Epílogo:
E foi
inventado o candomblé...
Ilustração de Pedro
Rafael
No começo não havia separação
entre
o Orum, o Céu dos orixás,
e o Aiê, a Terra dos humanos.
Homens e divindades iam e vinham,
coabitando e dividindo vidas e
aventuras.
Conta-se que, quando o Orum fazia
limite com o Aiê,
um ser humano tocou o Orum com as mãos
sujas.
O céu imaculado do Orixá fora
conspurcado.
O branco imaculado de Obatalá se
perdera.
Oxalá foi reclamar a Olorum.
Olorum, Senhor do Céu, Deus
Supremo,
irado com a sujeira, o desperdício e a
displicência dos mortais,
soprou enfurecido seu sopro divino
e separou para sempre o Céu da
Terra.
Assim, o Orum separou-se do mundo dos
homens
e nenhum homem poderia ir ao Orum e
retornar de lá com vida.
E os orixás também não podiam vir à
Terra com seus corpos.
Agora havia o mundo dos homens e o dos
orixás, separados.
Isoladas dos humanos habitantes do Aiê,
as divindades entristeceram.
Os orixás tinham saudades de suas
peripécias entre os humanos
e andavam tristes e amuados.
Foram queixar-se com Olodumare, que
acabou consentindo
que os orixás pudessem vez por outra
retornar à Terra.
Para isso, entretanto, teriam que tomar
o corpo material de seus devotos.
Foi a condição imposta por
Olodumare
Oxum, que antes gostava de vir à Terra
brincar com as mulheres,
dividindo com elas sua formosura e
vaidade,
ensinando-lhes feitiços de adorável
sedução e irresistível encanto,
recebeu de Olorum um novo encargo:
preparar os mortais para receberem em
seus corpos os orixás.
Oxum fez oferendas a Exu para propiciar
sua delicada missão.
De seu sucesso dependia a alegria dos
seus irmãos e amigos orixás.
Veio ao Aiê e juntou as mulheres à sua
volta,
banhou seus corpos com ervas
preciosas,
cortou seus cabelos, raspou suas
cabeças,
pintou seus corpos.
Pintou suas cabeças com pintinhas
brancas,
como as pintas das penas da
conquém,
como as penas da galinha-d’angola.
Vestiu-as com belíssimos panos e fartos
laços,
enfeitou-as com jóias e coroas.
O ori, a cabeça, ela adornou
ainda com a pena ecodidé,
pluma vermelha, rara e misteriosa do
papagaio-da-costa.
Nas mãos as fez levar abebés,
espadas, cetros,
e nos pulsos, dúzias de dourados
indés.
O colo cobriu com voltas e voltas de
coloridas contas
e múltiplas fieiras de búzios,
cerâmicas e corais.
Na cabeça pôs um cone feito de manteiga
de ori,
finas ervas e obi mascado,
com todo condimento de que gostam os
orixás.
Esse oxo atrairia o orixá ao
ori da iniciada e
o orixá não tinha como se enganar em
seu retorno ao Aiê.
Finalmente as pequenas esposas estavam
feitas,
estavam prontas, e estavam
odara.
As iaôs eram a noivas mais
bonitas
que a vaidade de Oxum conseguia
imaginar.
Estavam prontas para os deuses.
Os orixás agora tinham seus
cavalos,
podiam retornar com segurança ao
Aiê,
podiam cavalgar o corpo das
devotas.
Os humanos faziam oferendas aos
orixás,
convidando-os à Terra, aos corpos das
iaôs.
Então os orixás vinham e tomavam seus
cavalos.
E, enquanto os homens tocavam seus
tambores,
vibrando os batás e agogôs, soando os
xequerês e adjás,
enquanto os homens cantavam e davam
vivas e aplaudiam,
convidando todos os humanos iniciados
para a roda do xirê,
os orixás dançavam e dançavam e
dançavam.
Os orixás podiam de novo conviver com
os mortais.
Os orixás estavam felizes.
Na roda das feitas, no corpo das
iaôs,
eles dançavam e dançavam e
dançavam.
Estava inventado
o candomblé.
(Reginaldo Prandi)
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