenciosas de retardarem o processo em prol de um sistema de ensino mais democrático. As divergências internas ao governo alimentam o atraso e contribuem para que lei caduque.

Um outro aspecto que merece olhar mais crítico diz respeito à uma lacuna existente na lei. Embora ela torne compulsória a adoção de história e cultura africana e afro-brasileira no âmbito da educação básica, não delega determinadas responsabilidades, como por exemplo a incumbência pela qualificação de docentes que irão abordar o assunto em sala de aula. A conseqüência mais nítida desta omissão pode ser percebida nos esforços sobre-humanos dos núcleos de estudos afro-brasileiros vinculados a instituições de ensino superior para dar consecução aos seus projetos de criação de cursos de pós-graduação direcionados aos professores que se mostram sensíveis e reconhecem a relevância dos estudos sobre as heranças africanas no Brasil. Óbvio que este esforço é louvável, mas por outro lado, notemos que enquanto essas pós-graduações sobrevivem a duras penas, as administrações das universidades se eximem de maiores compromissos, abstendo-se de assumir projetos de maior alcance, já que não lhes cabe explicitamente nenhum papel na formação demandada. Porém, imaginemos, caso houvesse uma regra mais geral no sentido de Os fios que nos unem



orientar faculdades e universidades no sentido de protagonizarem o processo de qualificação, o efeito transformador que isto permitira nos cursos de licenciatura pelo país afora. Os graduandos teriam nas suas grades curriculares disciplinas que lhes embasariam, permitindo-lhes um novo background, capaz de torná-los potencialmente aptos a ingressar na atividade docente em condições de lidar com os conteúdos propostos na lei, para além dos velhos, desgastados, mas persistentes estereótipos.

Ações mais recentes do Ministério Público, interpelando instituições como a Universidade de Brasília, a fim de saber qual tem sido o empenho para viabilizar a qualificação do corpo discente em relação à 10.639 é uma simples mostra de que o problema causado pela ausência de atribuições existe e tende a se agravar, embora subestimado por muitos reitores, secretários de educação nos municípios e estados, gestores da educação em geral, além do próprio MEC, em particular.

Quanto a nós pesquisadoras e pesquisadores que pagamos um preço alto nas instituições acadêmicas nas quais atuamos em função de nossa convicção ativista, cabe destacar as responsabilidades que vimos assumindo muito antes da lei se tornar realidade. A propósito, nunca é demais mencionar a relevância da educação formal, permanente objeto de preocupação na organização política do povo negro, tanto no que concerne à inserção desse segmento no ambiente escolar quanto ao conteúdo dos currículos escolares aos quais deveriam ter acesso. Falemos da Frente Negra Brasileira, nas primeiras décadas do século XX, do Teatro Experimental do Negro em meados do mesmo século, dos fóruns regionais ocorridos nas décadas de oitenta e noventa como os Encontros de Entidades Negras do Norte/ Nordeste, Sul/Sudeste e Centro-Oeste, ou ainda, mais recentemente, dos COPENEs, Congressos de Pesquisadores Negros que acontecem sob a chancela da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, ABPN. A democratização do ensino como possibilidade de ascensão sempre foi uma meta obstinadamente perseguida pelo movimento negro.

Enquanto docente e artista, oriundo desse movimento e vinculado ao Departamento de Artes Visuais, inserido na estrutura do Instituto de Artes da Universidade de Brasília, me ocupo em desenvolver pesquisa em uma seara ainda pouco explorada, mas que requer muito de nossa atenção. Atualmente procuro fazer um trabalho de imersão no conceito de Cultura Visual que surge do legado deixado pela perspectiva dos Estudos Culturais, por questões paradigmáticas colocadas para a História da Arte e por revisões antropológicas. O princípio se baseia na idéia de que as imagens, mais do que ilustrações, são formadoras de nossas consciências, de modo que somos, em certa medida, produtos culturais, das imagens com as quais nos habituamos a conviver. Portanto, nossa percepção de mundo é fruto também de um repertório de imagens a que recorremos frequentemente. A esta altura vocês já devem estar se perguntando o que isto tem a ver com o racismo e eu responderia: simplesmente tudo.

O que são os estereótipos raciais senão uma construção histórica fundada em percepções visuais a priori? Percepções que fomentaram e lamentavelmente ainda fomentam as artes plásticas, a fotografia, o cinema, a televisão, o teatro, a literatura, a publicidade enfim. Até os classificados de emprego nas páginas dos jornais foram contaminados pelo questionável requisito da "boa aparência" que na prática se traduz em uma valorização absurda da imagem dos brancos como condição para o acesso ao emprego.

A construção caricata do corpo negro vem, ao longo da formação deste país, Os fios que nos unem




habitando o imaginário da sociedade brasileira de maneira tão constante que mais parece uma marca indelével. Podemos facilmente nos deparar em pleno século XXI com imagens negativas sobre o povo negro que já eram recorrentes há mais de cinqüentas anos atrás. A diferença de hoje é que tais abordagens não ocorrem mais da forma confortável como antes, em função do crescimento de uma consciência crítica atenta ao tamanho do estrago provocado.

Meu objeto de estudo são as relações raciais no contexto da Cultura Visual e como o legado eurocêntrico pode estabelecer limites que dão sustentação à manutenção de imagens que desqualificam a presença negra na formação da cultura brasileira. Daí a noção de que africanos e afro-brasileiros produzem artes e culturas que são primitivas, tribais e pueris, como determinava o discurso colonial com base no evolucionismo unilinear que serviu de alicerce para a produção de teses racialistas no século XIX. O olhar europeu foi de extrema eficácia ao aprisionar povos africanos e ameríndios em suas categorias hierarquizantes.

Estas questões não escapam sequer à cultura popular e seus falares. Uma sociedade que inventou "serviço de branco", "coisa de preto", "programa de índio", "cabelo ruim", "cabelo bom", entre outras pérolas, certamente o fez com base em interpretações problemáticas da imagem. Portanto, pensar a cultura visual, nesses termos, significa explicitar a existência de referenciais imagéticos que dão forma e conteúdo a uma consciência coletiva retrógrada, e concomitantemente confronta-la com as práticas contra-hegemônicas de valorização das imagens das coletividades afro-brasileiras, a exemplo dos Cadernos Negros e FECONEZU em São Paulo ou da Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê, bem como da aurora dos blocos afros em Salvador, ou ainda da criação do Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo no Rio de Janeiro, além de outras iniciativas. Projetos inaugurados na década de setenta no intuito de se constituírem em referenciais de uma identidade positiva do segmento negro.

Se na contemporaneidade conseguimos observar um nítido aumento de pessoas auto-declaradas negras, isto tem uma relação inequívoca com movimentos culturais que há pelo menos quarenta anos atrás perceberam que uma disputa no plano do imaginário precisava ser estabelecida.

Talvez nenhum outro fenômeno seja tão preciso para explicar as conexões entre relações raciais e cultura visual em nosso contexto do que o processo de embranquecimento vivenciado por este país. Tomemos como exemplo mais recente o anúncio de tv no qual Machado de Assis é protagonizado por um ator branco, assim como Artur Bispo do Rosário já foi interpretado por Ítalo Rossi e Chiquinha Gonzaga por Regina Duarte, sem que a população soubesse de fato as suas origens. No que concerne ao trabalho de resgate dessas personalidades, sobretudo de suas imagens, vale destacar a contribuição do Museu Afro Brasil para que justiça seja feita à memória da presença negra na cultura e sociedade brasileira. Tudo isso tem a ver com a discussão em torno uma cultura visual contaminada pelo pensamento ocidental.

A guisa de conclusão me permitam um comentário. Quando penso nos fios que nos unem imagino um tear africano que vai formando uma trama constituída de vários saberes. Ao mesmo tempo em que acompanhamos a confecção do tecido que é produzido pelas mãos que manipulam esse tear nos damos conta de como a questão étnico-racial é complexa, pois cada fio pode nos conduzir para um conhecimento específico acerca do mesmo assunto.



povo ashanti), com diferentes grafismos e cores variadas, mas que agregadas dão sentido ao discurso do anti-racismo no momento em que se estabelece o debate e enfrentamento de um modelo de sociedade excludente que fez uso abusivo das imagens para nos convencer de sua coerência.

Para nós será necessária a sabedoria de um griot e a resistência de um baobá para conseguirmos, mesmo que em tempos de ações afirmativas, fazer com que a Lei 10639 e suas possibilidades não se diluam no ar, tantas vezes rarefeito. O fato de sabermos que somos muitos fios formando a mesma trama é ao menos uma metáfora alentadora para que não percamos todas as nossas reservas de esperança.
Nelson Fernando Inocêncio da Silva é professor do Insituto de Artes da Universidade de Brasília - UnB - autor do livro "Emanoel Araújo: o mestre das obras".




OS FIOS QUE NOS UNEM: TECENDO CONHECIMENTOS SOBRE A LEI 10.639/03 E A REVOLUÇÃO SILENCIOSA








Contextualizando o título desta apresentação quero invocar o símbolo Sankofa utilizado nos cursos de Conscientização da Cultura Afrobrasileira levados a efeito pelo IPEAFRO (Instituto de Pesquisa e Estudos Afrobrasileiros) na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) de 1984 a 19954.



 
 



Segundo os ensinamentos da Profa. Elisa Larkin Nascimento, Sankofa representa um pássaro que vira a cabeça para trás indicando metaforicamente que "nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou para trás. Sempre podemos retificar os nossos erros". A metáfora alude também a sabedoria de aprender com o passado para construir o presente e o futuro. De origem dos povos akan da África Ocidental, sobretudo Gana, Sankofa e mais de 80 símbolos gráficos constituem os ideogramas adinkra os quais expressam conceitos filosóficos, história, tradição, cultura, normas e valores de um povo5.


Este preâmbulo tem como premissa estabelecer os fios que nos unem há mais de 180 anos.

Nós, professores (as), gestores, agentes administrativos e escolares presentes neste curso de encerramento somos o legado vivo de uma tradição de luta em prol da educação igualitária para todos desde pelo menos o século XIX. E é à esta tradição que me refiro ao mencionar 180 anos imbuída pelo espírito de Sankofa.

Nas últimas três décadas pesquisas acadêmicas realizadas por estudiosos brasileiros, oriundos de universidades públicas e privadas, assim como estrangeiros, associados a renomadas universidades e centros de pesquisas internacionais, têm relatado a existência de inúmeras escolas orgânicas gestadas no bojo de comunidades negras de norte a sul, de leste a oeste do País desde a década de 1830.

As escolas mineiras deste período para pretos, pardos, crioulos e cabras vinculadas ao ensino de ofícios específicos são destacadas no estudo pioneiro de Marcus Vinicius Fonseca abrindo um campo inovador na história da educação no Brasil6.

Os registros históricos apontam que em 1853, na corte imperial no Rio de Janeiro, o Professor Pretextato dos Passos e Silva abriu uma pequena sala de aula em Os fios que nos unem




sua residência para ensinar as primeiras letras a quinze alunos negros cujo acesso às escolas do grupo dominante branco lhes eram negados;





9 Roger Bastide. "A imprensa negra no estado de São Paulo".In: Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1973; Miriam Nicolau Ferrara. A imprensa negra paulista (1915-1963). São Paulo: FFLCH/USP, 1986; Cuti. ...E fisse o velho militante José Correia Leite. São Paulo: Noovha América, 2007; Ana Flávia Magalhães Pinto. Imprensa Negra no Brasil do Século XIX. São Paulo: Selo Negro Edições, 2010; Marcio Barbosa; Frente Negra Brasileiro: Depoimentos. São Paulo: Quilombhoje, 1998; As Associações do Homens de Cor e a Imprensa Negra Paulista: Movimentos Negros, Cultura e Política no Brasil Republicano (1915-1945). Belo Horizonte: Editora Gráfica Daliana, Ltda, 2006

Petrônio Domingues ao resgatar a trajetória do Professor Pretextato dos Passos e Silva revelou ainda que no final do século 19, no ano de 1889, em Cachoeira, na Bahia, o abolicionista Cincinatos França conduzia uma escola para alfabetização de libertos8. Isto sem contar, as escolas privadas de primeiras letras ministradas nas dezenas de Irmandades religiosas, casas de caridades, orfanatos públicos e privados espalhados pelo Brasil afora cujo escopo, propostas pedagógicas e abrangências sociais serão reveladas de acordo com as agendas de pesquisas acadêmicas nas próximas décadas.


Já no século 20, a proliferação de associações sociais, culturais, religiosas, políticas ou recreativas reforça a necessidade de se educar a população negra para a modernidade inaugurada em 1889 com o advento da República. É importante lembrarmos que essa fase da história moderna brasileira estava fortemente marcada por um clima pessimista de teorias raciais que propugnavam a inferioridade dos trabalhadores nacionais, sobretudo, negros, sertanejos, indígenas etc. Para uma população em grande parte analfabeta, é surpreendente constatarmos o número de jornais de curta ou longa duração que emergiram no limiar do século 20. Este fator, sem dúvida, aponta a importância que o letramento tinha para as populações negras ávidas pelo reconhecimento de sua humanidade e afirmação pessoal, na medida em que saber ler e escrever indicava possibilidades, ainda que reduzidas, de mobilidade social.

Os estudos sobre as associações e imprensa negra do início e ao longo do século 20 retratam de maneira inconteste os sonhos de realização social, política e profissional dos negros brasileiros em diversas capitais brasileiras. As contribuições de Roger Bastide, Miriam Nicolau Ferrara, Cuti, Ana Flávia Magalhães e Pinto, Márcio Barbosa e Antonio Liberac Cardoso Simões Pires, entre outros, são referências obrigatórias quanto a esta temática9.

Dentro deste contexto, o surgimento da Frente Negra Brasileira, a primeira organização de direitos civis negra brasileira a despontar em 1931, reafirma o compromisso com a educação a partir da escola Frentenegrina que acolhia, além de alunos negros, alguns poucos brancos e outras etnias. Um dado relevante os professores da Frente eram nomeados pelo Estado. A Frente Negra foi extinta em 1937, mas a educação enquanto campo privilegiado de atuação de ativistas negros daria um grande salto político para negociação de direitos com as autoridades constituídas.

O exemplo do Teatro Experimental do Negro (TEN) fundado por Abdias Nascimento, entre outros, na década de 1940, no Rio de Janeiro, contribui para importantes referências históricas. Novamente, as aulas de alfabetização norteavam a Os fios que nos unem




formação de atores e trabalhadores comuns. Como estratégia política e de afirmação identitária seus ativistas continuamente conclamavam as autoridades brasileiras a intervirem nos processos sócio-estruturais, políticos e culturais que sedimentavam a cidadania limitada e o racismo institucional que vitimavam os negros brasileiros e seus descendentes.
Um artigo revelador desta atuação foi publicado na Revista Forma nº 4, de autoria da Dra Guiomar Ferreira de Mattos, em Dezembro de 1954, sobre o preconceito racial estampados nos livros infantis. Dra Guiomar, ativista célebre da Frente Negra Brasileira, mostrou-se indignada com o autor Humberto de Campos, membro da Academia Brasileira de Letras, que retratou em suas Histórias maravilhosas uma festa no céu, onde os protagonistas eram os pombos brancos10. Vale a pena contar resumidamente esta estória.



"Era uma homenagem de Nosso Senhor ao Divino Espírito Santo, que desceu ao mundo transformado em uma pomba cor de neve. E foram convidados todos os pombos brancos que havia na terra. Os pombos negros, porém, deveriam ficar na terra tomando conta dos borrachos. Isto porque, diz-nos textualmente, o conto de Humberto, "quando Deus pôs preto no mundo foi para tomar conta de filho branco. "Neste e noutros exemplos, que seria fastidioso transcrever, - escreve Dra Guiomar -, e qualquer pessoa achará, facilmente, em qualquer livro de histórias, estampa-se o preconceito, incutido, criminosamente, no espírito infantil. Assim é que as pobres das crianças, que nascem tão puras, tão fraternas, sem a menor idéia ou tendência de discriminação racial ou de cor, são a isso induzidas pelos adultos corrompidos, de mentalidade defeituosa, pretensos educadores, que, com suas "histórias instrutivas", de "fundo moral", lhes conformam, viciosamente, a mentalidade, deformando-a desde a mais tenra idade. Enquanto tal se fizer com a infância, adeus mundo melhor! Fraternidade entre os homens? Igualdade de oportunidade para todos? Como assim, se os pretos nasceram para servir aos brancos? De que modo, se, até, entre os animais, existe discriminação; se até entre eles há os de bem e os malnascidos, os marcados desde o berço? Induz-se destarte, a infância a situar os pretos em posição inferior, servil, pejorativa."

Atentem para as palavras indignadas da Dra Guiomar neste texto de 1954, sobretudo, para a atualidade de tal intervenção. Alguma lembrança em relação as polêmicas recentes provocadas pela livro infantil "Caçadas de Pedrinho" de Monteiro Lobato? Exatamente 56 anos separam os dois incidentes. E isso significa que sem a vigilância atenta da comunidade escolar - Paes, professores, gestores e alunos - os erros do passado tendem a se repetir no presente e no futuro.


Voltemos, então, a tecer os fios que nos unem. Logo de inicio, mencionei os cursos de Conscientização da Cultura Afrobrasileira ministrados pelo IPEAFRO entre 1984 e 1995. Vale a pena ressaltar os objetivos dos cursos daquela época para melhor entendermos o que eu denomino, sem ufanismo ingênuo, de revolução silenciosa.

"O objetivo do curso é o de contribuir para a integração dos assuntos afrobrasileiros no currículo escolar e para a preparação de quadros no magistério aptos ao ensino dessas matérias. Procuramos atender a necessidade de corrigir os Os fios que nos unem



estereótipos e distorções existentes no currículo escolar brasileiro em relação à historia, cultura, e experiência dos africanos no nosso País, nas Américas e no mundo. Entendemos que não apenas a criança negra sofre os prejuízos da imagem negativa dos povos africanos veiculadas pelo ensino. Todas as crianças saem prejudicadas, na medida em que essas distorções afetam a visão que a escola constrói de sua gente e de seu País, cuja origem africana sobressai em quase todos os sentidos: demográfico, cultural, histórico, lingüístico, e na própria personalidade, o ethos nacional. A inferiorização do grupo étnico que durante três quartos da existência do Brasil formou a grande maioria de sua população, e que ainda hoje continua majoritário, gera um complexo de inferioridade arcaico e antibrasileiro."




Dos cursos do IPEAFRO das décadas de 1980 e 1990 e de tantos outros que seguindo o seu modelo espalharam-se pelo País até 2003 foram quase vinte anos de ativismo sistemático por parte de professores negros brasileiros e simpatizantes que num esforço coletivo de "comunidades de consciência" contribuíram de forma efetiva para que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva promulgasse a Lei de nº 10.639/03 que instituiu a obrigatoriedade do ensino da Historia e Cultura Africana e Afrobrasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Em 2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnicorraciais e para o Ensino de Historia e Cultura Africanas e Afrobrasileiras. Um pesquisador atento observará também a convergência de objetivos dos cursos do IPEAFRO com os objetivos de políticas educacionais almejadas por todos os movimentos sociais negros nos últimos 60 anos de período republicano.

Esse processo histórico extraordinário desenvolveu-se ao longo de décadas em virtude da ausência do estado para a efetivação de uma cidadania plena dos negros brasileiros, para além de uma "cidadania lúdica" nos dizeres de Jurema Batista, lembrado com muita propriedade por Elisa Larkin Nascimento. "Cidadania lúdica", refere-se à forma pela qual,
"… a sociedade restringe a comunidade afrobrasileira. Reduzida sua identidade especifica aos campos do esporte, do ritmo, do carnaval e da culinária, fica o afro-brasileiro, enquanto coletividade, subliminarmente excluído das esferas políticas, econômica, tecnológica, cientifica, enfim: da cidadania produtiva e do protagonismo social. O resgate da riquíssima história dos povos africanos, repleta de inovações científico-tecnológicas, sociais, políticas, intelectuais, ajuda a reconstruir a imagem da participação digna e ativa em todas as dimensões da experiência humana, esboçando as possibilidades para seus descendentes nas Américas."


É precisamente neste aspecto que dimensiono a minha asserção inicial de que estamos vivenciando uma revolução silenciosa no Brasil, principalmente no campo da educação, mas extensiva também ao mercado de trabalho e que transcendeu a tal "cidadania lúdica".

Ao discutirmos o significado da Lei nº 10.639/03 é fundamental situá-la Os fios que nos unem



historicamente dentro de um processo inovador de políticas públicas inauguradas a partir da adoção pelo estado brasileiro das políticas afirmativas em 2001. Foi por ocasião da III Conferência Mundial contra a Xenofobia, Racismo e Intolerância, em Durban, África do Sul oficialmente reconheceu o impacto do racismo no desenvolvimento das comunidades negras brasileiras, e dentro deste cenário anunciou medidas concretas contra discriminações raciais e de gênero.



O cenário internacional foi uma resposta do Brasil às pressões exercidas pelas organizações não governamentais negras que desde 1990 optaram por denunciar o governo brasileiro junto à Organização Internacional do Trabalho (ILO) pelo não cumprimento das Convenções Internacionais contra o racismo, a exemplo da Convenção 111, decretada em 1948, e que exige dos países membros signatários dessa convenção a eliminação de todas as formas de discriminação. Este protagonismo inicial de pressão internacional de uma organização não governamental negra coube ao Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) em parceria com a Central Única dos Trabalhadores.

As ações afirmativas no ensino superior, na modalidade de reserva de vagas, constituíram no primeiro passo de ampliação da presença negra nas universidades públicas, seguidas de projetos de redistribuição de recursos financeiros por meio de bolsas de estudos, ainda que de forma limitada. Quanto às universidades privadas, um novo programa – PROUNI – introduz novos projetos de financiamento do ensino superior baseado em critérios de renda, todavia inclusivo de categoriais raciais e étnicas. Logo, as ações afirmativas a dupla junção dos aspectos redistributivos e de reconhecimento de pertença racial como elementos básicos de inclusão social.

A Lei nº 10.639/03 decorre destes eventos de pressão política que diferentemente das noções de "cidadania lúdica" ou de "inclusão discriminatória" de simplesmente reconhecer as culturas africanas e brasileiras na formação da nação brasileira, demanda a obrigatoriedade do ensino destas disciplinas nos ensinos Fundamental e Médio em todo território nacional.

A conjunção dos seguintes fatores: uma década de ações afirmativas, conjugada a quase uma década de existência da Lei nº 10639/03 tem resultado nos seguintes desenvolvimentos: a) aumento significativo e qualitativo de estudantes negros nas universidades públicas e privadas; b) renovação do conhecimento, sobretudo, em áreas de Ciências Humanas, notadamente, História, Geografia, Literatura, Pedagogia, Religião, etc; c) liderança crescente dos NEABS (Núcleos de Estudos Afrobrasileiros) das universidades públicas na elaboração de cursos de extensão e especialização sobre a História Africana e Afrobrasileira d) formação de docentes e currículos para escolas Quilombolas; e) revisão curricular, sobretudo dos livros didáticos e paradidáticos; f) renovação das práticas pedagógicas.

Dentre as estratégias mais recentes decorrentes desses fatores estão: a) a formação de leitores críticos, com a expansão dos chamados Clubes de Leitores Negros, notadamente, o Quilomboletras em São Paulo, Porto Alegre e Salvador; b) a expansão das rodas de poesia e saraus nas periferias brasileiras; c) expansão da produção teatral e audiovisual; d) tímido aumento de publicações voltadas para a Os fios que nos unem



História e Cultura Africana e Afrobrasileira.

Apesar destes avanços, o grande desafio é a morosidade na adoção sistemática e ampla da Lei nº 10.639/03 em todo território nacional. As resistências estruturais e não estruturais são imensas. Entre alguns fatores de extrema importância salientamos os estudos voltados para uma educação anti-racista os quais têm chamado a atenção dos educadores para o cotidiano escolar, onde as injúrias psicológicas e emocionais do racismo continuam a vitimar crianças, jovens e adolescentes oriundos de todos os grupos e segmentos sociais.

Independente da base socioeconômica de grupos étnicorraciais, uma verdadeira guerra cultural estruturada na violência simbólica e cultural têm permeado as relações sociais, onde gozação e xingamento funcionam como mecanismos privilegiados de mediação dessa violência.15


Precisamos urgentemente de sistematizar uma cultura de paz. A Lei nº 10.639/03 consubstancia os propósitos básicos de uma educação transformadora calcada nos ideais da democracia, valorização e respeito à diversidade étnica e racial da sociedade brasileira.

Estes desenvolvimentos decorrentes da Lei nº 10.639/03, inserida dentro do contexto de ações afirmativas, carecem de consolidação, o que significa continuarmos este processo permanente de conquistas coletivas, conscientização e avanço da cidadania substantiva. Quem sabe, esta revolução silenciosa, claramente em curso, dentro de alguns anos, em todas as modalidades de ensino público e privado no Brasil, a História das Culturas Africanas e Afrobrasileiras constituam parte integrante da formação de todos os brasileiros exatamente no sentido de Sankofa – de resgate permanente do passado para a construção do presente e do futuro.











"É nesse sentido que o racismo -- enquanto articulação ideológica e conjunto de práticas -- denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações sócio-econômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas"
(Lélia Gonzalez, 1979)

Nenhum comentário:

Postar um comentário