quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Raízes Étnicas do Brasil

Raízes Étnicas do Brasil modelos de integração


“Vou-me concentrar nas raízes étnicas negra e indígena, aquelas que sofreram os efeitos da escravidão e sofrem, hoje, com maior peso, o da exclusão social e política, lamentavelmente lembrada pela violência gratuita contra índios que, há pouco, se manifestavam em Santa Cruz de Cabrália. Os portugueses serão considerados, na medida em que seu poder colonial impôs as relações étnicas no Brasil e os demais a eles foram forçados a se integrar. Usarei a comparação com o sistema interétnico norte-americano, como metodologia para melhor avançar a discussão. Afinal, a história americana também se construiu a partir das relações entre europeus, índios e negros, e muitas das análises sobre o Brasil e propostas de ação política para o nosso País são produzidas nos Estados Unidos, por pesquisadores norte-americanos.
Cabe, também, uma discussão preliminar do que seja etnia e das implicações deste conceito para as ciências sociais e para o pensamento político. Tal preocupação decorre do entendimento de que conceitos, como armas, podem ferir ou matar. O conceito de “etnia” tem sido particularmente danoso. Sua definição precisa é indispensável para que represente um instrumento de defesa de populações definidas por um critério étnico, e não o contrário.
Etnia é um conceito antropológico que denota grupos humanos que marcam sua identidade por diferenças culturais escolhidas para este fim.
Uma primeira relação do conceito de etnia é, portanto com o de identidade social. Este último conceito passou a ser amplamente utilizado, a partir da década de 70, como marco para novas questões teóricas e para a pesquisa empírica. A partir de então, "identidade étnica" passou a representar um termo de extrema importância. Hoje, o conceito de etnia é, em conseqüência, intrinsecamente associado ao de identidade. Um importante avanço decorrente desta relação foi o abandono da idéia de etnia como algo imanente aos seres humanos. Pelo contrário, passou-se a conceber as distinções étnicas como contextualmente construídas, relativizadas a culturas, histórias, geografias e interesses particulares.
A percepção das diferenças físicas ou biológicas entre seres humanos é, assim, culturalmente produzida, e os efeitos discriminatórios desta percepção, também resultam da ótica de cada cultura particular. Assim, supostas diferenças “raciais” representam, apenas, um critério particular de diferenciação étnica. Comuns são, também, as distinções étnicas definidas exclusivamente por critérios religiosos, caso de sérvios, croatas e bósnios, por exemplo. O número de situações em que “raça”, conceito biológico, é utilizado para a segmentação étnica é muito pequeno e reflete a ênfase dos últimos séculos. No século XVI, Shakespeare apreende este movimento histórico, ao criar a figura trágica de Otelo, triste mouro de pele escura, inferiorizado em seu ciúme, mas, ainda assim, um importante líder militar, casado com mulher branca.
Raça e etnia são conceitos que, embora distintos, carregam uma perigosa proximidade semântica. “Raça” implica elementos biológicos como base para diferenças culturais inatas. “Etnia” também implica diferenças culturais, porém sem causas biológicas. Supostas diferenciações “raciais” são, elas mesmas, critérios culturais de diferenciação entre grupos humanos, ou seja, critérios para traçar fronteiras étnicas, da mesma forma pela qual religião, rituais, roupas, nomes e alimentos são usados para este fim. A diferença entre “raça” e “etnia” é, portanto, sutil, e, por isto mesmo deve ser sempre acentuada.
A questão das identidades étnicas é, ainda, complicada por sua relação com os sentimentos associados com a idéia de nação. Ao contrário das antigas dinastias imperiais que reuniam sob seu governo diferentes povos, a tendência do estado nacional moderno republicano, surgido com a revolução francesa, é a uniformidade lingüística e cultural. No Brasil, a solução mais eficaz para o paradoxo envolvendo diversidade étnica e nação está na tese da miscigenação, que encontraria sua expressão maior na brilhante obra de Gilberto Freyre.



Não se sabe ao certo quantos indígenas viviam no Brasil ao tempo da chegada dos europeus, mas, levando-se em conta o acentuado decréscimo populacional decorrente do contato interétnico, este número devia a chegar a algo entre cinco e dez milhões.
Os índios que os europeus encontraram, aqui em Porto Seguro, falavam uma língua do tronco lingüístico tupi. Eram os tupis litorâneos, como os tupinambás ou tupiniquins, descritos pelos primeiros cronistas, que ocupavam as costas brasileiras de Santa Catarina ao Pará, adentrando as barrancas do Rio Amazonas por milhares de quilômetros. Além dos tupis, o Brasil ainda contava, em seu interior, com grupos indígenas classificados nos troncos jê e aruak, além de uma importante grande família isolada, a carib.
Posteriormente, haveria uma uniformização lingüística, criando-se uma verdadeira “língua brasileira”, o nhengatú ou “língua geral”. Os jesuítas traduziram a Bíblia para a língua dos tupis da costa e passaram a utilizá-la como língua brasileira, a todos ensinada como aspecto da própria catequese. Até finais do século XVIII, era falada em quase todo o território nacional, funcionando mais ou menos como o guarani, hoje no Paraguai. Há não muito tempo, o nhengatú ainda era língua franca em áreas caboclas e indígenas do Alto Rio Negro.

As classificações lingüísticas escondem a enorme diversidade existente entre os grupos indígenas brasileiros. De fato, a distância filogenética entre diferentes línguas do tronco tupi faladas no Brasil é maior do que a existente, por exemplo, entre os povos indo-europeus. Do ponto de vista político, os indígenas não possuíam qualquer sentimento de unidade intertribal. A identidade não era a de “índio”, mas de tupinambá de tal e tal aldeia, ou a de aweti, ou a de awa-canoeiro ou a de tapirapé, e assim por diante. O índio genérico é uma criação do colonizador.
Considerando tal diversidade, que incluía centenas de línguas, milhares de dialetos e de micro-unidades políticas, a maneira mais adequada de se caracterizar a situação dos índios brasileiros é através de uma tipologia ecológica, ou seja, por intermédio da relação entre meio ambiente natural e cultura. Desta forma, nas terras baixas da América do Sul, isto é, fora dos Andes, há dois grandes tipos de grupos indígenas: o primeiro é formado pelos habitantes das florestas tropicais e o segundo, pelos habitantes das savanas e outros campos abertos.
 
Há cerca de vinte anos, explorei tais diferenças em um estudo, sobre os indígenas do Centro-Oeste brasileiro, investigando o contraste entre os índios de cerrado e os do Alto Xingu, de floresta tropical. As conclusões então obtidas podem ser extrapoladas para a maior parte da América do Sul.
As principais diferenças entre os dois tipos consistem em uma maior população e complexidade social dos grupos do cerrado. Caçadores, organizam sua sociedade a partir da premissa da mobilidade no espaço, do nomadismo interno a uma determinada área e da velocidade nos deslocamentos para raids guerreiros. Enfatizam rígidas e formalizadas classes de idade, além das diferenças entre os sexos na divisão do trabalho e na sua organização interna. Possuem uma agricultura desenvolvida.
Já os índios xinguanos, nossa amostra dos grupos de floresta tropical, são, primeiramente pescadores e classificam como tabu a carne de grandes animais. Estão distribuídos em aldeias com pequenas populações espalhadas à beira de mananciais piscosos. Sua organização interna fundamenta-se, apenas, na divisão do trabalho entre os sexos e, assim, na oposição entre homens e mulheres. É, portanto, menos complexa do que a dos caçadores dos campos abertos, onde, adicionalmente, as hierarquias etárias assumem um papel importante.

Os tupis do litoral tinham populações maiores, ficando em uma situação transicional entre os dois tipos acima descritos. O tamanho de suas populações decorria da sua organização para a guerra, destinada à captura de prisioneiros para o sacrifício ritual.
Todos os grupos indígenas brasileiros partilham, em sua organização original, o fato absolutamente relevante de não constituírem sociedades de classe. As diferenças sociais são mínimas e conferidas por genealogia e status guerreiro. Não há propriedade individual da terra mas, apenas, a de instrumentos agrícolas e a de uns poucos bens pessoais. A organização social depende do sistema de parentesco, do status, e não do contrato. A divisão do trabalho dá-se, essencialmente, entre homens e mulheres e entre jovens e velhos. Desta forma, todo homem adulto é guerreiro, pescador ou caçador, artesão, desenvolve atividades agrícolas e religiosas, além de participar da vida política da aldeia. Em muitas das pequenas comunidades indígenas, o sistema político vigente é o que uma colega antropóloga denominou como sendo de ”anarquia sem caos”, uma democracia ainda mais direta do que a grega, pois inclui todos os homens adultos. As mulheres são excluídas do sistema político, uma vez que a igualdade civil entre homens e mulheres é um fenômeno historicamente recente, do século XX, resultante do progresso tecnológico ocidental, que anula as diferenças físicas entre os sexos no trabalho humano.
Nas comunidades indígenas tradicionais, isoladas do contato com a sociedade ocidental, trabalha-se muito pouco, duas horas e meia por dia, segundo alguns cálculos. Come-se muito bem e tinha-se, antes da chegada dos europeus, um bom padrão de saúde. Não existe nada mais enganoso do que a imagem dos chamados “primitivos” famintos, por não controlarem adequadamente a natureza. Como sobra tempo, dança-se e canta-se muito. É enfatizada a solidariedade, a partilha, a distribuição da riqueza por meio de atividades rituais. Festa, religião e trabalho não são esferas da atividade humana distintas e não se pode separar, com clareza, o sagrado do profano. A exploração dos recursos naturais é realizada de forma a se garantir sua renovação permanente.
Isto não quer dizer que as sociedades indígenas fossem, antes da chegada dos europeus, livres de problemas decorrentes da guerra e de outros fatores. Seus membros eram, porém, em geral, mais felizes do que os homens nascidos em nossa sociedade ocidental contemporânea.

A chegada dos europeus representou um cataclismo para essas pequenas comunidades, iniciando-se, então, um dos mais terríveis genocídios da história humana. Primeiro, a doença. Os índios, simplesmente, não tinham resistência a alguma moléstias, como a gripe e o sarampo. Não mais do que um incômodo passageiro para os portugueses, representavam, para os índios, a morte em larga escala e o fim de sociedades inteiras, algo semelhante à peste negra que dizimou a Europa medieval. Pequenas aldeias espalhadas, com a população dispersa, eram mais protegidas contra essas epidemias. A prática de “aldear” os índios, em grandes reduções, para sua catequese acabou por facilitar a transmissão de doenças e contribuir para o seu extermínio. Os indígenas assim concentrados, tornavam-se, também, presas mais fáceis para bandeirantes em busca de escravos.
 
Mesmo quando o índio escapava da escravidão e da doença, a desorganização de sua cultura levava à miséria material e moral. A destruição sistemática de valores morais e religiosos e de costumes tradicionais, desestruturava identidades coletivas e individuais, criando um novo índio, bêbado e maltrapilho, que não encontrava qualquer melhor razão para continuar vivendo.
Embora não pudessem livrar-se do pensamento de sua época e do contexto colonial que os envolvia e os fazia seus agentes, era de alguns religiosos a única voz que se ouvia em favor dos índios. Jesuítas, como Anchieta, viviam em conflito com os colonos portugueses. Jamais serão esquecidos os emocionantes sermões do Padre Antônio Vieira, em sua defesa, as leis que conseguiu junto ao Rei D. João IV, e a luta que por eles travou durante toda a sua vida. Na América espanhola, aquele que viria a ser o bispo de Chiapas, o Padre Bartolomé de Las Casas conseguiu ver vitoriosa sua tese de que os índios tinham alma, qualificando-se, portanto, como seres humanos.

Os primeiros portugueses que se instalaram nesta Bahia e em outros lugares, como São Vicente, usaram os índios como escravos e as índias como procriadoras. Como demonstra recente pesquisa de biólogos da Universidade Federal de Minas Gerais, a miscigenação com mulheres índias foi, até mesmo, maior do que com negras, associada à inexistência estatística de cruzamentos de homens índios com mulheres brancas. O fato de no Brasil se falar, predominantemente, o nhengatú, até o século XVIII, devia-se não só à opção dos preceptores jesuítas, mas também, ao fato de ser esta a língua falada em casa pelas mães da maior parte dos brasileiros. Criou-se, assim, uma sociedade de mestiços, os mamelucos, que uniam a avidez predatória dos exploradores coloniais ao conhecimento do ambiente e às técnicas de sobrevivência indígenas.

O sistema de relacionamento com os índios era, no Brasil, inteiramente diverso do norte-americano. Estimulava-se a mestiçagem, devido à falta de gente em Portugal, e os índios eram considerados como súditos reais. Mesmo sem maiores conseqüências práticas, havia leis para sua defesa. Nos Estados Unidos, os indígenas eram considerados como nações autônomas, com as quais se assinavam tratados e se fazia guerra, declaradamente de extermínio, para a desocupação de suas terras para os colonos brancos.
Já no século XVII, relatava-se a virtual destruição das populações nativas que habitavam o litoral brasileiro, seja por doença, seja pelos sofrimentos da escravidão, seja devido a guerras. Os que sobreviviam pertenciam a comunidades com populações originais altas, dentre as quais, por chance estatística, alguns escapavam. Essas populações residuais seriam capazes de, ao longo dos séculos, criar mecanismos de resistência às doenças trazidas pelos europeus e de voltar a crescer. Calcula-se, hoje, em mais de trezentos mil, o número de índios no território nacional. Há bolsões indígenas espalhados por quase todo o País. São, geralmente, sociedades marginais à economia, à política e à cultura nacionais, vivendo uma brutal crise de valores que atinge, mesmo, situações extremas de suicídio coletivo, caso de alguns grupos de Mato Grosso do Sul.

Muitos grupos indígenas que permaneceram no Brasil sobreviveram em áreas de refúgio, regiões ermas, sem maior atrativo econômico para a expansão ocidental. Alguns estabeleceram contatos comerciais mais ou menos permanentes com a sociedade envolvente. Outros permaneceram completamente isolados. Até hoje, nosso País possui, em seu território, populações nativas isoladas, concentradas no Alto Solimões, Rondônia e Acre. Esta situação , possivelmente, se repete apenas na Nova Guiné.
Há os casos mais díspares. Em áreas como Roraima e no Alto Rio Negro, as populações indígenas são numericamente predominantes. Na Amazônia, o mestiço com feições indígenas está em todo lugar. Há, ali, uma sutil gradação social e cultural que vai do índio ao caboclo. No Nordeste, apenas um grupo indígena, os fulniô, de Águas Belas, Alagoas, mantém sua língua nativa. Quase todos os demais agregam-se em torno de um único ritual tradicional, o Toré. No Sul e no interior de São Paulo, a sobrevivência dos poucos índios remanescentes, xokleng e kaingang e guarany, já se deve à política indigenista estatal, pela garantia da terra aos que escaparam dos ataques dos bugreiros, assassinos profissionais, que no começo do século passado os exterminavam para que seu território fosse ocupado por colonos europeus e fazendas de café.
Os índios constituem, claramente, grupos étnicos, com fronteiras sociais bem delimitadas. Já a caracterização étnica dos negros brasileiros é muito mais complicada, devido à ausência de critérios evidentes, comunitários, de delimitação étnica.

Os escravos negros vieram substituir os escravos índios, exterminados rapidamente. Eram, em geral, vendidos por potentados locais a mercadores africanos ou árabes, que os revendiam aos portugueses. A escravidão começava na própria África. Suas sociedades de origem estavam, portanto, articuladas ao que hoje se denomina “globalização econômica” pois, já chegaram ao Brasil presos às correntes do “brigue imundo” de que nos falou o poeta. Originários de etnias diversas e falando línguas diferentes eram amalgamados nas senzalas. Calcula-se que tenham vindo em número de três milhões e, hoje, seus descendentes estão em todo o País.

Este foi outro genocídio em larga escala, consubstanciado pela morte de milhões de seres humanos nos porões dos navios, no excesso do trabalho, na má alimentação e nos castigos físicos. O debate intelectual no interior da Igreja espelhava as contradições da época. O Padre Las Casas, no século XVI, defendia a posse de alma pelo índios, mas não pelos negros! O nosso querido Padre Vieira, como demonstrou o Padre José Carlos Aleixo, antecipou-se a Castro Alves, denunciando o sofrimento dos negros e D. João Evangelista Terra, em seus importantes livros sobre a catequese de índios e negros no Brasil Colonial, demonstrou o reconhecimento dos direitos religiosos a negros e sua defesa pela Igreja, a partir do sec XVI. Por outro lado, de acordo com José Murilo de Carvalho, nos finais do sec. XVIII, D. José Joaquim de Azeredo Coutinho, Bispo de Pernambuco e, posteriormente, Inquisidor-Mor do Santo Ofício defendia acaloradamente a escravidão, em seus escritos.
É verdade que seria disseminada no pensamento social brasileiro a tese do “bom senhor de escravos” brasileiro, que o historiador norte-americano Frank Tannenbaum trataria de desenvolver nos finais dos anos 40, contrastando os sistemas escravocratas norte-americano e brasileiro. O argumento principal é o de que a escravidão no Brasil não teria sido tão cruel quanto nos Estados Unidos, pois, na tradição católica, os escravos ocupariam um lugar na sociedade, tendo o direito ao batismo, a construir suas igrejas, a pertencer a irmandades religiosas, além da possibilidade de constituir família. Com o tempo, já nos séculos XVII e XVIII, não se discutia, na América Ibérica, se os negros tinham ou não tinham alma, pois já não havia mais dúvidas a respeito de sua essencial humanidade. Assim, era-lhes permitida a alforria, fosse como retribuição a serviços prestados ou reconhecimento de paternidade de mestiços, fosse por compra, uma vez que podiam trabalhar por conta própria, quando não estivessem prestando serviço ao senhor. Era aos ex-escravos, até permitida a posse de escravos. Tannenbaum relaciona a escravidão brasileira com a romana, onde tal relação jurídica não era considerada um estigma definitivo, biológico, mas um infortúnio econômico temporário. Daí o título de seu pequeno clássico sobre o tema: “Escravo e Cidadão”.
O contraste com os Estados Unidos, especialmente com os estados do Sul, era, de fato, impressionante. Sua humanidade era rejeitada por postulado genético pois, à semelhança das criações de cavalos ou de gado, disseminaram-se, nesse País, as fazendas de criação de escravos. Era escolhido o escravo mais saudável e forte como reprodutor, sendo-lhe entregue mulheres selecionadas para que a prole alcançasse um melhor preço no mercado. Os direitos de organização religiosa, o primeiro passo para a afirmação de sua cidadania, só seriam alcançados muito tardiamente.
No mundo ideal das normas, o ponto de vista de Tannenbaum é defensável, pois alguns direitos, atribuídos aos escravos no Brasil, inexistiam nos Estados Unidos. Na prática, é desmentido pelos instrumentos de tortura, pela morte precoce devido ao excesso de trabalho e à falta de alimentos, pelo estupro sistemático da mulher negra pelo senhor branco, bem como, pela multiplicação dos quilombos, cujo número atesta as reais condições de vida nas senzalas brasileiras. Eram em pequeno número os negros que tinham acesso àqueles elementares direitos.

A denúncia da existência de preconceito contra negros no Brasil iria acontecer, gradativamente, a partir do anos 50.
 De transcendental importância, neste sentido, foi a realização de uma pesquisa financiada pela UNESCO, que incluiu sociólogos e antropólogos das universidades de São Paulo, da Bahia e de Columbia, em Nova York. O pensamento produzido nas universidades, a partir dessa investigação pioneira, iria popularizar-se, ao longo das décadas e influenciar a maneira pela qual os brasileiros passaram a se ver.

A equipe de sociólogos paulistas, liderada pelas figuras notáveis de Florestan Fernandes e Roger Bastide, incluía alguns de seus alunos mais conhecidos, como Otávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Uma das teses centrais da pesquisa então desenvolvida, apresentada no livro de Fernandes “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, fazia a ponte entre o marxismo e a questão étnica. Ficou evidenciada a existência de fortes atitudes de estigmatização de negros no Brasil, ou seja, a existência do preconceito e que este decorria da competição presente na sociedade capitalista. Onde o capitalismo estivesse mais avançado, o preconceito se faria sentir com maior força.

A pesquisa na Bahia, desenvolvida sob a liderança dos antropólogo Thales de Azevedo e Charles Wagley, chegou a conclusões extremamente interessantes. A equipe incluía, dentre outros, o estudante de pós-graduação Marvin Harris, que viria a ser um dos mais importantes antropólogos norte-americanos de sua geração. Como a investigação realizada em São Paulo, também contribuiu para demonstrar que o Brasil não era nenhum paraíso racial e que o preconceito fazia parte do cotidiano da vida brasileira. Porém, enquanto a pesquisa paulista referenciava a situação brasileira a um quadro interpretativo geral, o marxismo, a pesquisa realizada na Bahia partia da comparação entre as situações empíricas brasileira e norte-americana.
Assim, os pesquisadores norte-americanos e brasileiros constataram que os sistemas de classificação étnica brasileiro e norte-americano diferiam radicalmente. Nos Estados Unidos, o critério de classificação de uma pessoa como negra é biológico/racial. A biologia popular é elevada ao plano legal, de forma que, por exemplo, no estado de Mississipi, quem tiver 1/8 de “sangue” negro é considerado como negro. Ser negro, nos Estados Unidos é, portanto, uma questão de “contágio” genealógico, o que leva a que existam pessoas louras, de olhos azuis, com aparência nórdica, legal e socialmente classificadas como negras. Há, desta forma, uma oposição absoluta entre negros e brancos, sendo o mulato, a classe intermediária, uma categoria sociologicamente inoperante. É o jus sanguinis, aplicado ao sistema de classificação étnica, segmentando internamente a sociedade.
 
Já, no Brasil, a classificação étnica parte da aparência dos indivíduos. Uma pessoa clara, com traços afilados, jamais será classificada como “negra”, mesmo tendo algum ancestral negro muito próximo. Não há, no Brasil, a oposição absoluta entre negros e brancos, mas um continuum que vai do branco louro, ao chamado “negro puro”, passando por dezenas de categorias intermediárias, como mulato claro, mulato escuro, mulato sarará, e muitas outras. A cor da pele, isoladamente, só classifica alguém como negro se a pessoa for muito escura. Traços como a forma do nariz, dos lábios, e o tipo de cabelo são igualmente importantes.
Outro aspecto na classificação étnica brasileira é a posição social do indivíduo, gerando o que se denominou de “raça social”. Quanto mais elevada o status de alguém, maior a tendência a ser considerado como “branco”. Inversamente, quanto mais pobre, mal vestida e menos educada a pessoa, maior a tendência a ser percebida como mulata ou negra. Dessa mesma pesquisa, resultou a constatação de que quanto mais pobre o setor considerado, maior a miscigenação.

Tal contraste entre os sistemas norte-americano e brasileiro foi elegantemente descrito pelo professor Oracy Nogueira, que denomina o primeiro “preconceito de raça”, e o segundo, “preconceito de marca”.
Esta pesquisa, dos anos 50, explicitou diversos aspectos das relações negros-brancos, no Brasil, alguns dos quais, hoje, percebemos como evidentes, mas que, na época, não eram. Contrariou o senso comum nacional, que postulava a perfeita igualdade entre etnias. Demonstrou, por outro lado, a americanos que “raça”, herança biológica, não era uma categoria universalmente reconhecida. Mostrou que, no Brasil, a ausência da violência física sistemática contra negros, como encontrada nos Estados Unidos, era compensada por uma extrema brutalidade na repressão aos pobres, brancos ou negros, e à sua organização política.

A partir dos anos 60, os Estados Unidos assistiram a importantes avanços na área de direitos civis sendo, legalmente eliminada a segregação racial. Foram extintas barreiras raciais em escolas, universidades e em espaços públicos como meios de transporte coletivo e cinemas. Entretanto, na prática, a segregação continua existindo. Em primeiríssimo lugar, a segregação espacial, uma vez que os negros permanecem concentrados em seus “guetos”. Além de várias outras formas de segregação social e profissional: às entidades encarregadas da vigilância aos direitos humanos, não têm escapado, por exemplo, que a absoluta maioria dos condenados à morte, nos Estados Unidos, é composta de negros.
Pude constatar, na prática, em minha pesquisa de campo de 1973 e 1974, entre negros e brancos de um estado do Sul dos Estados Unidos, a enorme tensão existente entre as suas comunidades. Eram insultos, lutas de rua, assaltos, estupros, e assassinatos inspirados por razões de ordem étnica. Um dos maiores problemas denunciados por entidades negras eram as mortes nas estradas desertas, de responsabilidade da própria polícia.
 
Não obstante, tal situação não impediu que se impusesse, a partir dos anos 70, o nacionalismo norte-americano, no estudo do sistema de relações comparada negros-brancos, nos Estados Unidos e no Brasil. Passou-se, em diferentes livros e artigos, a defender a tese de que o sistema brasileiro seria “pior” do que o norte-americano, pois ao discriminar-se e, ao mesmo tempo, tratar-se o negro com cordialidade, impedia-se sua organização e sua ação política. E que, ao não se reconhecer o negro como estranho ao corpo social, negava-se sua existência como etnia; que a ausência do racismo biológico, para opô-lo absolutamente ao branco, representava um mecanismo destinado a impedir sua vida autônoma; que a anulação das diferenças raciais, pela pobreza comum a negros e brancos, impedia que o negro brasileiro formasse comunidades separadas; e que a ausência de segregação residencial atrapalhava sua organização política

A discussão do “pior” racismo não faz o menor sentido e tais argumentos são, eles mesmos, uma apologia do racismo. Na mesma linha fez-se a crítica à questão da miscigenação, enquanto desiderato político. Defendem alguns brazilianistas que o Brasil visaria, por política de estado, à extinção do negro por meio de sua absorção pela massa da população, ao “branqueamento”. Seria como uma forma sutil de genocídio.
O "branqueamento," proposto por autores como Batista de Lacerda e Silvio Romero, no começo do século XX, consiste em uma linha lateral do pensamento social brasileiro, para responder ao racismo supostamente científico daquele tempo e, assim, tentar provar a viabilidade do País. O pilar da ideologia nacional é outro, a miscigenação, da qual o branqueamento representa uma conseqüência (dentre muitas outras) e não o contrário. O problema para a identidade brasileira, cuja solução foi claramente explicitada por Gilberto Freyre, é o de um brasileiro novo racialmente e novo culturalmente, na medida em que, no início do século, raça e cultura estavam associadas. O essencial é a idéia de "civilização brasileira", a construção da nação pela afirmação da sua diferença frente às demais, pela formação de uma nova raça mestiça, como pretendiam Sylvio Romero e Euclydes da Cunha, ou de uma nova etnia morena, como queria, recentemente, Darcy Ribeiro.
Teses como a da exagerada importância do branqueamento na ideologia nacional resultam de uma formidável confusão conceitual, que dramatiza as dificuldades semânticas de comunicação entre culturas. A miscigenação continua a ser um objetivo nacional, mas "branquear", no Brasil, não significa "limpar o sangue", como nos Estados Unidos, isto é, diluir o sangue negro, a uma quantidade tão pequena que o torne insignificante. Talvez além do 1/8 do Sul daquele País. "Branqueamento", no Brasil, significa "amarronzamento", mestiçagem, resultando em uma cor de pele como a do atual Presidente da República; quer dizer "entrar na classe média", além de deixar de ser classificado com a aparência de "negro”. Tais estudos omitem que, dentre os múltiplos ideais brasileiros de beleza humana destaca-se o de uma pele morena associada a traços finos e cabelo liso: quase um tipo hindu ou do norte da África. Esquecem, também, que negra é a imagem de Nossa Senhora que nunca deixa os brasileiros sozinhos pelas estradas da vida.

O problema, com essa visão, por vezes, acriticamente aceita até por pensadores brasileiros, é a incapacidade de relativizar categorias lingüísticas e culturais. A tendência de tomar a metáfora como literal. De considerar raça, conceito supostamente biológico, na forma assumida na cultura americana, como universal e imanente à condição humana.
No Parlamento brasileiro, tem-se repetido, ultimamente, a apresentação de projetos de lei, imitando a chamada “ação afirmativa” norte-americana. Esta política, nos Estados Unidos, além de negros, contempla outras das chamadas “minorias sociais”, como latinos e mulheres. Tais proposições, que objetivam conceder a negros quotas de vagas nas universidades e de empregos na iniciativa privada e no serviço público, esbarram no obstáculo da indefinição jurídica do que seja um negro no Brasil. A única solução formal seria a adoção do jus sanguinis norte-americano, que além de incompatível com a cultura brasileira, traria o racismo para o próprio corpo jurídico nacional. O termo “afro-descendentes”, usado com o objetivo de incluir mestiços nas cotas propostas, levaria, além disto, a uma lei inteiramente inócua pois, talvez, oitenta por cento dos brasileiros cabem nesta categoria.
A alternativa ao jus sanguinis seria a identificação étnica por um critério sociológico de identidade, como o previsto no estatuto do índio em vigor. Entretanto, os negros brasileiros, com exceção dos quilombolas, não constituem grupos sociais estáveis identificados por critérios étnicos, não residem em vilas, bairros ou guetos apenas seus, nem dispõem de uma organização comunitária própria e exclusiva, como a dos negros norte-americanos ou dos índios brasileiros. O mesmo acontece a pessoas que nada têm de índio, na Amazônia, mas que, se tiverem feições indígenas, sofrem o peso maior do preconceito, da mesma forma que os negros no restante do País. Os dois casos são de etnias difusas, sem fronteiras bem delimitadas por marcos culturais, o que dificulta, extraordinariamente, a formulação de uma política para compensação das desigualdades a que estão sujeitas.
Por isto, além do combate à discriminação, pela aplicação da lei e pela valorização de sua identidade, as ações em defesa dessas populações estigmatizadas por razões étnicas devem ser associadas a uma política mais ampla que contemple a questão da extrema pobreza que, em muitas regiões brasileiras, superpõe-se à etnicidade. Além disto, há no Brasil, outros critérios de classificação e atribuição de status tão importantes quanto o étnico. São as classificações regionais, quase-étnicas, como, por exemplo, as de gaúcho, mineiro e nordestino. Esta última sujeita a estigmas tão fortes quanto os associados a algumas classificações estritamente étnicas.
A fragmentação dos movimentos sociais, apartando índios, negros, sem terra, mulheres e sindicalistas, dentre outros, é um grave problema pois a desunião a todos enfraquece. Há, mesmo, situações limite como, por exemplo, casos de conflito aberto entre índios e sem terra.
Não se pode deixar de reconhecer a especificidade de cada desses setores mas, pensadores sociais comprometidos com o ser humano, especialmente nós, que vemos na humanidade sofredora Aquele que morreu na Cruz, estamos devendo um quadro teórico e metodológico que integre e articule esses movimentos, que substitua ações isoladas, radicais e ineficazes, gritos de desespero, por um projeto nacional consistente para o Brasil.
O primeiro passo é o de resgate da idéia de nação, ou seja, de que possuímos um passado comum e um destino comum; a idéia de que, não obstante nossa diversidade estamos no mesmo barco. Barco outro que esta patética nau capitânia, que mal consegue flutuar, construída para comemorar quinhentos anos de iniquidade.
As razões da especificidade do sistema étnico brasileiro frente ao norte-americano, tem a ver com a maneira pela qual se exprimem os valores fundamentais, historicamente associados às duas culturas, estruturando as comunidades em que as pessoas vivem seu dia a dia.
A posição puritana, enfatizando o Antigo Testamento, parte da premissa da exclusão. Os eleitos, como percebeu Weber, explicando o capitalismo, já estariam previamente assinalados. A eleição divina seria transmitida por linhas de sangue, conforme demonstram as longas genealogias do Antigo Testamento. Os membros do povo escolhido teriam o direito de viver em relações de simetria e respeito uns com os outros, o que não se aplicaria no tratamento dispensado a estranhos à comunidade. Aspectos como a democracia interna, associada à segregação racial, decorrem da premissa da exclusão na organização da cultura norte-americana.
A posição ibérica tradicional, alicerçada no catolicismo e informada por uma longa experiência histórica de interação com os árabes, parte da premissa da inclusão. O critério genealógico restritivo não tem grande importância, assumida a ênfase na universalidade do Novo Testamento. Todos são potencialmente salvos, desde que aceitas a ordem política e as hierarquias coloniais. Tanto a tolerância frente à diversidade, como a dura repressão aos desafios à ordem hierárquica respondem a essa outra premissa inclusiva.
O desenho das comunidades (tanto as locais como as nacionais/imaginadas) é diferente, portanto, na medida em que a inglesa e a norte-americana têm limites rígidos, enquanto a ibérica e a latino-americana possuem limites difusos. Nestas, até as fronteiras da consangüinidade são ampliadas por mecanismos como o do compadrio, por exemplo. Foi devido à premissa da inclusão hierárquica que as guerras contra os índios não eram consideradas, no Brasil, como conflitos com nações estrangeiras - à semelhança do modelo americano - mas ações destinadas a impor a disciplina a súditos rebeldes.
Agradecendo, mais uma vez, a oportunidade de falar aos bispos de meu País, despeço-me com um pensamento sobre a Igreja e sobre os tempos atuais. Inaugura-se, com o milênio, uma nova etapa da mesma globalização genocida iniciada, por volta de 1500, em sítios como este de Porto Seguro. Quando novas formas de opressão são impostas à humanidade, é para a Igreja que eu, e muitos outros, olhamos com esperança. Nela repousam os valores sagrados, eternos e absolutos que, algum dia, lavarão a marca de Caim, tinta de sangue negro, índio e de muitos outros povos, que a sociedade ocidental procura, inutilmente, esconder.

Significado e Efeitos

Significado e Efeitos da Publicação do Mapa Etno-histórico de Curt Nimuendajù Para a Antropologia BrasileirA

 
Uma grande perda que sofre a antropologia de hoje é a da visão de conjunto.
O conhecimento intensivo de uma realidade particular, um grupo indígena, uma favela carioca ou uma pequena comunidade nordestina, acoplado a preocupações teóricas preencha a maior parte da experiência do antropólogo de hoje. Embora com anos de pesquisa de campo em grupos indígenas específicos, Curt Nimuendaju soube situar seu interesse e sua vivência de certas tribos em um con­texto muito amplo. A primeira dimensão do tamanho desse contexto é fornecida pela visão histórica de seu mapa. Os grupos indí­genas já referenciados pela bibliografia, des­de a mais antiga, estão representados no mapa. O índice bibliográfico que a acompanha exprime um intenso trabalho de seleção das fontes mais seguras sobre as diversas tribos. Do prisma do espaço, as localizações conhecidas de grupos indígenas abarcam o universo geográfico do território brasileiro e algumas áreas limítrofes da América do Sul. Este incrível esforço em sintetizar todas as informações existentes sobre a localização de tribos indígenas em diferentes tempos será uma referência obrigatória em todos os fu­turos estudos sobre índios realizados no Brasil.
 
O mapa resume a bibliografia publicada até 1944, cobrindo os grupos indígenas conhecidos até este ano. Depois de 1944, outras tribos foram encontradas na Amazônia, não estando, portanto, nele representadas. Alguns pouco grupos, por outro lado, mudaram de localização. Tais aspectos, porém, têm um efeito mínimo no julgamento do enorme valor do trabalho. A discussão destes aspectos significará a abertura de uma interessante área de debate como um dos efeitos previstos da sua divulgação.
A. publicação deste instrumento básico de pesquisa vem responder também à necessi­dadede situar histórica e geograficamente os estudos antropológicos. De fato, a pers­pectiva durkheiniana de "se explicar o social pelo social" é levada, por vezes, demasiadamente longe. Aspectos históricos e geográficos aparecem como "pano de fundo" em di­versos estudos e não como o primeiro mo­mento lógico do processo explanatório. Para que se reafirme a relevância da em geral reco­nhecida e, em geral, pouco seguida, relevância dos fato­res históricos e geográficos no processo expla­natório, é fundamental que informações de base sobre tais aspectos sejam divulgadas. Creio que tal subênfase geográfica e histó­rica resulta, não somente, de decisões intelec­tuais, mas também, em grande parte, da falta de informações disponíveis sobre esses cam­pos, de um prisma instrumental para o tra­balho do antropólogo. A massa de material histórico-geográfico que o mapa de Nimuen­daju resume será um passo fundamental no sentido de tomar tais materiais históricos e ­geográficos accessíveis a antropólogos. A grande concentração de informações contidas nas páginas deste volume certamente implica a difusão das centenas de fontes bibliográficas citadas. Este mapa, portanto, é um trabalho que funciona como aglutinador de todo um conhecimento antes fragmentário e disperso.
Uma boa ilustração da segurança que a inclusão, ao nível do modelo explanatório, de fatores geográficos oferece, surge, por exem­plo, de uma velha discussão atualmente reacesa. Já há muito que a antropologia reconhece diferentes tipos de grupos indíge­nas nas "terras baixas da América do Sul" (leia-se América do Sul, menos os Andes). Uma das principais distinções é a que separa o que Steward (1950) chamou de "grupos de floresta tropical" e o que ele chamou de "grupos marginais". Embora esta tipologia esteja superada por novas informações empí­ricas, não há dúvida que existe um contraste marcante entre os grupos indígenas do tronco lingüístico Jê, em sua maioria habitando a região do Brasil Central, e os habitantes da floresta amazônica. Enquanto os Jê possuem complicados sistemas de metades, classes de idade e, em alguns casos, grupos de descen­dência, os grupos conhecidos como de "flo­resta tropical" possuem uma estrutura de maior simplicidade, com as diferenças entre os sexos como o principal critério de orga­nização social. Enquanto os Jê têm uma economia baseada na agricultura, caça e na coleta, índios como os do Xingu, da floresta tropical, têm uma economia baseada na agri­cultura e na pesca.
Bramberger (1971), em um interessante artigo, compara os Kayapó, um grupo Jê, com os índios do Xingu. Os Kayapó não habitam uma área claramente definida de campos cerrados como os outros Jê. Pelo contrário, parte dos grupos Kayapó vive em um am­biente caracterizado como de floresta tropi­cal. Dada a semelhança de habitat entre os Kayapó e os Xinguanos e dada a semelhança do aspecto tecnológico e de estrutura social entre os Kayapó e os demais Jê, Bramberger conclui que o meio-ambiente não tem nada a ver com os diferentes tipos de economia. A explicação das diferenças econômicas estaria na "visão de mundo" que os dois tipos de estrutura social apresentam.
A conseqüênqia de tal postulado, estranho para os historiadores e talvez incrível para os geógrafos, mas comum entre antropólogos, é o reforço do velho ponto de vista durkhei­miano ("o social pelo social") - "a cultura se explica por si mesma".
A resposta a Bramberger pode ser en­contrada em um recente texto de Ross (1978), que tenta, com dados insuficientes, mostrar que as regiões habitadas pelos índios Kayapó e os Xinguanos são diferentes, razão pela qual tais grupos teriam culturas também diferentes. Assim como a posição de Bram­berger radicaliza uma conspícua perspectiva teórica estruturalista, a de Ross repete em Ecologia cultural um determinismo do meio, igualmente corriqueiro na comunidade antro­pológica internacional.
Bramberger acerta na constatação de que os meio-ambientes habitados pelos Kayapó e Xinguanos sejam semelhantes. Mas sua expli­cação falha por não considerar uma geografia mais ampla que os restritos ambientes em que habitam estas populações. Fatores como, por exemplo, as migrações históricas que sofreram estes grupos indígenas há mais de cem anos.
De fato, os índios Kayapó vieram de um meio tipicamente de cerrado sendo que sua cultura atual pode ser vista como um mo­mento de um processo de mudança, adap­tando-se a um meio diverso. Comparando os Kayapó com os demais Jê do Brasil Central, torna-se aparente que os recursos dos rios e das matas têm para eles a maior importância, efeito do processo adaptativo ao novo ha­bitat. Tal bom senso na explicação, sem tentar entender cultura e sociedade apenas por elas mesmas ou lançando mão de um meio ambiente natural, limitado e estático, encontrará uma segura base empírica no mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju.
Esta visão mais ampla poderá gerar mo­delos mais eficientes que os atuais para estu­dos de carrying capacity realízados tanto por geógrafos como por antropólogos. De fato, tais pesquisas, estratégicas para uma política de ocupação racional da Amazônia, apresentam alguns sérios problemas. De longe, o mais grave é exatamente o apontado acima, o da limitação do espaço habitado por uma população em um único tempo. Os deslocamentos históricos e a carga de tradi­ções culturais oriundas de adaptações a ou­tros meio-ambientes são simplesmente ignorados. O resultado são modelos que podem chegar a diferentes índices demográficos para diferentes formas de tecnologia, dado um determinado meio-ambiente. Mas os modelos não explicam as diferentes capacidades adaptativas de populações diversas neste mesmo ambiente.
Outro ponto que cabe ressaltar é o da relevância das informações histórico-geográ­ficas sintetizadas no mapa para a teoria do contato interétnico. Para nós, antropólogos brasileiros, tal aspecto é de especial relevân­cia, dado o peso da teoria do contato na nossa Antropologia.
Aspectos históricos e geográficos nela as­sumem ênfase explícita pela consideração dos tipos de atividade econômica desenvolvidos pelas diferentes frentes pioneiras ( Roberto Cardoso de Olíveira , 1972). Os tipos de frentes extrativas, por exemplo, remetem diretamente ao aspecto histórico e geográfico. Por ser uma abordagem que parte da con­cretude das relações econômicas e sociais, automaticamente considera tais elementos eom a devida força na explicação.
Embora tenha a visão do todo como premissa, a teoria do contato interétnico, ao situar-se como instrumento para o estudo de situações particulares, pode perder algo de seu alcance. A publicação do mapa contri­buirá para os estudos de contato, não só com informações em pesquisas específicas, como também com uma visão histórica do que ocorre com diversos grupos indígenas nas diferentes áreas geográficas dotadas de tipos particulares de atividade econômica. O lado generalizante da teoria do contato, dispondo do mapa de Nimuendaju, contará com uma amarra essencial. Será possível, a partir dela, um avanço da compreensão globalizante do contato interétnico por estudos comparativos da relação tipo de frente pioneira - efeitos sobre grupos indígenas (Roberto Cardoso de Oliveira - Op. cit.). Ao mesmo tempo, ques­tões relevantes serão obtidas sobre os diver­sos graus de resistência ao contato dos dife­rentes tipos de estruturas sociais.
Por exemplo, se numa área geográfica X, em um mesmo tempo, o grupo A desapareceu, o B continuou no mesmo local, e o C migrou, a busca da explicação para tais conseqüên­cias diferenciais do contato será mais uma pergunta entre as muitas que o mapa oferece (Laraia e Matta, 19ó7).
Do prisma do contato interétnico, as principais variáveis a serem trabalhadas a partir do mapa, são os tipos e subtipos de frentes pioneiras segundo o período histórico e as estruturas sócioculturais dos grupos indígenas segundo a área e o período histó­rico. Os efeitos possíveis da combinação des­tas variáveis seriam a extinção total ou parcial dos grupos indígenas, migrações em busca de regiões de refúgio ou alguma forma de acomodação. Outra possível conseqüência é simplesmente o bloqueio do avanço da frente pioneira em uma região por um dado pe­ríodo de tempo - É possível que os grupos caçadores tenham maior capacidade de resis­tência cultural, baseada em uma mais eficiente estrutura militar.
A divulgação do mapa de Nimuendaju não só trará uma base firme para estudos de impacto sócio-cultural e ecológico sobre as populações e áreas indígenas, como também, fornecerá subsídios para se inferir o compor­tamento das frentes pioneiras nacionais. Os historiadores ou os sociólogos, interessados em encontrar momentos de atividade econômica e migrações mais intensas de frentes de ex­pansão nacional terão um instrumento essen­cial no mapa - a pressão histórica das fren­tes nacionais poderá ser indiretamente me­dida pela movimentação no espaço dos grupos indígenas.
Outros usos e perguntas a partir do mapa serão levantadas. Sua publicação vem tornar accessível ao pesquisador uma obra clássica da Antropologia brasileira.

Casa do Kukurro

Casa do Kukurro- Tradição Cultura e Sua Influência na Amplificação e Manutenção da Diversidade em uma Roça

 
 
O homem é o ser na natureza responsável pelo paradoxo de “criar” e manter espécies e, ao mesmo tempo, depauperá-las e extingui-las. (Harlan & De Wet 1973; Harlan 1975; Fernandez 2005).
Além da seleção natural, a domesticação de espécies pelo homem é uma forma clássica de geração e proliferação de espécies e variedades. Ao manejar as espécies de um dado local, o homem acaba privilegiando algumas, em detrimento da diminuição ou mesmo, em casos extremos, chegando a eliminar localmente algumas nativas (Posey 1987; Blumler & Byrne 1991; Balée 1994; Salick 1995).
Parte deste imenso poder de escolha do homem quanto a manter ou eliminar espécies, variedades e seus respectivos genótipos/alelos é inconsciente, e resulta de critérios subjetivos, como por exemplo, aqueles relacionados ao gosto, desejo, costume, preferências por determinada forma ou cor de fruto, dentro da diversidade disponível ao homem, num determinado local e momento (Harlan 1971; Harlan & De Wet 1973; Brookfield, & Padoch 1994).
Estas preferências e, principalmente, o esforço de conservar/perpetuar os tipos preferenciais (fenótipos), permitiram a criação de diversas raças locais. Ações de domesticação fizeram com que as diferenças culturais e de escolhas existentes entre as populações/etnias humanas, exercessem pressão diferencial sobre a diversidade das espécies disponíveis, se refletindo, como no caso abordado neste trabalho, em variedades de plantas cultivadas (Kerr 1987; Brookfield & Padoch 1994; Bellon 1996; Salick et al. 1997; Peroni 1998; Amorozo 2000, 2002; Peroni & Martins 2000).
Aliada à seleção humana, fatores ambientais, tais como o clima, temperatura, pluviosidade, pragas, competidores naturais, dentre outros, que são componentes de seleção natural, também atuam sobre as populações das espécies cultivadas, preservando variedades mais adaptadas (Harlan 1971; Harlan & De Wet 1973 Darwin 1985; Harlan 1995).
Durante pelo menos os últimos 8.000 anos, a sobrevivência do homem esteve ligada à manutenção de seus cultivos tradicionais. Por outro lado, a perpetuação e a difusão de determinadas raças locais esteve também condicionada à perpetuação, migração e relações culturais de determinados grupos humanos, em ciclos contínuos de co-evolução. Sem as ações e atividades humanas, diversas raças locais teriam sido extintas, uma vez que dependem do homem para sobreviver e se reproduzir no ambiente de cultivo (Altieri & Merrick 1987; Brookfield & Padoch 1994; Brush 1995). O processo co-evolutivo é tão complexo que a conquista e colonização de muitos ambientes, pelo homem, reflete as características da própria planta, para que esta possa crescer e fornecer alimentos ao homem.
Deste convívio de co-evolução homem-planta, pode-se afirmar que: quanto maior a diversidade de culturas humanas, maior o potencial de geração e conservação de raças locais de uma dada espécie (Vavilov 1992). Por outro lado, o desaparecimento e a aculturação de grupos e sociedades humanas aumentam o risco de perda de espécies e raças locais (Freitas & Freitas 2003, 2004; Freitas 2005).
Sabe-se que as populações indígenas foram e ainda são as principais guardiãs de grande número de raças locais de plantas e animais (Brieger et al. 1958; Altieri & Merrick 1987; Salick et al. 1997; Emperaire 2001). Entretanto, a dificuldade em manter esses recursos genéticos aumenta com a intensificação do contato com a sociedade envolvente (Freitas & Freitas 2003; Freitas 2005).
Neste sentido, este trabalho apresenta um exemplo real de como uma tradição cultural influencia na amplificação/geração, seleção e manutenção da diversidade de uma espécie e suas raças locais.

Objetivo
O objetivo deste trabalho é descrever uma tradição cultural de alguns moradores da aldeia indígena Yawalapiti. que tem reflexo direto na conservação de raças locais de mandioca – Manihot esculenta Crantz, e discutir o impacto desta forma de tradição em termos evolutivos, tanto na manutenção quanto na ampliação da diversidade daquela espécie agrícola.
Material e método
O trabalho foi realizado na aldeia Yawalapiti entre os anos de 2004 e 2006 (coordenadas geográficas: S 12 º 09´ 987´´e W 53º 20´103´´) que se localiza na chamada “boca” do rio Tuatuarí, afluente do rio Culuene, um dos principais formadores do rio Xingu. Ela se encontra no Parque Indígena do Xingu, na região nordeste do estado do Mato Grosso. A aldeia Yawalapiti possui aproximadamente 280 pessoas, distribuídas em 15 casas (ano 2004). Os Yawalapiti pertencem ao tronco lingüístico Aruak, do qual fazem parte também os Waurá e Mehinako, ambas as etnias residentes no mesmo Parque (Zarur 1986; Melatti 1998)
O método de trabalho consistiu na elaboração e aplicação de um questionário semi-estruturado em todas as casas daquela aldeia, preferencialmente com o casal responsável por cada casa, tendo sido complementado com a observação direta nas roças de cada uma dessas famílias (Amoroso et al. 2002; Viertler 2002). O objetivo principal era realizar um levantamento das espécies e variedades de plantas que cada família da aldeia cultivava durante a pesquisa.

Resultados e discussão
Entre os Yawalapiti cada família cultiva sua própria roça, com autonomia de escolha do local, do tamanho e, principalmente, das espécies e variedades plantadas, onde a mandioca é a principal espécie cultivada.
Conseqüentemente, cada família possui sua coleção particular de espécies e variedades, algumas sendo similares às de outras famílias, outras mais restritas e algumas exclusivas a uma família específica. As preferências pessoais, as relações familiares, as tradições e experiências de manejo sobre as espécies agrícolas determinam as características dessas coleções. Deste modo, além da variação na diversidade manejada por cada família, verificaram-se variações nas formas de plantio e de manejo praticadas por cada uma delas.
Em relação ao aspecto de plantio e manejo, observou-se uma tradição cultural praticada por uma única família daquela aldeia que repercute fortemente na conservação e na ampliação da diversidade de raças locais de mandioca, prática esta que descreveremos a seguir. Cabe ressaltar que esta família é a que possui uma das maiores diversidades de mandioca na aldeia.
A sua roça, como a da maioria das outras roças da aldeia é constituída basicamente pelo plantio da mandioca por propagação vegetativa, em manivas (pedaço do caule da planta), o que permite a perpetuação de um mesmo tipo (genótipo) indefinidamente, através das gerações. Tradicionalmente, nas roças em geral, as diferentes raças locais desta espécie são distribuídas de forma agrupada por tipos.
Existem dois grupos básicos de tipos de variedades de mandioca: um composto por tipos conhecidos como “doce”, usado para mingau, normalmente plantado ao longo do perímetro limítrofe da roça, e o outro grupo, chamado de “polvilho”, usado para fazer um tipo de pão, conhecido como beiju, plantado na parte interna da roça (Mühlen 1999). Estes dois grupos (doce/polvilho), por sua vez, apresentam diversos “tipos”, ou variedades, que são plantados separadamente por setores das roças, em “montes” ou covas, em um espaçamento médio de dois por dois metros entre as covas.
Extrapolando o fator agrícola, pudemos observar nas roças da família do Senhor Tapaiê uma tradição cultural singular que é o tema deste trabalho. Além da distribuição comum às demais roças da aldeia, o principal aspecto distintivo da roça desta família é o fato de o agricultor construir dois montes ou covas, distantes mais ou menos 40 m um do outro, nos quais reúne, em cada um dos montes (Fig. 1), todos os tipos de mandioca que possui. Esses dois montes são denominados de “casa do Kukurro”, ou em uma tradução livre, casa do espírito da lagarta (a lagarta referida, segundo o agricultor, se alimenta comumente das folhas da planta da mandioca).
A casa do Kukurro, segundo o agricultor, é construída todo ano, após um ritual do qual participam os homens e as mulheres da família. Todos se pintam e cantam músicas, cujas letras evocam o espírito do Kukurro. Para eles, quem cuida da roça é o espírito do Kukurro. É este espírito que vai trazer força para que as plantas cresçam mais vigorosas. São dois montes porque são dois irmãos gêmeos, figuras fortes na Mitologia Xinguana (Villas Boas & Villas Boas 1976; Novaes 1985; Ferreira 1994).


FIGURA 1
foto_1_kukurro.jpg

Fig. 1. Casa do Kukurro – monte de terra preparado pelo agricultor reunindo todas as variedades de mandioca manejadas pela família, com o intuito de trazer força para a sua roça.
Ainda, “ligando” estes dois “irmãos” representados pelos montes, o agricultor pode fazer uma linha alta de terra (± 40 cm de altura), em ziguezague, ao longo da qual ele também planta tipos de mandioca neste caso normalmente dos tipos doces. Este ziguezague, segundo o agricultor, representa uma cobra, outra figura mítica e que, segundo ele, também ajuda a trazer proteção e força para a roça. Note que o agricultor na safra de 2004/05 não implantou esta linha/cobra, mas o fez na roça nova, no ciclo agrícola 2006/07, quando abandonou a casa do Kukurro anterior e fez outra na nova roça.
Esta observação pode demonstrar que, culturalmente, a “cobra” teria um papel secundário, e as covas-irmãos seriam o foco principal. Entretanto, a disposição em formato de a cobra pode ter conseqüências evolutivas para a mandioca, uma vez que traz tipos de mandioca que normalmente se localizam na margem da roça, para o interior da mesma, aumentando a chance de recombinação de tipos distintos (doce-polvilho).
Segundo o relato, corroborado pelas observações feitas em campo, a casa do Kukurro é sempre situada na parte nova da roça (aberta no ano agrícola corrente) perto do limite voltado para a mata e nunca próxima ao limite com a roça vizinha. A explicação para o distanciamento da roça vizinha é a de que a proximidade pode ter o efeito inverso, fazendo com que a energia, ao invés de proteger suas próprias plantas, passe para as plantas do vizinho, deixando a sua roça fraca.
Este ritual, prática muito antiga, era costume da tribo Waurá e foi trazido à aldeia Yawalapiti pelo casamento deste agricultor Waurá, com a esposa Yawalapiti. A regra de residência adotada no Alto Xingu obedece ao costume de o marido se mudar para a casa do pai da esposa após o casamento (Zarur 1975). Reiteramos que ambas as etnias pertencem ao tronco lingüístico Aruak e possuem uma relação cultural muito antiga. É interessante notar que existe outro morador na aldeia Yawalapiti de origem Waurá e este não tem o costume de realizar esta prática em suas roças. A partir desta constatação, o agricultor Waurá em foco foi questionado do motivo de ser o único a realizar o ritual da casa do Kukurro. Este explicou que era uma prática muito antiga entre os Waurá, mas que o ritual na roça se perdeu ao longo do tempo, mantendo-se apenas a crença espiritual. Sua linha familiar, na aldeia Waurá, tinha sido a única a manter essa herança cultural dos ancestrais, com o viés agrícola. Isto explica o fato de o termo Kukurro não ser conhecido entre os Yawalapiti, mas ser conhecido pelos Waurá, ligado, de modo geral, a questões espirituais de cura de enfermidades e não como proteção ao cultivo agrícola da mandioca.
Segundo um outro morador da aldeia Waurá, com quem tivemos a chance de conversar, na Fundação Nacional do índio – FUNAI, a história do Kukurro como fonte de cura surgiu quando uma senhora muito idosa saiu sozinha de sua roça e ouviu um canto que parecia de gente. Ela viu o espírito dono da mandioca (uma lagarta pequenininha que come as folhas da mandioca) dançando na aldeia dos espíritos. A sua filha foi procurá-la e perguntou o que tinha acontecido e por que estava demorando a voltar para a aldeia. Segundo o relato, esta senhora contou o que presenciou e esta história foi difundida tanto entre os moradores da aldeia Waurá, como para as etnias Mehinaco e Aweti.
Segundo este último “informante”, os moradores da aldeia Waurá realizam rituais para a cura de determinadas enfermidades (problemas para urinar, por exemplo, da seguinte forma): a pajelança para ver qual é o espírito que está causando a doença é feita pelo pajé usando o zunidor. Corta-se madeira no mato para fazer a pá de beiju, e colhe-se mandioca na roça. Todos da família do enfermo dançam no pátio e nas casas e durante a dança oferecem peixe e beiju até o doente ficar bom.
As questões culturais da casa do Kukurro necessitam de um estudo antropológico mais específico, uma vez que não encontramos referências na literatura científica ao termo Kukurro e ainda menos as práticas agrícolas referentes a ele. Entretanto, o tema deste trabalho se restringe principalmente às implicações evolutivas desta tradição como geradora e conservadora da diversidade das variedades tradicionais de mandioca, como será aprofundado a seguir.
Focando novamente a roça do agricultor Waurá da aldeia Yawalapiti, ressaltamos que em cada um destes dois montes da casa do Kukurro, a família reúne e planta todos os tipos de mandioca de sua coleção, com três ou quatro manivas de cada tipo, seqüencialmente, no perímetro e na parte superior da cova, fazendo com que as duas covas tenham um raio maior do que os das demais covas da roça, como observado na Fig. 2.


FIGURA 2
foto_2_kukurro.jpg

Fig. 2. Detalhe da casa do Kukurro, mostrando o arranjo singular da disposição das manivas de mandioca, mais com o intuito de design cerimonial do que agrícola.
Estes montes são os primeiros a serem plantados na roça e, posteriormente, são as últimas covas a serem colhidas. Como a época de colheita coincide com a do plantio do ano seguinte, este material serve como fonte de variedades para a nova roça, como um pequeno banco de germoplasma / depósito de variedades.
Em termos evolutivos, como todas as variedades são reunidas em um espaço restrito, potencializa-se a chance de recombinação entre os diferentes tipos/variedades locais. Este fato ocorre porque mesmo a espécie sendo comumente propagada vegetativamente pelo homem, ela não perdeu, ao longo de seu processo de domesticação, sua capacidade de reprodução sexual, assim como se observa com outras espécies domesticadas com padrões reprodutivos semelhantes, como a batata-doce (Ipomea batatas), inhame (Dioscorea ssp.), araruta (Maranta arundinacea) e taioba (Xanthosoma sagittifolium) (Cury 1993; Peroni & Martins 2000; Silva 2000; Martins 2001). Ainda, sendo a espécie monóica, com flores masculinas e femininas separadas em uma mesma planta, as quais ainda possuem época de maturação diferente – protogenia / protrandria, faz com que a chance de cruzamento, troca de gametas entre plantas distintas, aumente
Outro fato importante para a evolução e amplificação/geração de variabilidade desta espécie é o de aquele grupo doméstico reconhecer e manejar plantas de mandioca originadas via semente, nascidas espontaneamente. Por questões fisiológicas, as plantas via semente normalmente não produzem raízes tuberosas nos primeiros anos, fazendo com que sejam facilmente descartadas pela maioria dos outros agricultores indígenas do Parque, pois somente após o replantio assexual (vegetativo) desta planta originada por semente é que se pode realmente identificar o seu potencial, já que as raízes tuberosas só se desenvolvem após dois ou três ciclos de replantio.
Este agricultor reconhece as plantas originadas por sementes, primeiramente por apresentarem as folhas cotiledonares, podendo posteriormente confirmar pela presença de raiz pivotante e não tuberosa. Segundo aquele agricultor, ele identifica estas plantas originadas por semente e cuida delas, replantando-as por pelo menos três ciclos agrícolas consecutivos, a fim de permitir a formação da raiz tuberosa e, portanto, possibilitando-lhe avaliar o potencial alimentar da planta. Uma vez avaliada, a planta pode ser descartada ou incorporada à sua coleção. Neste último caso, ele a batiza, utilizando características morfológicas, do ciclo, místico/cultural ou características alimentares, apresentadas por este novo tipo, como acontece também entre outros grupos humanos, por exemplo entre os Caiçaras (Peroni 1998; Peroni & Martins 2000).
Ainda, como a forma usual de propagação da espécie pelo agricultor é a forma vegetativa, por manivas, qualquer genótipo novo, uma vez selecionado, é facilmente multiplicado e fixado à coleção. Isto é muito interessante, pois quando genótipos superiores forem identificados, estes podem ser perpetuados indefinidamente, clonados por meio da reprodução vegetativa, sem que ocorra segregação de seus alelos.
Resumindo, o fato de aquela família manter esta tradição cultural denominada casa do Kukurro, faz com que:

Todas as variedades da coleção familiar sejam plantadas lado a lado e em duplicata.

Potencialize a chance de cruzamento entre as diferentes variedades locais manejadas pela família do agricultor, pela aproximação de variedades que normalmente ficam separadas.

 Maneje e selecione plantas originadas via reprodução sexual, podendo incorporar novos genótipos à sua coleção, inclusive através de recombinação com parentes silvestres encontrados na mata adjacente.

 Promova uma forma de conservação local (in situ sob-cultivo), a qual, tanto fortalece a chance de preservação dos cultivos da coleção mantida pela família, como favorece o aparecimento de novos materiais, incrementando a diversidade ali existente, reforçando modelos evolutivos já sugeridos para a espécie (Martins 2001)

Considerações finais

Neste trabalho, apresentamos uma tradição cultural com implicação direta na diversidade de espécies agrícolas manejadas por agricultores indígenas. Esta tradição funciona, tanto como um mini-banco de germoplasma in situ, como fonte contínua de diversidade, devido ao dinamismo e ao manejo, por parte do agricultor. Possibilita, conseqüentemente, geração e adequação de novos genótipos às características ambientais, também dinâmicas. Ainda, esta prática pode servir para estruturar modelos que sirvam em projetos de conservação in situ sob-cultivo (on farm). Enfatizamos a importância da diversidade étnica e cultural e de incentivos que a valorizem, pois é por meio desta diversidade que temos a chance de encontrar práticas singulares, dentre temas exaustivamente explorados, como essa forma peculiar de plantio de um cultivo tão popular no Brasil como a mandioca. Cabe a estudos futuros determinar a causa do desaparecimento desta tradição (se por fatores externos ou internos à cultura Xinguana) e, ao mesmo tempo, valorizar e reconhecer os agricultores que ainda a praticam.

Ecologia e Cultura

Ecologia e Cultura algumas comparações

 
Comparando a adaptação ecológica dos grupos indígenas que habitam a região dos formadores do rio Xingu e das tribos Jê do Brasil central, pretendo, primeiro, discutir a idéia que correlaciona abundância relativa do meio ambiente com complexidade sócio-cultural; e, segundo, propor um novo critério para a avaliação de complexidade sócio-cultural..
O termo "xinguanos" ou "grupos do alto Xingu" refere-se aos habitantes das aldeias localizadas nas bacias dos rios Ronuro, Batovi e Culuene que formam o rio Xingu. Do ponto de vista geográfico, a região caracteriza-se por: a) uma nítida sepa­ração entre as estações seca e úmida 

 b) por ser uma área de transição entre a floresta amazônica e o cerrado do Brasil central. A flora amazônica é representada nas. matas ciliares, por espécimes de menor tamanho. Os campos abertos, separados por corredores florestais, abrigam a flora e a fauna típicas da savana do Brasil central.
Apesar de falarem Iínguas diversas, as tribos do alto Xingu possuem um grau surpreendente de homogeneidade cultural. Galvão (1960) classificou-as por isso, como uma única área cultural. Os seguintes grupos formam o cerne dessa área: Abete e Kamayurá (Tupí), Waurá, Mehináku e Yawalapití (Aruak), Kuikúro, Kalapálo e Matipu (Karib), e Trumái (língua isolada). Duas tribos - Txikão e Suyá - são culturalmente periféricas a este "cerne", mas foram e continuam sendo fortemente influenciadas pela cultura xinguana.
As casas e aldeias no alto Xingu são morfologicamente idênticas. Os xinguanos compartilham uma economia baseada na pesca e na agricultura de coivara; um sistema de parentesco caracterizado pela descendência bilateral, casamento de primos cruzados e terminologia de primos do tipo lroquês. Comungam as mesmas tradições rituais e religiosas. Os mecanismos para a integração intertribal incluem o comércio especializado de certos bens, rituais intertribais e casamentos. As relações entre as aldeias são normalmente pacíficas.
o termo "Jê" designa um tronco lingüístico, Os grupos Jê ocupavam uma área que se estendia do sul da bacia amazônica até o extremo sul do Brasil. Tal como os do Xingu, os habitats dos Jê centrais também apresentam uma distinção bem defini­da entre estação seca e chuvosa. Os Jê ocupam tradicionalmen­te os cerrados. Hoje em dia, alguns grupos Jê vivem na flores­ta, para onde foram empurrados há mais de um século pela expansão da fronteira nacional.
Os Jê do Brasil central têm sido considerados por vários autores - a exemplo do estudo clássico de Lévi-Strauss (1968) colmo uma unidade cultural integrada. Galvão situa-os no cerne de uma área cultural formada por três núcleos principais. O primeiro inclui os Timbira (Canela, Apinayé, Krahó, Gavião e Krikatí); o segundo, os Akwê (Xavante e Xerente); e o ter­ceiro, os Kayapó (Gorotíre, Txukahamãe, Kuben-kran-kegn Kuben-kragnotire, Diore e Xikrin). Os Borôro- grupo em muitos aspectos semelhante aos Jê - está incluído nesta área. Outros grupos - tais como os Parakanã e os Tapirapé - tam­bém foram incluídos, embora falando um dialeto Tupí. Ambos são culturalmente periféricos aos três principais núcleos Jê.
Os Jê do Brasil central possuem o mesmo tipo de aldeias e de casas. A população de uma aldeia pode atingir várias centenas, havendo registros históricos de milhares de habitantes numa aldeia. Existe forte tendência no sentido de fracionar as aldeias durante uma época do ano. A' vida econômica dos grupos Jê baseia-se na atividade agrícola exercida em área de floresta de galeria, na caça e na coleta. A estrutura social é caracterizada por uma série de metades que se entrecruzam, classes de idade e, em alguns casos, grupos de descendência unilinear. Os tipos de terminologia de parentesco variam. Todos os Jê são matrilocais.
 
ECOLOGIA IDÉIAS TRADICIONAIS E NOVAS INDAGAÇÕES

Um tema corrente no pensamento ecológico é o da relação. entre nÍvel de complexidade sócio-cultural e oferta de alimen­tos, em determinado ambiente natural. Steward & Faron (.1959) levam essa discussão a um extremo ao abordarem "a integração sócio-cultural a nÍvel familiar". Os principais ingredientes dessa fórmulade subsistência são: população reduzida, tecnologia de caça e de coleta, ambiente natural com uma oferta de alimentos relativamente baixa. Carneiro (1968) chama a atenção para a importância do crescimento da população em uma área geograficamente I imitada a qual, independentemente da fertilidade do solo, gera nÍvel mais elevados de complexidade sócio-cultural. No caso do Xingu (Carneiro 1968) e provavelmente no dos Jê (Bamberger 1967) a pressão demográfica está ausente. Tanto os ecossistemas tradicionais dos Jê, como os dos xinguanos poderiam alimentar populações muito maiores. Assim sendo, as diferenças entre as duas formas de organização sócio-cultural devem ser explicadas por outras razões.
Registra-se um importante avanço nos estudos de etnoecolo­gia quando a captura de proteínas é introduzida como fator explicativo de peso específico. Entretanto, os adeptos dessa abordagem continuaram a correlacionar "pobreza" do meio ­
em função da baixa disponibilidade de proteínas - a formas de organização social menos complexas. Os dados aqui reunidos mostram que, em algumas situações, verifica-se o oposto. Em áreas onde o ecossistema é menos generoso, a adaptação requer mecanismos especializados, que exigem maior complexidade sócio-cultural.
Os critérios normalmente adotados para mensurar níveis de complexidade sócio-cultural são devidos a Betty J. Meggers (1977), expostos em seu estudo sobre a Amazônia. Eles va­riam entre tamanho e estabilidade das aldeias até a presença de uma vida cerimonial mais elaborada. O primeiro dos cri­térios citados é tido como o mais importante: ou seja, quanto maiores e mais estáveis as aldeias, maior o nível de complexidade cultural. O valor desses indicadores tem sido questionado desde que Robert Carneiro (1960) estabeleceu, em seu estudo dos Kuikúro, que alguns grupos da floresta tropical, tradicionalmente considerados como regidos por uma organizarão social não muito complexa, têm assentamentos mais estáveis do que se poderia supor.
Oberg (1973) utiliza a variável - aumento da população - como fator básico em qualquer análise de complexidade .cultural, acrescentando que ele é afetado pela fertilidade do solo e o regime de chuvas. A classificação de Oberg registra dois tipos de grupos indígenas brasileiros: 1) tribos homogêneas com descendência bilateral e corporatividade a nível local; 2) tribos cimentadas, formadas .por Vários grupos de descendência, isto é, corporativos unilineares. Este último tipo de organização social é correlacionado a populações mais numerosas, que dispõem de um maior excedente econômico. Embora a tipologia de Oberg seja Um passo “importante para a compreensão das diferenças entre os grupos indígenas sul-americanos, ele não estabelece - e parece que não pretende fazê-lo - uma ralação clara entre estrutura social e condições particulares de meio ambiente. Analisando-se as tribos Jê e xinguanas à luz dessa discussão verifica-se que os xinguanos são tribos homogenia, com descendência bilateral e corporatividade a nível local, enquanto os Jê são tribos segmentadas, constituídas de diversos ­grupos internos. Esta definição, no entanto”.
Por exemplo, a estrutura social xinguana apresenta a oposição sexual como o critério básico de organização, enquanto entre os Jê, alguns princípios como classes de idade são também importantes ao nível adaptativo. O uso desses princípios de organização social e sua relação com meio ambiente te serão discutidos, a seguir, tendo em vista a formulação de uma nova base de comparação das tribos indígenas sul-americanas.
 
AS OPOSiÇÕES DE SEXO E IDADE

O estudo de Murphy (1960) evidenciou a relevância do antagonismo sexual no que diz respeito à organização interna de alguns grupos indígenas sul-americanos. Meu próprio trabalho entre os Awetí mostrou que o antagonismo sexual - logicamente expresso como sistema oposicional - relaciona-se com a vida cotidiana dos índios do Xingu (Zarur 1975). Mais ainda, a oposição sexual revelou ser o princípio organizacional básico da estrutura social dos alto-xinguanos, enquanto que a oposição de gerações seria o 'princípio organizacional secundário. .
Torna-se claro, quando se compara a divisão sexual do traba­lho entre os xinguanos e os Jê, que as regras são mais cuidadosamente observadas entre os primeiros do que entre. os últi­mos. Em ambos os casos, os homens tendem a caçar e pescar enquanto que as mulheres coletam alimentos na mata, plantam e colhem os produtos agrícolas. Nas aldeias Jê, no entanto, podem ser vistos homens realizando tarefas femininas, como carregar uma criança, o que não ocorre nas aldeias xinguanas. É provável que a divisão do trabalho mais flexível entre os grupos Jê seja conseqüência do contato interétnico. Mesmo que assim seja, outras diferenças aparecem quando a análise é leva­da ao nível. ritual. Melatti (1978) sugere que a expressão da oposição sexual ao nível do rito não assume a mesma importância entre os Krahó (grupo' Jê) do que entre os índios do alto Xingu. No caso dos Krahó, sua freqüência e função relegada a segundo plano. Como se vê, o sistema de oposição gene­racional e 'etária parece ter-se imposto ao sistema básico de oposição sexual, no caso dos grupos Jê. Com efeito, uma estru­tura hierarquizada em idades é mais importante para os Jê do que para os alto-xinguanos, inclusive no plano ritual.
Outra evidência de organização diferencial entre os Jê e os xinguanos é a instituição casa-dos-homens. No Xingu, ela está aberta a todos os membros masculinos da aldeia, independen­temente da idade, enquanto que, entre os _ê, ela é normal­mente reservada aos solteiros. Os Timbíra têm uma "aproxi­mação" à casa-dos-homens, pois os solteiros dormem na praça da aldeia na estação seca, e, durante a estação chuvosa, moram na "casa-dos-solteiros". Entre os Xavante e os Kaya­pó, há também a casa-dos-homens, designada, por sinal, na literatura, como casa-de-solteiros (cf. Maybury-Lewis 1964, Vidal 1977). Assim sendo, a casa-dos-homens entre os Jê não possui a mesma conotação que entre os índios do alto Xingu. O homem Jê, associando-se à casa-dos-homens, não é coloca­do em oposição à mulher Jê. Mais ainda, entre os Jê a casa-dos­homens não se vincula a rituais com características de oposi­ção sexual remarcável, como ocorre entre os xinguanos. Por exemplo, a casa-dos-homens Awetí empresta seu -nome - Ka­ritu - ao mais importante dos rituais tribais. Tal vínculo con­trasta com a situação prevalecente no caso dos grupos Jê, em que a casa-dos-homens apenas se associa a uma classe de ida­de particular e a rituais privativos a essa classe. As sanções que podem incidir sobre as mulheres xinguanas que entram na casa - ­dos-homens – violentação pela maioria dos homens da aldeia ­não ocorrem, entre os Jê.
Há razões para se acreditar que a oposição sexual está mais claramente expressa na terminologia de parentesco entre os alto-xinguanos (Zarur 1975), enquanto que a superposição de categorias de idade está refletida na terminologia de paren­tesco dos grupos Jê (Crocker s/d; da Matta 1976). Embora ocorrente entre os Jê,a oposição sexual corre paralela a um
forte princípio de idade (Bamberger 1967) inexistente entre as tribos do alto Xingu. Essa diferença se deve à relevância da mobilidade no espaço para os Jê e de sua ausência no caso dos alto-xinguanos.
 
A PREMISSA DA MOBILIDADE NO ESPAÇO

No modelo - grupos marginais da América do Sul - desenvol­vido por Cooper (1942), Steward (1949), Steward & Faron (1959), as tribos Jê do Brasil central são consideradas como pequenos grupos caracterizados pelo "padrão caçador". A interação entre uma tecnologia "simples" e um meio ambiente "pobre" forçaria essas tribos a se dividirem em bandos, durante o período do ano em que a escassez de alimentos não permite uma maior concentração de população. Constituídos por distintos critérios- tais como descendência e residência pós-nupcial - os bandos circulariam pelo território tribal" em busca da caça e da coleta. Na medida em que a fauna decres­cia em uma área dada, o bando movia-se para outro campo de caça, permitindo que a população animal se refizesse- ao seu nível ótimo.
Sem embargo, a partir do momento em que Nimuendaju (1946) demonstrou a importância da agricultura para os Timbíra, pas­sou-se a admitir que os Jê não eram caçadores e coletores clás­sicos. Trabalhos posteriores, como o de Carneiro (1968) so­bre os agricultores e pescadores do Xingu e o de Sahlins (1972) sobre os grupos primitivos em geral, têm mostrado que as economias mais primitivas atendem plenamente às necessidades, geralmente frugais, de seus membros. Com base nesses dados e nessa linha de raciocínio, o papel da caça como fonte de alimentos e como atividade econômica entre os Jê do Brasil Cen­tral tem sido minimizada. Murdock (1968) leva esse ponto de vista ao extremo, ao negar que os Jê sejam caçadores. Argumenta que, para eles, a caça só adquire importância ao nível ideológico.
Entretanto, é fato incontestável que os Jê se dividem em pequenos grupos para caçar e coletar alimentos. Este padrão não decorre, necessariamente, de qualquer ausência cíclica de ali­mentos, pois caça e produtos agrícolas existem em quantidade suficiente próximo às aldeias de modo a atender as exigên­cias da população. Turner (1979) levantou a hipótese de que o padrão - "trekking" - movimento periódico de subgrupos da população de uma aldeia - cumpre a função de reforçar a hierarquia interna, ou seja, o sistema de dominância masculi­na dentro do grupo doméstico. Atividade tradicionalmente masculina, a caça impõe-se como um modo de produção dominante em relação à coleta e à horticultura, atividades tradicionalmente femininas. Assim se reforça a posição do homem como chefe do grupo doméstico, o qual inclui filhas e genros. Com efeito, a relação entre uxorilocalidade e "trekking" é de grande importância para a etnologia sul-americana e para a teo­ria antropológica em geral. Todavia, o papel do deslocamento periódico de grupos não pode ser reduzido à ordenação de rela­ções internas no âmbito da família. Existem indícios de que a mobilidade dos grupos de cultura Jê - embora importante no reforço das relações hierárquicas internas ao grupo domés­tico - exerce outras funções diretamente relacionadas à defe­sa e à subsistência.
Uma característica comum a todos os grupos Jê são as corri­das de toras descritas por Nimuendaju (1946) e Melatti (1978) para os Timbíra. As várias tribos Timbíra estão divididas em metades cerimoniais cuja função, entre outras, é formar times que competem na corrida de toras de buriti. Elas são carrega­das por um indivíduo de cada vez. Na medida em que aquele que carrega a tora perde velocidade, outro do mesmo time o substitui. A corrida se desenvolve na periferia da aldeia, tendo a praça central como ponto de partida e a casa de uma pessoa ritual mente importante, como ponto de chegada.
Segundo Melatti (1978). "as corridas de toras simbolizam a assimilação do mundo exterior pela aldeia". Não há dúvida de que elas representam a fusão da natureza com a cultura. Res­ta explicar, contudo, porque este símbolo particular foi esco­lhido em lugar de outro qualquer. A isto Melatti responde que as corridas de toras são importantes como exercícios fí­sicos. Tais exercícios constituem um treinamento para grupos humanos que dependem da caça e que são freqüentemente ameaçados por investidas de guerreiros. Eis como argumenta Melatti: "A corrida de toras poderia ser um treinamento para retiradas rápidas, em face dos inimigos, por parte de um grupo sobrecarregado pelo peso da bagagem ou dos feridos. A habili­dade locomotora facilita, também, uma mais eficiente explo­ração da caça numa região dada. Assim sendo, ela estende as atividades de subsistência a uma área bem mais vasta do que a que cerca a aldeia" (1976). As corridas são fortemente re­lacionadas às caçadas, uma vez que a composição dos grupos de caça e a divisão da mesma obedecem, freqüentemente, às mesmas regras dos times de corrida de toras. Outra questão a ser colocada é a seguinte: até que ponto a atual intensificação das corridas de toras entre os Timbíra reflete a sedentarização forçada desses grupos indígenas, normalmente móveis, devido ao avanço dos brancos sobre as suas terras.
A velocidade e a resistência dos Timbíra, em particular, e dos Jê em geral, impressionou muitos observadores. É significati­vo o depoimento de Nimuendaju (1946) quanto aos Timbíra. Maybury-Lewis (1974), referindo-se aos Xavante, declara: "eles se movem num passo rápido e balanceado, extremamen­te difícil para um estranho acompanhar, mais rápido que uma caminhada, mas que não chega a ser um trote. Sustentam este passo o dia todo, se necessário for, intermediado com o lan­çamento de flechas ou com a corrida atrás de qualquer caça que apareça". Os Krahó e outros grupos Jê estão, provavel­mente, entre os povos mais móveis do mundo. Entre os Krahó medí corridas de toras de homens cobrindo 6km em 20 minu­tos. Outras corridas, para ambos os sexos, com um grande nú­mero de participantes pertencentes a diferentes grupos de ida­de, cobrem, aproximadamente, 30km em 2 horas e meia de duração. Quando se leva em conta que uma unidade militar moderna, em marcha forçada, se desloca 40km em um dia, a mobilidade dos Krahó se revela fantástica. Calculo que uma população como a dos Krahó incluindo mulheres, crianças e velhos pode cobrir mais de 100km em um dia. Nestas circuns­tâncias, o valor das corridas diárias de toras torna-se evidente. Fica igualmente claro que nenhum grupo humano investiria tamanho esforço numa atividade se ela não representasse um imperativo de sobrevivência.
Infelizmente, nos estudos de organização social, a tecnologia que vem a ser a chave para a compreensão de aspectos cruciais dos sistemas sociais tem sido amplamente ignorada. Antropólo­gos e arqueólogos estabeleceram, desde há muito, uma corre­lação necessária entre cerâmica e vida sedentária; inversamente, objetos cerâmicos, que são ao mesmo tempo pesados e frágeis, representam um ônus para uma população itinerante.
Os grupos Jê do Brasil central não possuem cerâmica. Compa­rada com a de grupos mais sedentários, a cultura material dos Jê é composta por pequeno elenco de objetos portáteis. Estes são, em geral, resistentes ao choque: um inventário que realiza­mos da cultura material Krahó demonstrou que aproximada­mente 65% dos itens são feitos de folha de palmeira. A folha de buriti e de outras espécies palmáceas é abundante no cerra­do. Devido à facilidade e rapidez com que esses objetos são produzidos, e à pequena quantidade de bens necessários, cada pessoa pode produzir e descartar à vontade inúmeros artefa­tos. Por exemplo, as cestas Krahó levam cerca de 5 minutos a 1 hora para serem feitas, dependendo do cuidado com que são trançadas. A plumária dos Krahó não é elaborada, certamen­te porque o estilo de vida desses índios não oferece condições para a sua conservação.
Em suma, o acervo tecnológico dos grupos Jê caracteriza-se por uma pequena quantidade de equipamentos, ausência de canoas e de cerâmica, plumária pouco elaborada, trançado de palha relativamente desenvolvido, e a capacidade de descartar e reproduzir vários objetos, segundo as necessidades do mo­mento. Os inventários da cultura material dessas tribos são uma evidência muito forte de sua vida errante. Em contraste, o artesanato dos índios do alto Xingu é rico em cerâmica relativamente sofisticada, madeira e plumária.

ASPECTOS ECOLÓGICOS DA CULTURA JÊ

As evidências até aqui apresentadas devem ter deixado sufici­entemente claro que a cultura Jê gira em torno da premissa "mobilidade no espaço". Entretanto, o problema colocado por Turner (1977) permanece: não havia necessidade de surgir o padrão "trekking", considerando-se os alimentos disponíveis. Além da necessidade, mencionada anteriormente, de reforçar a hierarquia interna dos grupos domésticos, uma resposta pode ser encontrada na adaptação dos grupos Jê ao seu meio ambiente. A propósito, cabe invocar a teoria de Gross; (1975) sobre a captura de proteínas e a localização das aldeias indíge­nas na América do Sul. É possível que os Jê ocupem um ecos­sistema que resultaria inabitável, não fossem seus freqüentes deslocamentos. Em outras palavras: a menos que a população de uma aldeia se movesse regularmente, as fontes de proteínas seriam rápida e inexoravelmente exauridas. Os recursos em proteínas, neste caso, incluiriam o peixe e a caça.
Muitos dos meio-ambientes Jê têm pequena oferta de peixes - tanto em número quanto em tamanho - quando comparada à da floresta tropical. Com efeito, a rede hidrográfica que corta o cerrado é composta por poucos rios grandes - embora pisco­sos - e afastados entre si. Assim sendo, é provável que se os Xavante se deslocassem para as barrancas do rio Araguaia ou os Krahó para as margens do rio Tocantins, suas necessidades de proteína animal seriam sobejamente satisfeitas. Considere-se, porém, que existem fortes indícios de que enquanto a floresta tropical é rica em peixe, a savana é rica em caça.
Uma conclusão mais segura sobre esse assunto exige estudos etnozoológicos profundos. É necessário lembrar também que alguns grupos macro-Jê, a exemplo dos Borôro, aproveitam melhor os recursos dos rios que os Timbíra ou os Xavante. Providos de canoas, os Borôro possuem uma culinária mais elaborada com base no peixe e uma ideologia orientada, em gran­de parte, para a água. Os Kayapó, embora sem canoas, lançam mão de recursos fluviais com bastante desenvoltura. A etno­história dos Kayapó ensina que esses índios foram deslocados, por pressão das frentes pioneiras, de um ambiente originaria­mente de cerrado para uma área densa em rios e florestas. Mais de um século de adaptação gerou uma tecnologia propícia a esse novo ambiente. _ importante notar que pressões guerrei­ras - que continuaram a ser exercidas sobre esses grupos - le­varam à recorrência do padrão de mobilidade.
Acredito que o conceito de "mobilidade espacial" ofereça uma explicação suficiente para as diferenças entre os sistemas Jê e xinguano. Enquanto que, para os primeiros, ele constitui uma premissa de organização, para os últimos, esse princípio está ausente. Faz sentido que grupos caçadores tenham siste­mas mais hierarquizados, segundo linhas de geração e etárias. De fato, a divisão de trabalho entre grupos de idade torna-se altamente funcional, nas atividades de caça, devido aos laços de solidariedade que se estabelecem entre indivíduos perten­centes ao mesmo grupo. Entre os Timbíra, por exemplo, al­guns grupos de idade caçam mais ativamente que outros'. Ho­mens com mulheres e filhos caçam mais freqüentemente que os solteiros; e estes, mais que os velhos. Entre os Krahó, e outros grupos Timbíra, metades de idades - Kroikateyé e ha­rakateyé no caso dos Krahó - são operativas para a organiza­ção de grupos caçadores, corridas de toras e distribuição do produto das caçadas.
IOutra possível explicação - tanto para a mobilidade dos Jê como para a importância dos grupos de idade e da oposição generacional - provém do meio sócio-político envolvente. Uma cultura que tenha, ao mesmo tempo, um sistema de idade estratificado e uma economia caçadora encontra-se automaticamente dotada de uma organização militar eficiente e agressi­va. Desde que as tribos Jê da savana partilhavam a mesma orga­nização agressiva, ataques recíprocos deviam ser comuns. Além disso, as aldeias dos cerrados, facilmente localizáveis, são via de regra mais expostas a ataques de inimigos que as de floresta tropical. As invasões a outros territórios tribais, nas sortidas contra a caça, deviam também ocorrer com freqüência, geran­do a necessidade de movimentações rápidas.
O processo de contato interétnico, com suas fases iniciais hos­tis, deve ter reforçado o padrão original de mobilidade. Ainda em 1940, expedições punitivas eram lançadas contra os Krahó por terem "caçado" gado em terras de brancos. Essas contin­gências militares exaltavam a importância de ataques rápidos e retiradas. ,Por outro lado, as corridas de toras ajudavam a preparar a população Jê a enfrentar os fazendeiros. Na verda­de, para um grupo de índios, correr através do cerrado com uma tora de madeira de 100kg não devia ser muito diferente do que carregar 'uma rês.
Com base nessa discussão, pode-se reelaborar a hipótese origi­nal de Cooper e Steward: o padrão "mobilidade espacial" dos grupos Jê é menos o resultado de um meio ambiente pobre - em termos de oferta de alimentos e de uma tecnologia simples ­do que de uma adaptação complexa à oferta de proteínas, à natureza do sistema sócio-político, e a premências militares. Estes fatores também iluminam a importância da prevalência dos sistemas de oposição etária sobre o da oposição sexual.

ASPECTOS ECOLÓGICOS DA CULTURA XINGUANA

Inexistiam - na região dos formadores do rio Xingu - fatores ecológicos que implicassem adaptações culturais como as des­critas para os Jê. Os grupos alto-xinguanos elegeram uma fonte maior de proteína - o peixe - ignorando as demais. São essencialmente pescadores e, ao contrário dos Jê, que idealizam inclusive o erotismo da carne, caçam pequenos pás­saros e macacos, unicamente. Próximo às aldeias xinguanas existe sempre abundância de caça inexplorada. Nas matas ciliares há uma grande variedade de animais, como antas, capi­varas, veados, pacas e outros. À uma hora de distância a pé da aldeia Awetí, encontrei um campo,. onde pastavam cente­nas de veados e cervos. Os xinguanos consideram a carne desses animais de pêlo e porte avantajado repugnante. São considerados "índios que foram para o mato e viraram bicho". Consumir sua carne como alimento é visto como uma forma de antropofagia.
Como disse, a área habitada pelas tribos xinguanas representa uma transição entre os cerrados do Brasil central e as florestas tropicais da Amazônia. As fontes de proteínas dos dois meio ambientes estão aí representadas com igual ênfase. A região é servida por uma rede de canais e rios, nos quais há abundân­cia de peixes. Considerando-se a população xinguana total - es­cassa em relação à disponibilidade de alimentos - verifica-se que excluir a caça das atividades produtivas é uma alternativa viável.
Considere-se, ainda, que as pressões guerreiras nunca foram tão fortes entre os grupos xinguanos como entre os Jê. Devido a uma série de fatores históricos e geográficos, o alto Xingu pode ser tido como uma área de refúgio, na qual ingressaram pequenos. grupos de diferentes tribos e troncos lingüísticos em­purrados pela expansão da população brasileira. A adaptação dos Jê a um ambiente mais especializado do cerrado - a leste, nordeste e sudeste do Xingu - está expressa em sua cultura por uma ideologia de apego e valorização dos campos limpos. Situados a uma saudável distância dos xinguanos, estes vizi­nhos agressivos formaram uma parede de defesa contra a incursão de outras tribos e de frentes pioneiras nacionais.
Por outro lado, devido à longa experiência de acomodação intertribal, o sistema xinguano revela uma inusitada capacidade de assimilar a intrusão de tribos. Exemplo disso são os Suyá e Trumái aceitos com relativa facilidade na região. A guerra tradicional no Xingu não implica massacres como os que caracte­rizavam os conflitos intra e intertribais dos grupos Jê. A capa­cidade de diluir O conflito levou vários pesquisadores - a exem­plo de Galvão (1950) - a enaltecer a natureza diplomática dos xinguanos.anos.
A ausência de belicosidade por parte dos grupos do alto Xingu pode ser relacionada à falta de subdivisões internas no âmbito das aldeias; tais como classes de idade ou grupos de descendên­cia. Não há possibilidade de mobilização fácil, rápida e organizada de um destes grupos, ao contrário do que pode ocorrer' entre os Jê. Um sistema mais frouxo - de oposição sexual com parentesco bilateral - não proporciona este tipo de estrutura.
Assim sendo, os alto-xinguanos que dispõem de um ambiente mais "rico" - seja em potencial agrícola, seja em potencial protéico - estão dotados de uma estrutura social mais simples (ver figura I).

CASOS TRANSICIONAIS

Cabe referir, agora, ao paralelo traçado por Joan Bamberger entre o sistema adaptativo dos Kayapó e o dos alto-xinguanos. Dada a semelhança entre os ecossistemas do alto Xingu e al­guns dos meio-ambientes dos Kayapó, a referida autora conclui que o sistema adaptativo das duas unidades culturais depende das suas visões de mundo. Ross (1978) tentou demonstrar que o ambiente do alto Xingu difere do dos Kayapó, e que os xinguanos pescam porque essa é, no seu caso, a atividade mais produtiva.
A interpretação de Bamberger, com referência à região dos for­'madores do Xingu, parece correta. A ausência de pressão ambi­ental confere às tribos da área a capacidade de se organizarem ao longo de linhas independentes do seu ecossistema. No caso dos Kayapó, entretanto, a autora não dá a devida ênfase ao fato de que esses índios procedem de uma área muito bem definida de cerrado. E que, de maneira diferente de outras tribos Jê do cerrado, os Kayapó, apesar de não possuírem canoas, usam os recursos do rio com alto grau de sofisticação. Um século de permanência nesse novo habitat foi suficiente para gerar um novo processo adaptativo. O mesmo se aplica aos Borôro, grupo macro-Jê. Eles usam canoas, possuem uma culinária elaborada baseada no peixe, e os motivos aquáticos são correntes em sua mitologia. Assim, a intensidade de mu­danças periódicas de localização e mobilidade dos Kayapó e dos Borôro expressam diferentes graus de adaptação ao rio.
Os argumentos de Ross são insuficientes para mostrar uma mais alta produtividade da pesca no Xingu. Na verdade, os habitats dos Kayapó e das tribos do Xingu não são tão diferen­tes. Não obstante, os Kayapó caçam mais do que pescam.
Outros casos transicionais podem ser encontrados na área inter­mediária entre a floresta amazônica e o Brasil central. Eles servem para testar os pontos de vista aqui expressos. Os Tapi­rapé, grupo Tupí que habita próximo às margens do Araguaia, partilham diversas características com os Jê, embora não atin­jam a mesma complexidade social. Esses índios vieram, há mui­tos séculos, de uma área de floresta bem definida, mais a este (Baldus 1970). Embora também pesquem, essa atividade não é tão importante quanto a caça. Possuem, à maneira dos grupos Jê, uma estrutura segmentada em classes de idade hierarquiza­das; praticam o "trekking" e caçam (Wagley 1977). Na ilha do Bananal, ainda no rio Araguaia, seus vizinhos Karajá têm na pesca a base de sua dieta protéica.
Estes exemplos transicionais demonstram que o determinismo ambiental opera unicamente quando as fontes de proteína re­querem mecanismos especializados para a sua captura. Esses seriam os. casos típicos dos índios Jê da savana. Havendo mais de uma fonte de proteína disponível, o grupo pode optar entre uma ou outra (Xingu e Karajá) ou por todas elas (Kayapó, Borôro e Tapirapé). Em um meio ambiente mais diversificado, a organização da cultura será muito mais dependente da sua própria lógica interna do que de pressões ecológicas.
 
CONCLUSÃO

A ausência de pressões ambientais, que exige especialização para a captura de proteínas, permitiu a simplificação do siste­ma social dos grupos indígenas do alto Xingu. Esse sistema mais simples - definido pela oposição entre os sexos - pode ser considerado como uma forma básica de organização social dos grupos indígenas sul-americanos. Formas culturais mais complexas - como as do Jê - podem ser entendidas como complicações dessas estruturas elementares, pela adição de outros critérios de organização. Tais seriam: estratificação de classes de idade ou grupos de descendência.
Para confirmar semelhantes hipóteses, a amostra etnográfica deve ser ampliada com a inclusão de outros grupos indígenas. Implicações importantes para etnologia sul-americana seriam de se esperar.
 
1- as teorias que procuram explicar os diferentes graus de complexidade sócio-cultural dos grupos indígenas - princi­palmente a que correlaciona potencial demográfico e produção de alimentos - devem ser cuidadosamente reavaliadas.
 
2 - a principal razão para níveis distintos de complexidade sócio-cultural deve ser buscada na necessidade de especializa­ção para a captura de proteínas e para a guerra. Quanto mais diversificados e abundantes os recursos, menos complexas e especializadas as instituições culturais. Segue-se que: menos diversificados os recursos ecológicos, mais complexa a cultura.

 3 - um novo esquema de referências baseado em princípios organizacionais - oposições entre sexo e idade - poderia servir para identificar tipos sociais indígenas sul-americanos. Este esquema de referências leva em conta aspectos ambientais.

 4 - o tamanho da população não determina o nível de comple­xidade dos grupos indígenas. Pelo contrário, ele pode ser uma conseqüência da necessidade de existirem grupos corporativos devotados à captura de proteínas e à guerra.