RAÇA BRASIL – Como o senhor avalia a situação da criança
negra, hoje, no País?
KABENGELE MUNANGA – O racismo no
Brasil mantém os negros em péssimas condições socioeconômicas e dificulta seu
acesso à educação de boa qualidade e ao mercado de trabalho, entre outros
prejuízos. A conseqüência disso é que as crianças, já maltratadas pelo baixo
poder aquisitivo dos pais, também sofrem ao entrar no ensino público. O sistema
foi construído com base na realidade da minoria abastecida, ou seja, da classe
média brasileira. Assim, além de serem excluídas das escolas particulares, não
recebem, nas unidades públicas, tratamento adequado ao seu desenvolvimento
intelectual e emocional.
RB – Até na escola ela sofre desvantagem?
KM
– Sem dúvida. Todos os preconceitos e as discriminações que permeiam a
sociedade brasileira são encontrados na escola, cujo papel deve ser o de
preparar futuros cidadãos para a diversidade, lutando contra todo tipo de
preconceito. Mas, na prática, ela acaba é reforçando o racismo.
RB – E como o senhor explica esse processo?
KM
– Na maioria das vezes, os professores não estão preparados para lidar
com as diferenças e muitos deles já se mostram predispostos a não esperar o
melhor resultado do estudante negro e pobre. E tem também a questão do programa
curricular e do próprio livro didático, que, além de privilegiarem a cultura
européia, transmitem preconceitos de várias naturezas: de classe, de cor, de
raça, de religião... Tudo isso fortalece os mecanismos de exclusão e impede que
a escola cumpra seu verdadeiro papel, que é o de educar, socializar e formar
verdadeiros cidadãos.
RB – O racismo da escola é pior do que o das
ruas?
KM – É igual. Mas torna-se mais grave na escola porque
se trata de um espaço público, e o aluno está ali para aprender. Por isso, o
preconceito tem um impacto mais direto sobre a criança. Esse racismo à moda
brasileira — menos explícito que nos Estados Unidos — prejudica o processo de
formação de consciência e mobilização da própria vítima.
RB – Até o ensino da História é discriminador, não é
verdade?
KM – Para se ter uma idéia da gravidade dessa
questão, o departamento de História da Universidade de São Paulo, a maior do
País, até pouco tempo não tinha professor para ensinar História da África. Foi
preciso que o movimento negro e outras entidades pressionassem para que isso
acontecesse.
RB – As crianças negras não conhecem sua própria
história...
KM – Exatamente. E isso aprofunda sua alienação.
Ela abre os livros, lê a história de outros povos e não vê a sua. Ou seja, fica
sem passado. Os outros povos estão lá: os portugueses, italianos, japoneses... A
dedução natural dessa criança, ainda que inconsciente, é: não sou parte da
História, portanto não pertenço à humanidade.
RB – E em relação à escravidão?
KM –
Alguns livros didáticos falam do papel do negro no Brasil como escravo, mas não
mostram sua participação concreta na sociedade brasileira, seu espaço na
economia. O negro não trabalhou só nas plantações. Trabalhou nas artes, na
mineração. Aliás, foram os negros que ensinaram aos portugueses as técnicas de
mineração. Essas coisas não são ditas. O silêncio também é uma forma de
racismo.
RB – Isso dificulta a construção de uma identidade
nacional?
KM – Claro. A diversidade é uma riqueza e não
deveria criar problemas. Não podemos construir a identidade brasileira a partir
de uma única cultura, considerada superior, que é a ocidental. A criança precisa
aprender na escola como os portugueses, os japoneses, os negros contribuíram
para o desenvolvimento do País. E que nenhuma dessas contribuições é melhor do
que a outra.
RB – A imagem negativa acaba interferindo no
aprendizado?
KM – Muitas vezes a criança já chega na escola
como derrotada. Ela já tinha a auto-estima baixa. Aí os preconceitos e as
discriminações que aconteciam na vizinhança e na comunidade se reforçam e se
repetem na sala de aula. Isso mina o processo de aprendizagem.
RB – Vem então a repetência, a evasão, a sensação de
fracasso...
KM – Costuma vir também a constatação racista de
que o negro é menos inteligente. Um completo absurdo. O que acontece é que a
criança simplesmente não encontra no espaço da escola condições adequadas para
se desenvolver intelectualmente. Além disso, existe o despreparo dos
professores, o conteúdo dos livros didáticos, a discriminação, a cultura
elitista. Tudo isso contribui para que essa criança se sinta insegura,
desestimulada e acabe se mostrando incapaz.
RB – E as crianças brancas? Como se comportam em relação às
colegas negras?
KM – Em alguns casos, reagem com certa
estranheza, que pode ou não evoluir para um comportamento preconceituoso.
Ninguém nasce racista. Crianças negras, em sua maioria, moram bem longe dos
bairros de classe média branca. É difícil esses meninos conviverem. Com isso,
brancos, negros, todos nós acabamos sendo vítimas. Um sistema social
caracterizado pelo racismo precisa sempre criar novos racistas para se manter.
Assim, a sociedade reproduz carrascos com pouca chance de escolha.
RB – Esse nosso racismo à brasileira, como o senhor chama,
deve deixar a criança bastante confusa.
KM – A humilhação e
os estragos são enormes. Eu costumo dizer que o preconceito é um iceberg, e a
gente só vê a ponta. Nada é explicitado à criança, mas o tom da voz, os gestos
ou mesmo o silêncio dizem que ela é um ser inferior. E o discurso, ao contrário,
afirma que somos todos iguais. Precisamos assumir que somos um país racista.
RB – Como assumir?
KM – Temos o mito da
democracia racial. Olhem o exemplo do Pelé. Dizem, é verdade, que o Pelé
conseguiu ser respeitado, venceu vários obstáculos, tornou-se um ídolo. Mas sua
ascensão tem limites. Hoje, por mais que quisesse, ele não seria eleito
presidente da República. O preconceito existe e é muito forte. Alguns acreditam
que a discriminação acontece apenas por razões econômicas, porque o negro, no
Brasil, é pobre. Eu afirmo o contrário disso: o negro continua pobre e
marginalizado, justamente por causa dos preconceitos.
RB – Dá para explicar melhor essa relação?
KM
– As pesquisas comprovam: um cidadão brasileiro branco e um cidadão
brasileiro negro com o mesmo nível de formação têm uma diferença salarial em
torno de 30%. Já uma mulher negra ganha, em média, 46% a menos que o homem
branco. Logo, há racismo na sociedade brasileira. E a primeira condição para se
lutar contra ele é assumi-lo.
RB – O processo de mestiçagem no Brasil ajuda ou
atrapalha?
KM – A mestiçagem faz parte da história da
humanidade. Por todas as partes onde os seres humanos se encontraram, existem as
relações inter-raciais. O que não existe é raça pura. Até populações em guerra,
como os americanos e os vietnamitas, deixaram mestiços. E também não podemos ser
contra as uniões, os casamentos entre pessoas de raças diferentes. O que
preocupa, isso sim, são aqueles que se sentem derrotados diante do processo de
dominação e buscam a miscigenação como única saída. Tentam “branquear” a família
para sofrer menos. Temos que aceitar que somos racistas e lutar coletivamente
até encontrar nosso caminho.
RB – Já avançamos no sentido de encontrar esse
caminho?
KM – A transformação é lenta, mas conseguimos
muitas coisas. Temos uma lei que pune ações racistas. Os editores de livros
didáticos também já foram convidados a rever suas obras pelo Ministério da
Educação. Existem mudanças curriculares aqui e ali, mas precisamos caminhar
mais.
RB – Racismo na escola, na mídia, nas ruas... A família
acaba sendo, então, o único porto seguro da criança negra?
KM
– O papel dos pais é fundamental nesse processo todo, embora nem sempre
eles consigam assumir os comportamentos adequados. Alguns negros se identificam
tão profundamente com a imagem negativa de inferioridade que passam isso para os
filhos. Os pais que dizem à criança que somos todos iguais, somos filhos de Deus
também não ajudam a enfrentar a realidade. Ela vai encontrar obstáculos,
discriminação, sem estar preparada para isso. Deveriam ensiná-la a lutar pelos
seus direitos, não a baixar a cabeça. Um dos papéis fundamentais dos pais é o de
reforçar a auto-estima da criança. Ela precisa gostar de si, saber que tem apoio
e que pode derrubar muitas barreiras, sim. Ainda que seja difícil.
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