quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Ecologia e Cultura

Ecologia e Cultura algumas comparações

 
Comparando a adaptação ecológica dos grupos indígenas que habitam a região dos formadores do rio Xingu e das tribos Jê do Brasil central, pretendo, primeiro, discutir a idéia que correlaciona abundância relativa do meio ambiente com complexidade sócio-cultural; e, segundo, propor um novo critério para a avaliação de complexidade sócio-cultural..
O termo "xinguanos" ou "grupos do alto Xingu" refere-se aos habitantes das aldeias localizadas nas bacias dos rios Ronuro, Batovi e Culuene que formam o rio Xingu. Do ponto de vista geográfico, a região caracteriza-se por: a) uma nítida sepa­ração entre as estações seca e úmida 

 b) por ser uma área de transição entre a floresta amazônica e o cerrado do Brasil central. A flora amazônica é representada nas. matas ciliares, por espécimes de menor tamanho. Os campos abertos, separados por corredores florestais, abrigam a flora e a fauna típicas da savana do Brasil central.
Apesar de falarem Iínguas diversas, as tribos do alto Xingu possuem um grau surpreendente de homogeneidade cultural. Galvão (1960) classificou-as por isso, como uma única área cultural. Os seguintes grupos formam o cerne dessa área: Abete e Kamayurá (Tupí), Waurá, Mehináku e Yawalapití (Aruak), Kuikúro, Kalapálo e Matipu (Karib), e Trumái (língua isolada). Duas tribos - Txikão e Suyá - são culturalmente periféricas a este "cerne", mas foram e continuam sendo fortemente influenciadas pela cultura xinguana.
As casas e aldeias no alto Xingu são morfologicamente idênticas. Os xinguanos compartilham uma economia baseada na pesca e na agricultura de coivara; um sistema de parentesco caracterizado pela descendência bilateral, casamento de primos cruzados e terminologia de primos do tipo lroquês. Comungam as mesmas tradições rituais e religiosas. Os mecanismos para a integração intertribal incluem o comércio especializado de certos bens, rituais intertribais e casamentos. As relações entre as aldeias são normalmente pacíficas.
o termo "Jê" designa um tronco lingüístico, Os grupos Jê ocupavam uma área que se estendia do sul da bacia amazônica até o extremo sul do Brasil. Tal como os do Xingu, os habitats dos Jê centrais também apresentam uma distinção bem defini­da entre estação seca e chuvosa. Os Jê ocupam tradicionalmen­te os cerrados. Hoje em dia, alguns grupos Jê vivem na flores­ta, para onde foram empurrados há mais de um século pela expansão da fronteira nacional.
Os Jê do Brasil central têm sido considerados por vários autores - a exemplo do estudo clássico de Lévi-Strauss (1968) colmo uma unidade cultural integrada. Galvão situa-os no cerne de uma área cultural formada por três núcleos principais. O primeiro inclui os Timbira (Canela, Apinayé, Krahó, Gavião e Krikatí); o segundo, os Akwê (Xavante e Xerente); e o ter­ceiro, os Kayapó (Gorotíre, Txukahamãe, Kuben-kran-kegn Kuben-kragnotire, Diore e Xikrin). Os Borôro- grupo em muitos aspectos semelhante aos Jê - está incluído nesta área. Outros grupos - tais como os Parakanã e os Tapirapé - tam­bém foram incluídos, embora falando um dialeto Tupí. Ambos são culturalmente periféricos aos três principais núcleos Jê.
Os Jê do Brasil central possuem o mesmo tipo de aldeias e de casas. A população de uma aldeia pode atingir várias centenas, havendo registros históricos de milhares de habitantes numa aldeia. Existe forte tendência no sentido de fracionar as aldeias durante uma época do ano. A' vida econômica dos grupos Jê baseia-se na atividade agrícola exercida em área de floresta de galeria, na caça e na coleta. A estrutura social é caracterizada por uma série de metades que se entrecruzam, classes de idade e, em alguns casos, grupos de descendência unilinear. Os tipos de terminologia de parentesco variam. Todos os Jê são matrilocais.
 
ECOLOGIA IDÉIAS TRADICIONAIS E NOVAS INDAGAÇÕES

Um tema corrente no pensamento ecológico é o da relação. entre nÍvel de complexidade sócio-cultural e oferta de alimen­tos, em determinado ambiente natural. Steward & Faron (.1959) levam essa discussão a um extremo ao abordarem "a integração sócio-cultural a nÍvel familiar". Os principais ingredientes dessa fórmulade subsistência são: população reduzida, tecnologia de caça e de coleta, ambiente natural com uma oferta de alimentos relativamente baixa. Carneiro (1968) chama a atenção para a importância do crescimento da população em uma área geograficamente I imitada a qual, independentemente da fertilidade do solo, gera nÍvel mais elevados de complexidade sócio-cultural. No caso do Xingu (Carneiro 1968) e provavelmente no dos Jê (Bamberger 1967) a pressão demográfica está ausente. Tanto os ecossistemas tradicionais dos Jê, como os dos xinguanos poderiam alimentar populações muito maiores. Assim sendo, as diferenças entre as duas formas de organização sócio-cultural devem ser explicadas por outras razões.
Registra-se um importante avanço nos estudos de etnoecolo­gia quando a captura de proteínas é introduzida como fator explicativo de peso específico. Entretanto, os adeptos dessa abordagem continuaram a correlacionar "pobreza" do meio ­
em função da baixa disponibilidade de proteínas - a formas de organização social menos complexas. Os dados aqui reunidos mostram que, em algumas situações, verifica-se o oposto. Em áreas onde o ecossistema é menos generoso, a adaptação requer mecanismos especializados, que exigem maior complexidade sócio-cultural.
Os critérios normalmente adotados para mensurar níveis de complexidade sócio-cultural são devidos a Betty J. Meggers (1977), expostos em seu estudo sobre a Amazônia. Eles va­riam entre tamanho e estabilidade das aldeias até a presença de uma vida cerimonial mais elaborada. O primeiro dos cri­térios citados é tido como o mais importante: ou seja, quanto maiores e mais estáveis as aldeias, maior o nível de complexidade cultural. O valor desses indicadores tem sido questionado desde que Robert Carneiro (1960) estabeleceu, em seu estudo dos Kuikúro, que alguns grupos da floresta tropical, tradicionalmente considerados como regidos por uma organizarão social não muito complexa, têm assentamentos mais estáveis do que se poderia supor.
Oberg (1973) utiliza a variável - aumento da população - como fator básico em qualquer análise de complexidade .cultural, acrescentando que ele é afetado pela fertilidade do solo e o regime de chuvas. A classificação de Oberg registra dois tipos de grupos indígenas brasileiros: 1) tribos homogêneas com descendência bilateral e corporatividade a nível local; 2) tribos cimentadas, formadas .por Vários grupos de descendência, isto é, corporativos unilineares. Este último tipo de organização social é correlacionado a populações mais numerosas, que dispõem de um maior excedente econômico. Embora a tipologia de Oberg seja Um passo “importante para a compreensão das diferenças entre os grupos indígenas sul-americanos, ele não estabelece - e parece que não pretende fazê-lo - uma ralação clara entre estrutura social e condições particulares de meio ambiente. Analisando-se as tribos Jê e xinguanas à luz dessa discussão verifica-se que os xinguanos são tribos homogenia, com descendência bilateral e corporatividade a nível local, enquanto os Jê são tribos segmentadas, constituídas de diversos ­grupos internos. Esta definição, no entanto”.
Por exemplo, a estrutura social xinguana apresenta a oposição sexual como o critério básico de organização, enquanto entre os Jê, alguns princípios como classes de idade são também importantes ao nível adaptativo. O uso desses princípios de organização social e sua relação com meio ambiente te serão discutidos, a seguir, tendo em vista a formulação de uma nova base de comparação das tribos indígenas sul-americanas.
 
AS OPOSiÇÕES DE SEXO E IDADE

O estudo de Murphy (1960) evidenciou a relevância do antagonismo sexual no que diz respeito à organização interna de alguns grupos indígenas sul-americanos. Meu próprio trabalho entre os Awetí mostrou que o antagonismo sexual - logicamente expresso como sistema oposicional - relaciona-se com a vida cotidiana dos índios do Xingu (Zarur 1975). Mais ainda, a oposição sexual revelou ser o princípio organizacional básico da estrutura social dos alto-xinguanos, enquanto que a oposição de gerações seria o 'princípio organizacional secundário. .
Torna-se claro, quando se compara a divisão sexual do traba­lho entre os xinguanos e os Jê, que as regras são mais cuidadosamente observadas entre os primeiros do que entre. os últi­mos. Em ambos os casos, os homens tendem a caçar e pescar enquanto que as mulheres coletam alimentos na mata, plantam e colhem os produtos agrícolas. Nas aldeias Jê, no entanto, podem ser vistos homens realizando tarefas femininas, como carregar uma criança, o que não ocorre nas aldeias xinguanas. É provável que a divisão do trabalho mais flexível entre os grupos Jê seja conseqüência do contato interétnico. Mesmo que assim seja, outras diferenças aparecem quando a análise é leva­da ao nível. ritual. Melatti (1978) sugere que a expressão da oposição sexual ao nível do rito não assume a mesma importância entre os Krahó (grupo' Jê) do que entre os índios do alto Xingu. No caso dos Krahó, sua freqüência e função relegada a segundo plano. Como se vê, o sistema de oposição gene­racional e 'etária parece ter-se imposto ao sistema básico de oposição sexual, no caso dos grupos Jê. Com efeito, uma estru­tura hierarquizada em idades é mais importante para os Jê do que para os alto-xinguanos, inclusive no plano ritual.
Outra evidência de organização diferencial entre os Jê e os xinguanos é a instituição casa-dos-homens. No Xingu, ela está aberta a todos os membros masculinos da aldeia, independen­temente da idade, enquanto que, entre os _ê, ela é normal­mente reservada aos solteiros. Os Timbíra têm uma "aproxi­mação" à casa-dos-homens, pois os solteiros dormem na praça da aldeia na estação seca, e, durante a estação chuvosa, moram na "casa-dos-solteiros". Entre os Xavante e os Kaya­pó, há também a casa-dos-homens, designada, por sinal, na literatura, como casa-de-solteiros (cf. Maybury-Lewis 1964, Vidal 1977). Assim sendo, a casa-dos-homens entre os Jê não possui a mesma conotação que entre os índios do alto Xingu. O homem Jê, associando-se à casa-dos-homens, não é coloca­do em oposição à mulher Jê. Mais ainda, entre os Jê a casa-dos­homens não se vincula a rituais com características de oposi­ção sexual remarcável, como ocorre entre os xinguanos. Por exemplo, a casa-dos-homens Awetí empresta seu -nome - Ka­ritu - ao mais importante dos rituais tribais. Tal vínculo con­trasta com a situação prevalecente no caso dos grupos Jê, em que a casa-dos-homens apenas se associa a uma classe de ida­de particular e a rituais privativos a essa classe. As sanções que podem incidir sobre as mulheres xinguanas que entram na casa - ­dos-homens – violentação pela maioria dos homens da aldeia ­não ocorrem, entre os Jê.
Há razões para se acreditar que a oposição sexual está mais claramente expressa na terminologia de parentesco entre os alto-xinguanos (Zarur 1975), enquanto que a superposição de categorias de idade está refletida na terminologia de paren­tesco dos grupos Jê (Crocker s/d; da Matta 1976). Embora ocorrente entre os Jê,a oposição sexual corre paralela a um
forte princípio de idade (Bamberger 1967) inexistente entre as tribos do alto Xingu. Essa diferença se deve à relevância da mobilidade no espaço para os Jê e de sua ausência no caso dos alto-xinguanos.
 
A PREMISSA DA MOBILIDADE NO ESPAÇO

No modelo - grupos marginais da América do Sul - desenvol­vido por Cooper (1942), Steward (1949), Steward & Faron (1959), as tribos Jê do Brasil central são consideradas como pequenos grupos caracterizados pelo "padrão caçador". A interação entre uma tecnologia "simples" e um meio ambiente "pobre" forçaria essas tribos a se dividirem em bandos, durante o período do ano em que a escassez de alimentos não permite uma maior concentração de população. Constituídos por distintos critérios- tais como descendência e residência pós-nupcial - os bandos circulariam pelo território tribal" em busca da caça e da coleta. Na medida em que a fauna decres­cia em uma área dada, o bando movia-se para outro campo de caça, permitindo que a população animal se refizesse- ao seu nível ótimo.
Sem embargo, a partir do momento em que Nimuendaju (1946) demonstrou a importância da agricultura para os Timbíra, pas­sou-se a admitir que os Jê não eram caçadores e coletores clás­sicos. Trabalhos posteriores, como o de Carneiro (1968) so­bre os agricultores e pescadores do Xingu e o de Sahlins (1972) sobre os grupos primitivos em geral, têm mostrado que as economias mais primitivas atendem plenamente às necessidades, geralmente frugais, de seus membros. Com base nesses dados e nessa linha de raciocínio, o papel da caça como fonte de alimentos e como atividade econômica entre os Jê do Brasil Cen­tral tem sido minimizada. Murdock (1968) leva esse ponto de vista ao extremo, ao negar que os Jê sejam caçadores. Argumenta que, para eles, a caça só adquire importância ao nível ideológico.
Entretanto, é fato incontestável que os Jê se dividem em pequenos grupos para caçar e coletar alimentos. Este padrão não decorre, necessariamente, de qualquer ausência cíclica de ali­mentos, pois caça e produtos agrícolas existem em quantidade suficiente próximo às aldeias de modo a atender as exigên­cias da população. Turner (1979) levantou a hipótese de que o padrão - "trekking" - movimento periódico de subgrupos da população de uma aldeia - cumpre a função de reforçar a hierarquia interna, ou seja, o sistema de dominância masculi­na dentro do grupo doméstico. Atividade tradicionalmente masculina, a caça impõe-se como um modo de produção dominante em relação à coleta e à horticultura, atividades tradicionalmente femininas. Assim se reforça a posição do homem como chefe do grupo doméstico, o qual inclui filhas e genros. Com efeito, a relação entre uxorilocalidade e "trekking" é de grande importância para a etnologia sul-americana e para a teo­ria antropológica em geral. Todavia, o papel do deslocamento periódico de grupos não pode ser reduzido à ordenação de rela­ções internas no âmbito da família. Existem indícios de que a mobilidade dos grupos de cultura Jê - embora importante no reforço das relações hierárquicas internas ao grupo domés­tico - exerce outras funções diretamente relacionadas à defe­sa e à subsistência.
Uma característica comum a todos os grupos Jê são as corri­das de toras descritas por Nimuendaju (1946) e Melatti (1978) para os Timbíra. As várias tribos Timbíra estão divididas em metades cerimoniais cuja função, entre outras, é formar times que competem na corrida de toras de buriti. Elas são carrega­das por um indivíduo de cada vez. Na medida em que aquele que carrega a tora perde velocidade, outro do mesmo time o substitui. A corrida se desenvolve na periferia da aldeia, tendo a praça central como ponto de partida e a casa de uma pessoa ritual mente importante, como ponto de chegada.
Segundo Melatti (1978). "as corridas de toras simbolizam a assimilação do mundo exterior pela aldeia". Não há dúvida de que elas representam a fusão da natureza com a cultura. Res­ta explicar, contudo, porque este símbolo particular foi esco­lhido em lugar de outro qualquer. A isto Melatti responde que as corridas de toras são importantes como exercícios fí­sicos. Tais exercícios constituem um treinamento para grupos humanos que dependem da caça e que são freqüentemente ameaçados por investidas de guerreiros. Eis como argumenta Melatti: "A corrida de toras poderia ser um treinamento para retiradas rápidas, em face dos inimigos, por parte de um grupo sobrecarregado pelo peso da bagagem ou dos feridos. A habili­dade locomotora facilita, também, uma mais eficiente explo­ração da caça numa região dada. Assim sendo, ela estende as atividades de subsistência a uma área bem mais vasta do que a que cerca a aldeia" (1976). As corridas são fortemente re­lacionadas às caçadas, uma vez que a composição dos grupos de caça e a divisão da mesma obedecem, freqüentemente, às mesmas regras dos times de corrida de toras. Outra questão a ser colocada é a seguinte: até que ponto a atual intensificação das corridas de toras entre os Timbíra reflete a sedentarização forçada desses grupos indígenas, normalmente móveis, devido ao avanço dos brancos sobre as suas terras.
A velocidade e a resistência dos Timbíra, em particular, e dos Jê em geral, impressionou muitos observadores. É significati­vo o depoimento de Nimuendaju (1946) quanto aos Timbíra. Maybury-Lewis (1974), referindo-se aos Xavante, declara: "eles se movem num passo rápido e balanceado, extremamen­te difícil para um estranho acompanhar, mais rápido que uma caminhada, mas que não chega a ser um trote. Sustentam este passo o dia todo, se necessário for, intermediado com o lan­çamento de flechas ou com a corrida atrás de qualquer caça que apareça". Os Krahó e outros grupos Jê estão, provavel­mente, entre os povos mais móveis do mundo. Entre os Krahó medí corridas de toras de homens cobrindo 6km em 20 minu­tos. Outras corridas, para ambos os sexos, com um grande nú­mero de participantes pertencentes a diferentes grupos de ida­de, cobrem, aproximadamente, 30km em 2 horas e meia de duração. Quando se leva em conta que uma unidade militar moderna, em marcha forçada, se desloca 40km em um dia, a mobilidade dos Krahó se revela fantástica. Calculo que uma população como a dos Krahó incluindo mulheres, crianças e velhos pode cobrir mais de 100km em um dia. Nestas circuns­tâncias, o valor das corridas diárias de toras torna-se evidente. Fica igualmente claro que nenhum grupo humano investiria tamanho esforço numa atividade se ela não representasse um imperativo de sobrevivência.
Infelizmente, nos estudos de organização social, a tecnologia que vem a ser a chave para a compreensão de aspectos cruciais dos sistemas sociais tem sido amplamente ignorada. Antropólo­gos e arqueólogos estabeleceram, desde há muito, uma corre­lação necessária entre cerâmica e vida sedentária; inversamente, objetos cerâmicos, que são ao mesmo tempo pesados e frágeis, representam um ônus para uma população itinerante.
Os grupos Jê do Brasil central não possuem cerâmica. Compa­rada com a de grupos mais sedentários, a cultura material dos Jê é composta por pequeno elenco de objetos portáteis. Estes são, em geral, resistentes ao choque: um inventário que realiza­mos da cultura material Krahó demonstrou que aproximada­mente 65% dos itens são feitos de folha de palmeira. A folha de buriti e de outras espécies palmáceas é abundante no cerra­do. Devido à facilidade e rapidez com que esses objetos são produzidos, e à pequena quantidade de bens necessários, cada pessoa pode produzir e descartar à vontade inúmeros artefa­tos. Por exemplo, as cestas Krahó levam cerca de 5 minutos a 1 hora para serem feitas, dependendo do cuidado com que são trançadas. A plumária dos Krahó não é elaborada, certamen­te porque o estilo de vida desses índios não oferece condições para a sua conservação.
Em suma, o acervo tecnológico dos grupos Jê caracteriza-se por uma pequena quantidade de equipamentos, ausência de canoas e de cerâmica, plumária pouco elaborada, trançado de palha relativamente desenvolvido, e a capacidade de descartar e reproduzir vários objetos, segundo as necessidades do mo­mento. Os inventários da cultura material dessas tribos são uma evidência muito forte de sua vida errante. Em contraste, o artesanato dos índios do alto Xingu é rico em cerâmica relativamente sofisticada, madeira e plumária.

ASPECTOS ECOLÓGICOS DA CULTURA JÊ

As evidências até aqui apresentadas devem ter deixado sufici­entemente claro que a cultura Jê gira em torno da premissa "mobilidade no espaço". Entretanto, o problema colocado por Turner (1977) permanece: não havia necessidade de surgir o padrão "trekking", considerando-se os alimentos disponíveis. Além da necessidade, mencionada anteriormente, de reforçar a hierarquia interna dos grupos domésticos, uma resposta pode ser encontrada na adaptação dos grupos Jê ao seu meio ambiente. A propósito, cabe invocar a teoria de Gross; (1975) sobre a captura de proteínas e a localização das aldeias indíge­nas na América do Sul. É possível que os Jê ocupem um ecos­sistema que resultaria inabitável, não fossem seus freqüentes deslocamentos. Em outras palavras: a menos que a população de uma aldeia se movesse regularmente, as fontes de proteínas seriam rápida e inexoravelmente exauridas. Os recursos em proteínas, neste caso, incluiriam o peixe e a caça.
Muitos dos meio-ambientes Jê têm pequena oferta de peixes - tanto em número quanto em tamanho - quando comparada à da floresta tropical. Com efeito, a rede hidrográfica que corta o cerrado é composta por poucos rios grandes - embora pisco­sos - e afastados entre si. Assim sendo, é provável que se os Xavante se deslocassem para as barrancas do rio Araguaia ou os Krahó para as margens do rio Tocantins, suas necessidades de proteína animal seriam sobejamente satisfeitas. Considere-se, porém, que existem fortes indícios de que enquanto a floresta tropical é rica em peixe, a savana é rica em caça.
Uma conclusão mais segura sobre esse assunto exige estudos etnozoológicos profundos. É necessário lembrar também que alguns grupos macro-Jê, a exemplo dos Borôro, aproveitam melhor os recursos dos rios que os Timbíra ou os Xavante. Providos de canoas, os Borôro possuem uma culinária mais elaborada com base no peixe e uma ideologia orientada, em gran­de parte, para a água. Os Kayapó, embora sem canoas, lançam mão de recursos fluviais com bastante desenvoltura. A etno­história dos Kayapó ensina que esses índios foram deslocados, por pressão das frentes pioneiras, de um ambiente originaria­mente de cerrado para uma área densa em rios e florestas. Mais de um século de adaptação gerou uma tecnologia propícia a esse novo ambiente. _ importante notar que pressões guerrei­ras - que continuaram a ser exercidas sobre esses grupos - le­varam à recorrência do padrão de mobilidade.
Acredito que o conceito de "mobilidade espacial" ofereça uma explicação suficiente para as diferenças entre os sistemas Jê e xinguano. Enquanto que, para os primeiros, ele constitui uma premissa de organização, para os últimos, esse princípio está ausente. Faz sentido que grupos caçadores tenham siste­mas mais hierarquizados, segundo linhas de geração e etárias. De fato, a divisão de trabalho entre grupos de idade torna-se altamente funcional, nas atividades de caça, devido aos laços de solidariedade que se estabelecem entre indivíduos perten­centes ao mesmo grupo. Entre os Timbíra, por exemplo, al­guns grupos de idade caçam mais ativamente que outros'. Ho­mens com mulheres e filhos caçam mais freqüentemente que os solteiros; e estes, mais que os velhos. Entre os Krahó, e outros grupos Timbíra, metades de idades - Kroikateyé e ha­rakateyé no caso dos Krahó - são operativas para a organiza­ção de grupos caçadores, corridas de toras e distribuição do produto das caçadas.
IOutra possível explicação - tanto para a mobilidade dos Jê como para a importância dos grupos de idade e da oposição generacional - provém do meio sócio-político envolvente. Uma cultura que tenha, ao mesmo tempo, um sistema de idade estratificado e uma economia caçadora encontra-se automaticamente dotada de uma organização militar eficiente e agressi­va. Desde que as tribos Jê da savana partilhavam a mesma orga­nização agressiva, ataques recíprocos deviam ser comuns. Além disso, as aldeias dos cerrados, facilmente localizáveis, são via de regra mais expostas a ataques de inimigos que as de floresta tropical. As invasões a outros territórios tribais, nas sortidas contra a caça, deviam também ocorrer com freqüência, geran­do a necessidade de movimentações rápidas.
O processo de contato interétnico, com suas fases iniciais hos­tis, deve ter reforçado o padrão original de mobilidade. Ainda em 1940, expedições punitivas eram lançadas contra os Krahó por terem "caçado" gado em terras de brancos. Essas contin­gências militares exaltavam a importância de ataques rápidos e retiradas. ,Por outro lado, as corridas de toras ajudavam a preparar a população Jê a enfrentar os fazendeiros. Na verda­de, para um grupo de índios, correr através do cerrado com uma tora de madeira de 100kg não devia ser muito diferente do que carregar 'uma rês.
Com base nessa discussão, pode-se reelaborar a hipótese origi­nal de Cooper e Steward: o padrão "mobilidade espacial" dos grupos Jê é menos o resultado de um meio ambiente pobre - em termos de oferta de alimentos e de uma tecnologia simples ­do que de uma adaptação complexa à oferta de proteínas, à natureza do sistema sócio-político, e a premências militares. Estes fatores também iluminam a importância da prevalência dos sistemas de oposição etária sobre o da oposição sexual.

ASPECTOS ECOLÓGICOS DA CULTURA XINGUANA

Inexistiam - na região dos formadores do rio Xingu - fatores ecológicos que implicassem adaptações culturais como as des­critas para os Jê. Os grupos alto-xinguanos elegeram uma fonte maior de proteína - o peixe - ignorando as demais. São essencialmente pescadores e, ao contrário dos Jê, que idealizam inclusive o erotismo da carne, caçam pequenos pás­saros e macacos, unicamente. Próximo às aldeias xinguanas existe sempre abundância de caça inexplorada. Nas matas ciliares há uma grande variedade de animais, como antas, capi­varas, veados, pacas e outros. À uma hora de distância a pé da aldeia Awetí, encontrei um campo,. onde pastavam cente­nas de veados e cervos. Os xinguanos consideram a carne desses animais de pêlo e porte avantajado repugnante. São considerados "índios que foram para o mato e viraram bicho". Consumir sua carne como alimento é visto como uma forma de antropofagia.
Como disse, a área habitada pelas tribos xinguanas representa uma transição entre os cerrados do Brasil central e as florestas tropicais da Amazônia. As fontes de proteínas dos dois meio ambientes estão aí representadas com igual ênfase. A região é servida por uma rede de canais e rios, nos quais há abundân­cia de peixes. Considerando-se a população xinguana total - es­cassa em relação à disponibilidade de alimentos - verifica-se que excluir a caça das atividades produtivas é uma alternativa viável.
Considere-se, ainda, que as pressões guerreiras nunca foram tão fortes entre os grupos xinguanos como entre os Jê. Devido a uma série de fatores históricos e geográficos, o alto Xingu pode ser tido como uma área de refúgio, na qual ingressaram pequenos. grupos de diferentes tribos e troncos lingüísticos em­purrados pela expansão da população brasileira. A adaptação dos Jê a um ambiente mais especializado do cerrado - a leste, nordeste e sudeste do Xingu - está expressa em sua cultura por uma ideologia de apego e valorização dos campos limpos. Situados a uma saudável distância dos xinguanos, estes vizi­nhos agressivos formaram uma parede de defesa contra a incursão de outras tribos e de frentes pioneiras nacionais.
Por outro lado, devido à longa experiência de acomodação intertribal, o sistema xinguano revela uma inusitada capacidade de assimilar a intrusão de tribos. Exemplo disso são os Suyá e Trumái aceitos com relativa facilidade na região. A guerra tradicional no Xingu não implica massacres como os que caracte­rizavam os conflitos intra e intertribais dos grupos Jê. A capa­cidade de diluir O conflito levou vários pesquisadores - a exem­plo de Galvão (1950) - a enaltecer a natureza diplomática dos xinguanos.anos.
A ausência de belicosidade por parte dos grupos do alto Xingu pode ser relacionada à falta de subdivisões internas no âmbito das aldeias; tais como classes de idade ou grupos de descendên­cia. Não há possibilidade de mobilização fácil, rápida e organizada de um destes grupos, ao contrário do que pode ocorrer' entre os Jê. Um sistema mais frouxo - de oposição sexual com parentesco bilateral - não proporciona este tipo de estrutura.
Assim sendo, os alto-xinguanos que dispõem de um ambiente mais "rico" - seja em potencial agrícola, seja em potencial protéico - estão dotados de uma estrutura social mais simples (ver figura I).

CASOS TRANSICIONAIS

Cabe referir, agora, ao paralelo traçado por Joan Bamberger entre o sistema adaptativo dos Kayapó e o dos alto-xinguanos. Dada a semelhança entre os ecossistemas do alto Xingu e al­guns dos meio-ambientes dos Kayapó, a referida autora conclui que o sistema adaptativo das duas unidades culturais depende das suas visões de mundo. Ross (1978) tentou demonstrar que o ambiente do alto Xingu difere do dos Kayapó, e que os xinguanos pescam porque essa é, no seu caso, a atividade mais produtiva.
A interpretação de Bamberger, com referência à região dos for­'madores do Xingu, parece correta. A ausência de pressão ambi­ental confere às tribos da área a capacidade de se organizarem ao longo de linhas independentes do seu ecossistema. No caso dos Kayapó, entretanto, a autora não dá a devida ênfase ao fato de que esses índios procedem de uma área muito bem definida de cerrado. E que, de maneira diferente de outras tribos Jê do cerrado, os Kayapó, apesar de não possuírem canoas, usam os recursos do rio com alto grau de sofisticação. Um século de permanência nesse novo habitat foi suficiente para gerar um novo processo adaptativo. O mesmo se aplica aos Borôro, grupo macro-Jê. Eles usam canoas, possuem uma culinária elaborada baseada no peixe, e os motivos aquáticos são correntes em sua mitologia. Assim, a intensidade de mu­danças periódicas de localização e mobilidade dos Kayapó e dos Borôro expressam diferentes graus de adaptação ao rio.
Os argumentos de Ross são insuficientes para mostrar uma mais alta produtividade da pesca no Xingu. Na verdade, os habitats dos Kayapó e das tribos do Xingu não são tão diferen­tes. Não obstante, os Kayapó caçam mais do que pescam.
Outros casos transicionais podem ser encontrados na área inter­mediária entre a floresta amazônica e o Brasil central. Eles servem para testar os pontos de vista aqui expressos. Os Tapi­rapé, grupo Tupí que habita próximo às margens do Araguaia, partilham diversas características com os Jê, embora não atin­jam a mesma complexidade social. Esses índios vieram, há mui­tos séculos, de uma área de floresta bem definida, mais a este (Baldus 1970). Embora também pesquem, essa atividade não é tão importante quanto a caça. Possuem, à maneira dos grupos Jê, uma estrutura segmentada em classes de idade hierarquiza­das; praticam o "trekking" e caçam (Wagley 1977). Na ilha do Bananal, ainda no rio Araguaia, seus vizinhos Karajá têm na pesca a base de sua dieta protéica.
Estes exemplos transicionais demonstram que o determinismo ambiental opera unicamente quando as fontes de proteína re­querem mecanismos especializados para a sua captura. Esses seriam os. casos típicos dos índios Jê da savana. Havendo mais de uma fonte de proteína disponível, o grupo pode optar entre uma ou outra (Xingu e Karajá) ou por todas elas (Kayapó, Borôro e Tapirapé). Em um meio ambiente mais diversificado, a organização da cultura será muito mais dependente da sua própria lógica interna do que de pressões ecológicas.
 
CONCLUSÃO

A ausência de pressões ambientais, que exige especialização para a captura de proteínas, permitiu a simplificação do siste­ma social dos grupos indígenas do alto Xingu. Esse sistema mais simples - definido pela oposição entre os sexos - pode ser considerado como uma forma básica de organização social dos grupos indígenas sul-americanos. Formas culturais mais complexas - como as do Jê - podem ser entendidas como complicações dessas estruturas elementares, pela adição de outros critérios de organização. Tais seriam: estratificação de classes de idade ou grupos de descendência.
Para confirmar semelhantes hipóteses, a amostra etnográfica deve ser ampliada com a inclusão de outros grupos indígenas. Implicações importantes para etnologia sul-americana seriam de se esperar.
 
1- as teorias que procuram explicar os diferentes graus de complexidade sócio-cultural dos grupos indígenas - princi­palmente a que correlaciona potencial demográfico e produção de alimentos - devem ser cuidadosamente reavaliadas.
 
2 - a principal razão para níveis distintos de complexidade sócio-cultural deve ser buscada na necessidade de especializa­ção para a captura de proteínas e para a guerra. Quanto mais diversificados e abundantes os recursos, menos complexas e especializadas as instituições culturais. Segue-se que: menos diversificados os recursos ecológicos, mais complexa a cultura.

 3 - um novo esquema de referências baseado em princípios organizacionais - oposições entre sexo e idade - poderia servir para identificar tipos sociais indígenas sul-americanos. Este esquema de referências leva em conta aspectos ambientais.

 4 - o tamanho da população não determina o nível de comple­xidade dos grupos indígenas. Pelo contrário, ele pode ser uma conseqüência da necessidade de existirem grupos corporativos devotados à captura de proteínas e à guerra.


 

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